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sábado, 11 de junho de 2016

O Coronel Saruê e o espelho


O espelho é um objeto que ocupa um lugar de fetiche na nossa cultura. É um espaço de desejo e repulsa porque nos põe em contato com nós mesmos diante de nós mesmos. Cercado de lendas e superstições, guarda um lugar especial na literatura. Arte que busca, de algum modo, nos revelar. Ele está lá dizendo verdades inconvenientes à madrasta má da Branca de Neve e a tantas outras personagens ao longo dos tempos. Padre Vieira o chamou de Demônio Mudo em dos seus sermões de mesmo título (1651), pois algumas freiras no claustro ainda se recusavam a tirá-lo de suas celas, prova de que ainda estavam ligadas ao mundo externo, ou a alma exterior, aquela imagem que queremos que os outros vejam da gente.

A expressão “alma exterior” é o cerne do conto O Espelho (1882)  de Machado de Assis. O Alferes Jacobina, após alcançar essa patente militar, molda sua “alma exterior” de acordo com aquilo que a sociedade espera do seu cargo e, quando tem seu poderio ameaçado, precisa vestir a farda e olhar-se no espelho para se reconhecer. Todavia, há o conflito entre a imagem refletida e a “alma interior”. O nosso brilhante escritor soube ler como poucos essa complexidade da alma humana, essa dissonância entre o externo e o interno que nos habita. Vale lembrar que outro grande escritor, Guimarães Rosa, também contribuiu com o tema no seu homônimo conto.

O Coronel Saruê, protagonista de Velho Chico, também tem explorado largamente essa temática. Diante do espelho em várias cenas, ele se questiona sobre sua real identidade e vê o seu reflexo dividido entre o dantes jovem entusiasta Afrânio e o atual Coronel, alma externa que foi obrigado a adotar por influência da família e do meio. Tal conflito tem rendido sequências fortes e profundas sobre os outros que guardamos em nós, escondidos sob as máscaras sociais.

Aquela caricatura de coronel pintada com cores fortes e figurino esdrúxulo guarda ainda alguma poesia daquele jovem tropicalista, que por vezes teima em aparecer no seu reflexo. Em diálogo/duelo com seu filho, esse lhe impôs a presença do espelho, algo que ele só faz em solidão, fazendo vir à tona, emergir para o primeiro plano, a alma guardada em baixo de tanto rancor e amargura.

Tal dilema também surge nos seus sonhos através da encruzilhada enfrentada no passado, entre as setas onde sua escolha dolorida moldou seu destino de Saruê. Parece claro que seus descendentes não atenderão ao chamado desse legado, fazendo suas próprias escolhas e caminhos, talvez serão mais felizes diante do espelho.

E como a ficção é também nosso espelho quebrado que  reflete o real através de estilhaços difusos, ali naquela Grotas temos um microcosmo do Brasil, um espelhamento do nosso país. Misto de modernidade e atraso, com compras virtuais e brigas à bala, sintropia e desordem caótica, idealismo e corrupção, e nós do outro lado da tela vamos juntando os caquinhos e tentando montar a imagem completa, mesmo que escapem sempre alguns reflexos que nós não queremos ou não podemos enxergar...

domingo, 5 de junho de 2016

O quarto de Jack e outras dimensões do amor


O quarto de Jack (2015), do diretor Lenny Abrahamson, é um daqueles filmes que nos deixa em suspensão enquanto o assistimos e essa sensação ainda nos acompanha por um longo tempo. Adaptação do romance O quarto, de Emma Donoghue (2010), conta a história de uma mãe e seu filho presos em um cativeiro por sete anos. Jack, o menino de 5 anos que ali nascera e crescera, é filho do sequestrador/estuprador, o Velho Nick, que os visita periodicamente para trazer o “que eles precisam” e violentar mais uma vez Joy, a maravilhosa mãe de Jack. Baseado na história real que chocou o mundo em 2008, quando foi descoberto que um pai prendeu sua filha por mais vinte anos na Áustria, o filme explora ficcionalmente outros ângulos desse drama.
Joy cria para seu filho um outro mundo, O quarto de Jack. Ali, naquele minúsculo espaço de tanto sofrimento, ela consegue manter uma atmosfera de fantasia que os mantêm lúcidos e ativos diante de tanto terror (ecos de A vida é bela). O único contato com o mundo externo vem da televisão que assistem, mundo que, na primeira parte do filme, ela nega a existência para que seu filho não entenda a sua condição de prisioneiro. Nessa primeira parte, antes da fuga, tudo é claustrofóbico e reduzido. Aliás, esse clima é bem explorado pelas câmeras com seus closes angustiantes, vide as cenas em que Jack fica dentro do guarda-roupa quando Nick vem os “visitar”.

É interessante notar as duas histórias que a mãe "conta" para Jack, O Conde de Monte Cristo e Alice no país das maravilhas. Duas narrativas que dialogam diretamente com o drama deles. Através do primeiro, ela preparará a fuga do esperto menino, que se fingido de morto (seu treinamento para isso é fantástico) será levado para fora do cativeiro por seu próprio algoz. Com Alice, temos a idéia do mundo diminuto e paralelo à realidade vivida por eles, com pitadas de beleza providenciadas pela amorosa mãe.  A literatura usada como bálsamo e salvação.
A segunda parte narra a adaptação deles ao mundo real pós-cativeiro. Essa fase é pontuada por cenas emocionantes e tensas protagonizadas pela família de Joy. Aquela idéia de que a vida cá fora não parou para esperá-los ronda o filme. Sua mãe, já separada de seu pai, vive um segundo casamento e os acolhe amorosamente em seu novo lar. Já seu pai tem dificuldades para aceitar Jack, para ele o garoto é o resultado de um crime. Destaca-se como uma das forças do filme, o poder sem limites do amor materno em suas variadas dimensões, de 10m² ao infinito azul. O afeto incondicional de Joy por Jack e o de sua mãe por ela e pelo neto rendem grandes cenas, dentre elas o primeiro corte de cabelo do menino.

A partir de um drama inimaginável para qualquer um de nós, o filme opta por narrar uma história de rara beleza que nos põe em contato com diversas e confusas questões. Dentre elas, a eterna pergunta platônica sobre o que é mesmo o real. A cena em que Jack volta ao cativeiro e descobre como aquele quarto/mundo era pequeno é puro lirismo e relativização das verdades, pois tudo depende do ponto de vista e do tamanho do nosso mundo. Mundo que vai se ampliando com filmes como esse. Digno de Oscar de melhor atriz para a intérprete de Joy, Brie Larson,  e de ser revisto algumas vezes para que possamos também, pelas mãos de Alice, nos refugiar em outros mundinhos...

 

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Totalmente Demais e o jogo dos triângulos

A novela das 19:00h  geralmente é marcada por tramas cômicas e leves. Como num laboratório no qual se realiza experiências diversas (novos autores, novos atores, novas fórmulas), porém sem explodir nada. Ela cumpre sua função de entretenimento sem causar grandes discussões nacionais, como costuma acontecer nas tramas das 21:00h, pintadas através de tintas mais fortes.
Com Totalmente Demais não foi diferente. Há muitas novidades na trama, tais como: Comediantes fazendo papeis que lhe exigem mais que fazer rir (Dorinha e Zé Pedro ), estreantes brilhando como coadjuvantes (Lu e Max!!!), cantores convencendo  na interpretação (Montanha), até capítulo  final em uma segunda-feira (30-05), dentre outras boas novas.  Tudo isso sob a batuta de dois novos regentes, Rosane Svartman e Paulo Halm.
Todavia, as tramas se sustentam mesmo é da permanência e não da ruptura. Todas elas seguem algumas matrizes, temas que costumam se repetir sempre. São os chamados Plots, espécies de espinha dorsal da narrativa. As novelas, assim como a maioria dos romances, são multplots. Doc Comparato elencou vários deles em seus escritos sobre teledramaturgia. Vejamos os principais que aparecem nessa trama e em muitas outras:

1 PLOT DE AMOR: Um casal que se ama é separado por alguma razão, volta a se encontrar e tudo acaba bem;
2. PLOT DE SUCESSO: Alguém que ambiciona o sucesso, com final feliz ou infeliz, de acordo com o gosto do autor;
3. PLOT CINDERELA: É a metamorfose de uma personagem de acordo com os padrões sociais vigentes;
4. PLOT DO TRIÂNGULO: É o caso típico do triângulo amoroso.

Os leitores e espectadores já devem ter reconhecido as várias personagens e seus dramas representados nos plots acima (além de lembrar de outras tantas novelas sustentadas nesses alicerces). Elisa/Jonatas (1, 3 e 4), Carolina/Artur (1, 2 e 4), poderíamos remontar  e brincar com esses números em variadas combinações, com jogos de triângulos para todos os lados. E, veríamos ainda mais, se lançássemos nosso olhar para outros pares e trios como Florisval/ Rosângela, Lili/Germano e para outros núcleos mais secundários da narrativa.
O novo na novela e na literatura parece mesmo consistir em recontar o velho de uma nova maneira, através de histórias que continuem a nos interessar, a nos encantar e a nos manter curiosos pelo final. Como o sultão de Sherazade que adiou sua morte por 1001 noites, só para saber o final da história e acabou por se apaixonar e querer ouvi-las pelo  resto de sua vida.
Totalmente Demais soube explorar bem as novidades e caminhar na trilha segura da tradição. O final se guia pela famosa pergunta: Com quem ficará Elisa? E nós torcemos por Jonatas, herói cheio de virtudes cavalheirescas. Porque também torcemos por uma Carolina redimida ao lado de Artur, Gabriel e Jojô. Juliana Paes fez um bom papel, foi da temível protagonista de O diabo veste Prada à descontrolada e frágil mulher que ama demais e que agora dá lugar à mãe devotada, capaz de amar incondicionalmente uma criança fora de todos os padrões desejados pela maioria das pessoas que buscam adoção (o discurso da juíza que lhe deu a guarda foi emocionante). Logo, a dantes vilã merece a redenção e um final feliz na lógica da ficção.
Além de O diabo veste Prada, a novela lançou mão de muitas outras fontes de inspiração. Chaplin, Bonequinha de Luxo, E o vento levou, dentre outras referências cinematográficas, dividiram o palco com as leituras de poesia constantes de Artur, que curava suas dores através do consolo dos livros e com muitas músicas do nosso cancioneiro popular, a embalar as dores de cotovelo das personagens. Nem só dos bastidores da moda e da publicidade viveu a novela, os fios intertextuais também fortaleceram o tecido e fizeram dela um bom refúgio para os intervalos dos noticiários.
As loucuras de Cassandra, os dramas dos que sofrem de fartura e de miséria, a crueza das ruas, a magia do cinema, a interpretação de Glória Menezes e Reginaldo Farias e os preconceitos múltiplos trouxeram bons e necessários momentos na pausa do cotidiano.
E como não há mesmo nada de novo sob o sol, mas continuaremos buscando seu calor, semana que vem teremos remake de Sassaricando. Haja coração!




sábado, 7 de maio de 2016

Das astúcias do Velho Chico


Velho Chico, em sua atual fase, que se passa no ano corrente, vem sofrendo algumas críticas relacionadas à mudança do tom. Sobretudo, no que diz respeito ao Coronel Saruê. Saiu de cena Rodrigo Santoro, marcado por um perfil mais dramático ao carregar o fado de assumir um papel que não queria, e Surge Antônio Fagundes, personagem mais próxima de uma caricatura que reúne em si um mix de coronéis da ficção e da nossa penosa esfera política. Na sua genealogia destaca-se Odorico Paraguaçu de O Bem Amado, não só pelo tom da oratória e dos exageros, mas também pela remissão às inesquecíveis Irmãs Cajazeiras. O trio já apareceu nas duas festas da fazenda sempre a lhe elogiar, uma bela homenagem a Dias Gomes que soube como ninguém retratar o interior nordestino e a brasilidade.

Afora essa crítica, creio que foram introduzidos novos elementos bem interessantes para dar novos ventos aos rios da ficção. O surgimento do amor encantado de Bento (pungente interpretação de Irandhir Santos, Zelão de volta) e Beatriz ( professora idealista, casa tão bem com a beleza simples de Dira Paes)  é pura poesia.  Abençoado pela linda presença da mãe-benzedeira Ceci ( forte e doce papel de Luci Pereira), vem desviando o nosso olhar do eixo principal de Santo e Tereza, com esse romance místico-carnal. Essa semana viveram uma linda cena. Ela, o fruto maduro a ser colhido no pé de Juazeiro. Ele, a descoberta do amor tardio que chega a transbordar em lágrimas. Lirismo em alta voltagem a nos emocionar(Vixe, minha mãe!).

Outro aspecto digno de nota foi a solução encontrada pelos autores para substituir o Padre Romão. Com o falecimento do ator (Umberto Magnani), os autores se viram diante de uma das marcas que definem a natureza da telenovela como Obra Aberta (Umberto Eco), a possibilidade de mudanças imprevisíveis durante a trama. Eis que surgiu Padre Benício (magistral Carlos Vereza), que ao ser questionado pela ausência do colega, informa que “ele saiu sem se despedir de ninguém”, que bela metáfora para a morte repentina que chega sem avisar, essa “indesejada das gentes”. E ainda explica que eles têm a mesma formação e preocupações sociais.  Chico Criatura (Gésio Amadeu), personagem importantíssimo para a costura da trama porque tudo ouve e tudo vê do seu balcão, resumiu a mudança com o ditado popular: “Então trocamos seis por meia dúzia”, ou seja, o papel do padre será tocado em frente sem prejuízos para a narrativa. E nós aceitamos o pacto do fingimento e já nos confessaríamos com o novo padre.

A chegada de Miguel (Gabriel Leone) também balança as novas águas. Idealista, imbuído de todo um discurso ecológico, porá em dúvida as certezas arcaícas do avô e traz frescor para a história, com seu modo humanista de ver o mundo. Além de sua paternidade problemática e do complexo de Édipo evidente, tudo indica que essas inclinações ideológicas o levarão ao encontro de seu pai biológico e a um possível indício de um romance incestuoso com a irmã (creio que Luzia, patológica como mais uma mulher que ama demais, terá que desenterrar o segredo das cartas). Seu horizonte de ideais se alinha muito mais ao modelo econômico da Cooperativa que ao dos latifúndios, é a força do sangue que o atrai.

E por falar em sangue, o retorno de Martim (Lee Taylor) em busca de sua história de vida através da família materna, também tem rendido belas sequências. A viagem inóspita ao passado, as memórias vistas pelas lentes de sua câmera e os depoimentos de narradores orais bem simbólicos (o velho, o cego) contribuíram em muito para a beleza da narrativa e vão construindo com pequenos retratos o album da família que ele desconhece.

Sigamos pela Gaiola Encantada da ficção ao sabor das benzeduras e garrafadas de Dona Ceci...

 

 

sábado, 9 de abril de 2016

O Amor de perdição de Tereza de Sá Ribeiro e Santo dos Anjos


 

 

Há um rio afogando em mim
Secando, secando, secando
Tem rompante os mistérios que já vi
Esperando, esperando, esperando o fim

Foi na margem do meu peito
Que você pisou e se fez dona
Só pra magoar minha ciranda
Que desanda, que desanda, se diz andar

Esse peso desaba e condena
A faminta pescadeira
E por mais que você não sinta
Ramos e remos, cores e troncos
Coroas viúvas
Do coito do corpo
Do corte da lua
Do sol do luar

Foi na margem do meu peito
Que você pisou e se fez dona
Só pra magoar minha ciranda
Que desanda, que desanda, se diz andar

Se esse rio desaguar em ti
Viverás, viverás, viverás sem mim
E se não acontecer assim
Morrerá, morrerá, morrerá enfim

 

 Os belos versos da música Margem, dos baianos Paulo Araújo e João Filho, umas das canções da trilha sonora de Velho Chico, que aliás tem se destacado, entre outros atributos, pela qualidade e variedade das músicas que vão costurando o enredo e dando o tom das histórias narradas (boleros, Tropicália, os violeiros, samba-canção, um mix da musicalidade brasileira). Como se fosssem vozes de um coral que vão regendo a novela, a trilha sonora cumpre seu papel de ser também um elemento narrativo. Como na música, o amor de Santo (Renato Góes, atuação surpreendente) e Teresa (Julia Dalavia) pode sufocar e morrer, pois configura-se como um amor de perdição. Mote de várias histórias alimentam a nossa tradição literária.

O amor entre jovens de famílias inimigas, ou reinos inimigos,  é o tema dos famosos amantes shakespereanos de Verona, Romeu e Julieta, uma das matrizes literárias das histórias de amor ao longo dos tempos. Ao lado de Tristão e Isolda, simbolizam o amor sem um final feliz romântico que tanto desejamos ver nas tramas e na vida. Esses fios também  alimentam  outro grande clássico da Literatuta portuguesa, Amor de Perdição(1862) de Camilo Castelo Branco. Igualmente oriundos de familias rivais, Simão Botelho e Tereza Albuquerque viveram um amor malfadado que lhes conduziram à perdição.

Assim como Santo dos Anjos e Tereza de Sá Ribeiro, os personagens portugueses  foram separados por suas famílias, ela vai para o convento e alimenta a dor do seu amor através das correspondências banhadas de lágrimas (para falar do papel das cartas nas tramas romanescas precisaríamos de um tratado, basta de lembrar de O primo Basílio ou São Bernardo só para provocar as lembranças), a separação e o peso da distância regam o sofrimento amoroso, vivificado somente através das memórias dos encontros clandestinos. Em Camilo, um amor casto, em Velho Chico, ardência consumada nas águas eróticas do rio.

Na trama contemporânea, em lugar da generosa Mariana, que mesmo apaixonada por Simão, é tão fiel que o ajuda a viver seu amor, temos Luzia (Larissa Goes), ardilosa, ressentida, invejosa, que ao extraviar e queimar as cartas, sela o destino da separação dos dois. A cena dela mentindo para  a mãe de Santo (Cyria Coentro, reinando como matriarca forte/frágil) sobre o conteúdo da carta foi espetacular. Além do suspense da cena, vale destacar a questão social do analfabetismo, que fez com que Piedade aceitasse sua versão como verdade.

O drama desse outro amor de perdição alimentou essa última semana com maestria. A severidade do pai, os protocolos conventuais com seus segredos e sussurros, a mãe solteira como uma mácula familiar, a fragilidade/brutalidade do Coronel diante do dilema familiar (o seu pranto em posição fetal foi simbólico desse abandono do amor materno, sua mãe, com licença do trocadilho, é a Encarnação do Diabo), o papel de Iolanda como uma deslocada naquele clã e  o conflito da mãe de Santo entre a felicidade do filho e a questão da rivalidade, elementos que compoem uma boa história de ser contada e acompanhada com sobressaltos e  emoções  pelos telespectadores

Segunda (11-04), entraremos em outra fase, penso que essa atual poderia render mais, mas novos afluentes nos aguardam. Os rios seguem cortando no peito dos protagonistas desse amor de perdição revisitado. Como na Quadrilha de Drummond, os pares foram trocados por forças externas aos seus desejos, a ciranda desandou como nos versos da música que servem de epígrafe para essa nossa reflexão, todavia na arte e na vida, os pares podem se cruzar por aí e espantar a saudade, essa “palavra triste quando se perde um grande amor”...e desaguar em mim e em ti do lado de cá da tela...afinal, o amor é o tema dos temas...

 

           

domingo, 27 de março de 2016

Primeiras águas: Velho Chico – um rio caudaloso e seus percursos


A novela Velho Chico, de Benedito Ruy Barbosa e seu clã, nas suas duas primeiras semanas de exibição já diz a que veio: emocionar o espectador afeito aos dramas de nossa brava gente brasileira. Promete e tem cumprido a função de nos levar ao encontro dos grotões do Brasil rural com todas as suas cores e tintas, sons e sabores. No primeiro capítulo, cenas passadas numa Feira Livre, (espaço por excelência de encontros e matrizes de tantas cidades brasileiras) trazia num palco mambembe a encenação de um mito fundador do Rio são Francisco. Teria ele brotado das lágrimas da índia Iati, habitante de uma tribo da Serra da Canastra, que ao chorar pela morte do guerreiro amado, dera vida ao protagonista que nomeia a  trama. Mais adiante (e já em muitas cenas) soa como música de fundo a belíssima oração de São Francisco de Assis, explorando um dos eixos principais da trama, a fé católica de herança portuguesa vista sob várias nuances. Em outra cena Doninha (Bárbara Reis), brilhante no seu papel, representante da matriz africana, uma espécie de griot, contadora e guardiã  de histórias, narra para as crianças uma lenda da serpente de fogo ligada à origem dos ancestrais da Casa Grande que ela habita. A novela é portanto um pedaço do Brasil, um pedaço de nossa história, escrita por tantas mãos, canetas e armas. Rio nacional caudaloso que atravessa os espaços e as personagens da novela.
Afrânio de Sá Ribeiro (Rodrigo Santoro volta às novelas com tudo), o novo Saruê, coronel à contragosto é o próprio herói problemático, angustiado pelo destino que não era seu, mas foi chamado a cumprir. Saltando das páginas de Jorge Amado, Adonias Filho, João Ubaldo, Ariano Suassuna, Lins do Rego ou ainda Guimarães Rosa, vive num embate interno e externo, representado pelo dentro e fora da Casa. Da relação doentia com a mãe, a diabólica beata Dona Encarnação (Selma Egrei, um quê de Gabriel Garcia Marquez), da influência perniciosa do capataz Clemente (Júlio Machado), do amor interrompido naquele outro mundo da Tropicália, do conflito dos negócios, do casamento na ponta da faca à viuvez prematura, emerge um drama em gente, que não conseguimos rotular de bem ou mal. O que sabemos é que é pungente assisti-lo e prazeroso acompanhar os demônios que lhe habitam. Talvez seja essa a cabeceira do Rio, mas há outros afluentes dignos de nota.
A casa do Capitão Rosa (Rodrigo Lombardi) e Dona Eulália (Fabíula Nascimento), espécie de voz socialista em meio aquele capitalismo-coronelismo-voraz, é um espaço de afetos. Adoção, fraternidade, generosidade, trabalho digno, amor verdadeiro que acolheu a família de Belmiro (um Oscar para Chico Diaz e Cyria Coentro, casal de retirantes espetacular) e  na dor e no leite materno se irmanaram. Em contraponto com a Casa dos saruê, aqui é um lar, com uma mesa sempre posta e lume aceso.
Na figura do Padre Romão (Umberto Magnani) temos um amálgama de várias faces do catolicismo que vai de Padre Cicero (físico bem semelhante), passa pelas causas sociais (vide cena do soro caseiro), à uma visão teológica panteísta (sua explicação lembrou um poema de Alberto Caeiro), sem perder a função de conselheiro e pastor daquele rebanho, gado difícil de conduzir.
Notemos ainda a sofisticação de algumas estratégias narrativas presentes na trama. A presença das cantorias dos violeiros, que como uma espécie de coro-grego-sertanejo vai amarrando as pontas soltas da narrativa através de suas melodias. O ritmo frenético do primeiro capítulo (sexo, drogas e Tropicália) para situar em que mundo vivia Afrânio em Salvador e em que mundo ele passaria a ser Senhor, lugar onde o tempo está estacionado e as relações são ainda coloniais/medievais, aqui seu diploma de Dr. nada vale. Ou ainda as conversas no Bar/Armazem, único espaço de socialização, simulação de um parlamento no qual os discursos emergem à cada gole de pinga.
Outro aspecto digno de nota é a qualidade da direção de arte, figurino e fotografia com a assinatura inconfundível e autoral de Luiz Fernando Carvalho. Há muito a se elogiar em todas as cenas. Escolho aqui a casa de Leonor (Marina Nery, versão cabocla de Maria Fernanda Cândido/ Sophia Loren) com suas paredes sem reboco ou tintas amareladas, santos esmaecidos, escassa mobília de madeira, potes de barro, lençóis no “quarador”, retratos pintados, enfim uma casa sertaneja com certeza. Os altares, tanto das igrejas e capelas quanto das casas, é outro espetáculo pormenorizado em grande estilo.
Nesse rio e sob ele, nesse pedaço de Brasil, cabem muitas histórias. Latifúndio versus minifúndio, ideais cooperativistas, criança desaparecida, religiosidade mística e carnavalizada, amores vibrantes, vinganças de família, ingredientes que nos prendem nesse barco da ficção desde sempre. Que o Nego D’água e as Carrancas mantenham a narrativa navegando nesse fluxo! Em breve as águas baixarão e veremos o que ainda nos reserva os outros portos desse novelão!
 
 

sábado, 12 de março de 2016

As Regras do jogo – O juízo final


O final de As Regras do jogo  já não guardava tantos segredos assim. Além do assassinato de Gibson (o mistério foi curto, não virou uma questão nacional como a de Odete ou Salomão), restavam poucos desenlaces.  O ápice se deu no tabuleiro de xadrez com todo os vilões reunidos na mesma sala e vestidos de preto e branco prontos para o xeque-mate com os mocinhos Juliano-Dante(esses só mocinhos mesmo e muito bons representantes do Bem), jogo que inspirou a trama como mostrado em sua abertura. A luta do bem e do mal, representada por personagens ambíguas que oscilavam o pêndulo para lá e para cá todo o tempo, jogou também conosco que oscilamos sobre qual partido tomar. Sejamos sinceros, não somos tão bonzinhos assim, queríamos um final feliz para Atena e Romero, e Ascânio é claro. Mas também adoramos os casamentos e as crianças(Merlot contribuiu bastante, até a cobertura de Copacabana ficou pequena), símbolo maior da perpetuação da vida e do final feliz em contínuo.

Vários diálogos durante a trama reforçavam essa idéia de que não somos uma coisa só, ouvimos de Zé Maria, que ia da extrema ternura ao bruto ódio na mesma cena, que “ninguém é uma coisa só”, temos nossa luta diária entre nossos anjos e demônios. Romero Rômulo era o principal símbolo dessa duplicidade, lutando o tempo todo com essas faces culturalmente dicotômicas. Talvez sua doença, um pouco esquecida no correr da história, fosse uma metáfora dessa luta que o punha em processo degenerativo, carnavalizado em ritmo de rock and roll. A fala de Juliano para ele sobre sua disputa constante na hora de apertar o gatilho foi bem emblemática e, por fim, ele optou pelo bem, como soe acontecer nos finais. Ele foi purificado pelo amor, ainda que bandido, de Atena e pela lembrança afetuosa de Djanira.

Penso que a questão principal da facção perdeu um pouco o foco no correr do tempo, mas ainda assim somou muitos acertos. Como trama realista e verossímil que foi, os ecos do momento político estridente que vivemos reverberaram nos discursos dos protagonistas nesses últimos dias, acertou em escancarar a força do crime organizado e seus tentáculos em todos os espaços, além das Ongs e Fundações de fachada que pipocam nos noticiários de tempos em tempos. Creio ainda que a novela brilhou mais nos núcleos secundários como a excêntrica família de Feliciano e a turma da Macaca.

A idéia da Macaca como espaço idílico, colorido e solar onde os de fora corriam para resolver seus problemas e crises, a despeito de que os habitantes de lá traziam outros tantos problemas, foi muito feliz. O quarteto Oziel-Indira-Rui-Tina nos rendeu boas cenas, o drama de Domingas e Juca foi bem explorado(  dispensaria o drama deslocado e facilmente descartável de César/Rodrigo), o universo do funk e das "Mandada" uma deliciosa caricatura, Adisabeba poderosa como a Jocasta do Morro.

Assim vamos concluindo que não foi uma grande trama, mas uma trama com grandes cenas e texto irretocável. Concordemos que é muito difícil fazer outra Avenida Brasil, mas João Emanuel Carneiro é uma estrela da nova geração e não vai viver sob a sombra de um sucesso único, como já mostrou em A Favorita, além de contar com colaboradores talentosos como o baiano (feirense) Claudio Simões. Tony Ramos ainda consegue ficar melhor a cada papel, aqui se metamorfoseando várias vezes para ocultar suas verdadeiras intenções, falando eloquentemente pelo olhar e pelos silêncios. Tonico Pereira, brilhou, solou com Ascânio, despertava em nós sentimentos que variavam do asco à piedade em segundos, era um cordeiro em pele de lobo e vice-versa. Vamos em frente e Vitória na Guerra pela audiência, porque segunda vamos navegar em outras águas que já nos convidam a mergulhar nesse outro Brasil. Salve, Velho Chico!

 

 

terça-feira, 8 de março de 2016

Êta Mundo Bom...Um Caldinho Cultural


 

    A novela Êta Mundo Bom! de Walcyr Carrasco nos brinda todos os dias com uma trama leve, divertida e deliciosamente previsível. Entendemos aqui o previsível como uma virtude e não um defeito a ser cobrado. Pautado claramente nos pilares folhetinescos, já sabemos o que esperamos, mas mesmo sim é prazeroso acompanhar. O bem e o mal devidamente separados,  identificados e bem representados em personagens que não jogam com o telespectador. Já dizem a que vem desde o inicio, como é o caso da megera vivida por Flávia Alessandra, a antagonista loura má, papel dantes vivido por ela mesma em Alma Gêmea.

    O enredo dialoga com muitos clássicos da literatura, uns de forma mais explícita, outros mais oblíquos. O Cândido de Voltaire é a mola mestra da trama, nomeia o protagonista e ecoa em todo seu núcleo, com alguns ajustes de nomes e papéis. O professor Pangloss, virou Pancrácio (nome machadiano), na excelente interpretação de Marco Nanini, fazendo vários papéis para sobreviver sem trair seus princípios filosóficos (lembro-me bem de Um Sonho a mais quando ele e Ney Latorraca vestiam-se de mulher, pura transgressão nos anos 80), pautado no otimismo absoluto de vivermos nos melhores do mundo, mesmo com tudo desmoronando ao seu redor. Os filmes de Mazzarropi, personagem simbólico do matuto brasileiro ( a La Jeca Tatu de Monteiro Lobato) é outra fonte explícita.

    Além disso, podemos ir desenrolando o novelo da trama e vendo ecos  de O Pagador de promessas de Dias Gomes( a amizade com o burro), O jardim secreto através do pequeno cadeirante maltratado pela madrastra ou o próprio fato de o burro chamar-se Policarpo, o que nos remete a Lima Barreto. É um belo caldo cultural que vai engrossando nossa sopinha das 18h e nos fazendo vibrar pelas soluções simples e certeiras. Também vale notar que o autor dialoga com ele mesmo, para além do intertextual, temos o intratextual, pois estamos novamente apreciando em alguns momentos os mesmos motes de O cravo e a rosa, Chocolate com pimenta e Alma gêmea, outros saborosos sucessos de Walcyr também exibidos na boca da noite.

    Socialmente, temos um Brasil com os valores dos anos 40, a virgindade como tesouro moral, a sexualidade velada( a cena do cegonho foi hilária), o patriarcardo-machista que oprime as mulheres (núcleo de Tarcísio Filho é um prato cheio), a religiosidade crédula, a mãe solteira  excomungada do seio da família, entre outros temas tabus que nos fazem até sorrir hoje. A pensão é um capítulo à parte(todas as pensões nos remetem a Balzac e a Eça), um microcosmo perfeito dos vícios e virtudes humanas, uma amostra de todos nós. Cenários, figurinos, trilha sonora e diálogos bem construídos dão um tom de inocência e beleza típica do nosso amado maniqueísmo.

    A trama é boa porque simplesmente é boa, como na novela do rádio que os personagens vão acompanhando e se emocionando(metonímia do encantamento das narrativas, seja qual for o veículo). As ações vão se desenrolando agilmente, com grandes possibilidades de redenções amorosas como  acontece com os melhores folhetins, afinal um Romeu tem que render-se à sua Julieta. E nós seguimos torcendo por Candinho e  por todos os mocinhos e mocinhas, e até mesmo pelos vilões. Eta, lasqueira!!!

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Minhas tardes com Margueritte: um canteiro de palavras e afetos


Filme Francês de 2011, dirigido por Jean Becker, adaptação do livro de Marie-Sabine Roger, La tête en friche, que significaria, aproximadamente, em português: cabeça ainda não cultivada. No Brasil, recebeu o doce nome de Minhas tardes com Margueritte. Juntemos os dois títulos e temos uma idéia perfeita do roteiro do filme. Uma bela história da amizade improvável entre uma senhora culta, elegante e solitária e um bronco de meia idade, que vive de bicos e tem como marca maior uma dificuldade com a linguagem. São antagônicos em tudo, peso, idade, cultura, sofisticação, todavia serão atados através da aprendizagem simultânea desses mundos tão aparentemente distantes. Margueritte (Gisèle Casadesus) e Germain (Gérard Depardieu) representam com fulgor esse misto de drama com toques bem dosados de comédia. Ela especialmente parecida com Dona Cleonice Berardinelli, nossa mestre maior da Literatura portuguesa no Brasil, para mim um grato presente.
Conhecem-se numa praça onde observam um bando de pombos (sempre unidos e protegendo uns aos outros, um dos símbolos da agregação e da necessidade de nomear o mundo, principais temáticas do filme). Ela sempre lendo seus clássicos, desperta o interesse daquele homem. E daí as conversas começam e se enredam com a história da vida sofrida dele, mostrada através de magníficos flashbacks, que nos põem a par de sua trajetória de vida como filho único e sem pai de uma mãe impiedosa e de suas muitas dificuldades com a linguagem e a leitura, frutos de uma escola cruel com professores igualmente cruéis.
Uma das cenas mais belas do filme acontece quando Margueritte (com dois tt, dado relevante para seu processo de encantamento com a linguagem) lê para ele A peste (1947), obra prima de Albert Camus, e as imagens da epidemia dos ratos vão invadindo sua mente e a nossa também (outra representação feliz do filme, a forma como a literatura é capaz de trabalhar e ampliar nossa leitura de mundo).
Destaca-se também a relação de Germain com o dicionário, na cena em que ele vai lendo no Petit Robert, presente da sua mestre, o significado de algumas palavras para o seu gato, tentando reproduzir o que sua amiga sábia faz com ele, mas esbarra na complexidade da língua que não dá conta de nomear plenamente o mundo, a variedade de seus tomates por exemplo.
 
Ainda vale ressaltar, o ciclo de amigos de Germain e a relação com sua namorada (vai crescendo ao longo do filme), ainda que gozadores e canalhas há ali um princípio de fraternidade. São solidários ao seu modo, mas como  um dos motes do filme, é “é difícil dizer”, emblema disso é a tentativa cômica  de Germain em consolar a matrona dona do bar, abandonada pelo amante jovem por uma mocinha, as emendas são sempre piores que os sonetos. Todavia, na medida em que seu processo de letramento com Margueritte vai se desenvolvendo, torna-se difícil sua comunicação com esses antigos pares, seu mundo vai ficando maior, assim como seu canteiro de hortaliças. Já com a namorada, o conhecimento que vai adquirindo melhora em muito a qualidade de seu amor por ela, o romance fortuito se transforma no final em uma família com a presença inesperada de Margueritte como membro especial, outra sacada inteligente do filme, as famílias vão muito além dos laços de sangue.
 
Filmes assim são edificantes para além do prazer da experiência estética, pois nos faz acreditar no poder dos laços afetivos e na magia do conhecimento através dos muitos livros citados na trama e das conversas profundas entre as personagens. Saímos melhores depois de uma hora e vinte minutos imersos no universo de tanta sensibilidade ao retratar o mais fino tipo de amor: A amizade, que só é verdadeira quando se dá através da partilha. E emoldurada pela força encantatória dos livros e das palavras ficou ainda melhor...

 

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Ligações perigosas: Entre cartas, alcovas e sussurros...

 
A minissérie exibida nesse início de ano é uma adaptação do clássico francês Les liaisons dangereuses, de Choderlos de Laclos(1741-1803), publicado em 1782. Romance do gênero epistolar que narra, ao longo de mais de uma centena de cartas, os bastidores da aristocracia francesa antes da Revolução(1789), através da correspondência  entre A Marquesa de Merteuil e o Visconde de Valmont. Ricos, frios, libertinos, ociosos e amorais, encontram seu prazer na manipulação e sedução. Aliás, essas são as palavras de ordem da obra, também e tão bem preservadas na adaptação brasileira (bem como para o cinema americano nos anos 80, excelente filme com Glenn Close e John Malkovich).
Escrita por Manuela Dias com supervisão de texto de Duca Rachid, direção geral de Vinícius Coimbra e direção de núcleo de Denise Saraceni, a trama foi ambientada no Brasil na primeira metade do século XX. Com fotografia, figurino, cenário e texto irretocáveis, temos a nossa Marquesa, Isabel D´Ávila de Alencar (Patricia Pillar) e o nosso Visconde, Augusto de Valmont (Selton Mello). Mestres nos jogos vorazes dos destinos, usam as personagens ao seu redor como se a vida fosse um tabuleiro, onde eles vão movendo as peças e conduzindo os fios das criaturas que se tornam títeres indefesos em suas mãos, fantoches dirigidos pelo casal de protagonistas. Vale lembrar que manipular vem do latim manipulus, manipulare, manipulatio, manipulator, compostos por sua vez das raízes latinas manus (mão) e pleo (encher), ou seja, sob suas mãos se enredam todos.
Um dos aspectos mais intressantes da trama é o tom de segredo metaforizado pelas cartas e seu lacre vermelho. Tudo é muito sutil, muito silencioso, muito baixinho,  os sussurros vão regendo a narrativa, como as teias da aranha que vão lentamente atraindo suas presas. Através das frestas das portas, do trançado das gelosias, da fechadura das alcovas, das remadas dos botes  e dos cocichos dos subalternos os planos de sedução e vingança vão se concretizando na penumbra, enquanto nas salas e salões toda a luz é mantida.
Nessa mesma cadência do sussurro, segue o erotismo explorado a cada capítulo, sempre em doses bem administradas (manipuladas de acordo coma necessidade do paciente), pois os manipuladores não tem pressa em retardar seu gozo de prazer, triunfo e vingança. Basta que descubram as fraquezas das presas (todos temos), pois como no conto de Machado de Assis, A igreja do diabo, em cada manto de seda há uma franja de algodão, puxemos a ponta e a virtude pode virar vício.
Nossa Marquesa é a própria encarnação da Viúva Negra, megera indomada, dissimulada e charmosa. Nosso Visconde, o próprio Don Juan, o prazer reside na conquista, uma vez sua, já não lhe serve, é hora de partir para outros lençóis. Todavia, os planos começam a ruir e prevemos que serão mudados de fato, pois vejam só, tem um amor no meio do caminho. E este Senhor costuma ter mania de alterar os rumos, não importa quais sejam as regras do jogo. O nosso Visconde dos trópicos começa a se render à doce e pia Mariana( como a Sóror Portuguesa), troféu tão difícil de conquistar, tão frágil e tão forte, agora consumida pela culpa que tenta expurgar com o seu sangue(esperamos que não tenha o mesmo fim de Emma, Luísa ou da Dama das Camélias).
Como leitores/espectadores românticos que somos, torcemos pela redenção, pela remissão dos seus pecados pela via amorosa. E enquanto isso seguimos curiosos pelos segredos sussurrados  sob o lacre vermelho...Pois mais adiante, o tom é outro, o vermelho é outro, é uma guerra, Neguinho...

sábado, 21 de novembro de 2015

Que horas ela volta? Arquitetura social e afetiva do Brasil


Que horas ela volta? Arquitetura social e afetiva do Brasil

 

O filme Que horas ela volta? (2015), escrito e dirigido por Anna Muylaert, nos convida a enfrentar uma incômoda questão brasileira herdada de nossa história colonial: O difícil lugar da empregada doméstica no nosso país. Regina Casé protagoniza de forma visceral a nordestina Val, que migra para São Paulo para trabalhar numa casa de classe alta no Morumbi, para poder sustentar sua filha, Jéssica, que ficara em Pernambuco com os envios mensais para suas despesas, preço de sua ausência. Servirá a todos devotadamente, com aquele misto de profissional “como se fosse da família”

Nessa casa mora um casal e seu filho Fabinho (Michel Joelsas), a quem Val dedica todo amor que seria dispensado a sua menina. D.Bárbara (Karine Teles), Seu Carlos (Lourenço Mutareli) são estereótipos típicos da alta burguesia. Ele um artista improdutivo e em crise que vive de herança, sempre sorumbático. Ela, fútil, distante e carente. Fabinho só conta mesmo no plano afetivo com o colo e os abraços de Val. E há de se afirmar, sem nenhuma dúvida, que o amor entre eles é verdadeiro.

A rotina massante da casa será quebrada com a  chegada de Jéssica (Camila Márdila), que vem prestar vestibular para Arquitetura (estimulada pelo seu professor de História) e abala toda a planta da casa, estruturada sob os ditames de Casa Grande/Senzala. A jovem teima em circular e ocupar os espaços que a mãe nunca cruzara. Daí brota o conflito do filme. Há uma fala de D. Bárbara, quando é apresentada para ela, que traduz muito um dos focos do filme: “É, esse país está mudando mesmo.”, quando descobre que a jovem prestaria o mesmo curso e universidade que seu filho e que, além disso, tem voz e opiniões próprias ou impróprias para sua condição.

Aliás, a presença da Arquitetura no filme é deveras simbólica, discutindo sempre a temática do espaço social, seja ele geográfico ou sentimental. Uma das grandes metáforas da trama é representada pela piscina. Local de lazer onde Val nunca entrou. Sua filha foi jogada  nela de brincadeira (cruzando a fronteira) e por essa razão a patroa manda esvaziá-la, inventando a presença de um “rato”. Uma das grandes cenas do filme se passa nesse retângulo, quando Jéssica é aprovada para a segunda fase do vestibular (Fabinho perde)  e sua mãe liga para parabenizá-la de dentro da piscina. Mesmo vazia, é para Val uma grande subversão, carnavalização total.

Ainda quanto aos espaços, vale destacar a visita ao Ed. Copan, a ida à Universidade sempre guiadas pelo Patrão. Ele é atraído pelo ímpeto da jovem naquela casa, tão estéril de sentimentos e comunicação, confunde seus sentimentos para desespero de Val. Bem como os quartinhos e casas da favela alugados pela mãe e pela fiha quando resolvem sair da Casa Grande.

O filme é muito sensível na construção dos detalhes. Ele não é só bom porque é engajado ou revolucionário. É bom, sobretudo, nos detalhes que simbolizam a presença das diferenças sociais e seus intricados elos. Observem com atenção o sorvete, a cadela, as fotografias, o almoço dos empregados. Tudo é costurado com agudeza, como o preto no branco, ou o branco no preto do jogo de xícaras difícil de ser arrumado e equilibrado, dado como presente de aniversário para a patroa por Val e rejeitado por ela. Notem que será subtraído para sua morada e brindado com alegria, inaugurando sua nova vida quando se demite, pois essa sim é uma ocasião especial.

A narrativa é incômoda, como a resignação de Val em algumas cenas ou como a presença deslocada de Jéssica naquela mansão(hospede ou filha da empregada?) porque põe a lupa para dentro das casas, escancarando seus problemas, metonímia do Brasil contemporâneo. É também extremamente sensível porque os dramas humanos unem os homens e mulheres, unem mães e filhos. Afinal, seja Fabinho, Jéssica ou o seu filho, todos querem saber Que horas elas voltam?

 

terça-feira, 10 de novembro de 2015

A paternidade labiríntica em As Regras do Jogo


A paternidade labiríntica em As Regras do Jogo

 

Em As Regras do Jogo, novela das 21 horas da Rede Globo, um tema em especial nos chama à reflexão: A representação da paternidade. Várias relações paternas são retratadas de forma complexa e, como no estilo inconfundível de João Emanuel Carneiro, nos convida a rever nossos paradigmas e estereótipos.

Zé Maria (Tony Ramos) que já traz a ironia no nome, em nada se assemelha ao que se anuncia. Um vilão ambíguo e enigmático que vai se revelando aos poucos, tem seu ponto fraco ( que faz oscilar o pêndulo entre o bem e o mal que a novela explora) no amor controverso que sente pelo seu filho Juliano(Cauã Reymond). Relação extremamente tensa, agora que seu filho descobriu sua face sombria. Um pai pode amar e prejudicar simultaneamente seu único filho em nome de sua irmandade/facção? Um filho pode querer a prisão do pai, antes idolatrado, em nome de sua sede de justiça? Nesse sacrifício de Isaac revisitado, tudo ainda pode acontecer. Personagens tão díspares questionam esse amor que seria incondicional.

Outra relação paterna inusitada é a de Romero Rômulo (Alexandre Nero) com Ascânio(Tonico Pereira). Ascânio seria o que se chama no jargão da malandragem seu “pai da rua”, o malandro que o acolheu na marginalidade e o ensinou as primeiras lições do crime, explorando o “potencial do filhinho”. RR seria uma espécie de Oliver Twist que nutre amor e ódio, raiva e pena, atração e repulsa, desprezo e piedade pelo seu mentor. Aliás, esses mesmos sentimentos são despertados em nós telespectadores pela brilhante atuação de Tonico Pereira. Para alargar mais esse modelo de família marginal entra em cena Atena (Giovanna Antonelli), que passa a ser mais um membro do clã, alimentando no ”velho” uma paternidade incestuosa, uma nova parceria, pois tudo naquele núcleo é meio amoral. Não esqueçamos que Tóia (Vanessa Giácomo) e Romero em tese são irmãos, pois são filhos da mesma mãe(ela, adotiva amada, ele, biológico rejeitado).

Na mansão dos Stuart, o patriarca capitalista e atormentado é desafiado pelo neto comunista, pela filha bipolar, pela esposa ética e pela neta rebelde. O genro que seria seu modelo de filho e sucessor é um blefe. E ainda há o mistério sobre a paternidade dos filhos de Nelita (Bárbara Paz), que, ao que sugere a trama, virá dos segredos da área de serviço.

Mas o PAI da trama é o nosso Feliciano(Marcos Caruso), um pai agregador, um amor sem reservas. Naquela cobertura, o metro quadrado mais habitado de Copacabana, o amor paternal transborda, há lugar para tudo e todos e o conceito de família vai ganhando novos contornos inimagináveis. Com aquela dose maravilhosa de humor e crítica de costumes, carnavalização completa.

Sigamos pelos labirintos da narrativa, à espera das surpresas que a trama ainda trará, a nos surpreender a cada capítulo com seu título inédito que nos convida para novas emoções e às novas regras...