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sábado, 21 de janeiro de 2017

Dois irmãos: As mil e uma noites de Nael...


A série Dois irmãos nos apresentou ontem seu último capítulo com a maestria dos grandes espetáculos. Um filme de arte exibido na televisão. As páginas do romance homônimo de Milton Hatoum ganharam vida pelas mãos hábeis de Maria Camargo, pela regência inconfundível de Luiz Fernando Carvalho, por uma produção de arte minuciosa e por um elenco que nos fez perder o fôlego em vários momentos. Os gêmeos rivais levaram às últimas consequências seu desamor desmedido para desespero e ruína da família, protagonizando a cena bíblica já antevista no mote da temática (pobre Zana,  ela era sim mãe de Caim e  Abel).

Havemos de destacar na série, ontem especialmente, a grande força dos símbolos. A casa desmoronando, as paredes nuas de lembranças, as águas sujas tudo devastando, as folhas secas, os móveis sendo arrastados ou encobertos (amortalhados), os sobreviventes da casa lembrando náufragos que tentam salvar alguns poucos objetos em meio aos destroços. Um conjunto de imagens que corroboram a ideia de decadência do clã. A casa, dantes fortaleza, sucumbe também, assim como seus membros.

Dentre os símbolos explorados ontem, não podemos esquecer o sangue que escorre da rede após a cena violenta entre os irmãos (um é calculista, fere sem sujar as mãos. O outro, força bruta, age agressivamente). Um elemento importante na simbologia familiar – o laço de sangue – foi utilizado para dar ênfase ao horror do quase fratricídio cometido por Omar. Domingas tenta lavar as marcas, esconder sempre as nódoas com sua servidão, mas o sangue persiste e suja as mãos da matriarca. Para Felipe Sellier[1], a história de Caim e Abel ecoa fortemente no imaginário dos escritores como fonte de inspiração: “o ódio de um irmão, o derramamento de sangue, a agonia e as andanças do culpado, a proliferação da violência constituíram uma surpreendente parábola, sempre presente nas literaturas ocidentais.”

 A rivalidade bíblica ambientada em Manaus no seio de uma família libanesa retomou tão bem esse tema universal e fez a pequena história cruzar-se com a História do país, nos emocionando verdadeiramente com a o capítulo sobre a ditadura e o AI5. Naquele dia tivemos muita pena de Omar, em Laval ele perdeu muito mais que um mestre, perdeu sua filiação a algo que o fez mais humano.

A atuação de Zana no seu grand finale é digna de aplausos. Giardini brilhou como num solo de ópera, ópera dos mortos, ao rever seus ancestrais, ao expor sua senilidade, ao apego à casa e às lembranças, ao ecoar sua eterna pergunta sobre a paz entre os irmãos. É interessante perceber em toda a trama a recorrência às fotografias e espelhos, rejeição da ideia de que os dois eram um só...Omar tratava sempre de destruir o que lhe lembrava a imagem do outro ...

E o que dizer de Nael, Irandhir Santos, personagem que considero um dos melhores narradores da contemporaneidade. Sherazade que também narrou para não morrer, sempre à espreita, sempre a observar por ângulos especiais e em closes únicos (os enquadramentos da câmera destacaram bem seu foco narrativo de soslaio) os segredos ditos e não ditos daquela casa. O herdeiro dos despojos, os ouvidos de Halim, o filho bastardo da casa, o que recolheu as histórias e as costurou. Ele sobreviveu para contar, saiu dos fundos da casa para frente de uma sala de aula, apesar de tudo sorriu ao final, singrando o rio da vida. Ele a tudo assistiu, ouviu e procurou sentido através da escrita. Vale ressaltar, o poema de Drummond que apareceu no início e no final, atando as pontas da história através da casa (Liquidação, ver postagem anterior).

Como o Rio Negro e o Solimões, imagem final da série, que não se misturam em razão de suas diferenças, os dois irmãos jamais se uniram, causa da ruína da família, metaforizada pela casa. Mas, causa também de podermos ler e ver uma das mais belas produções de nossa literatura e teledramaturgia. Maktub! Ainda bem que estava escrito....



[1] Verbete Caim do Dicionário de Mitos Literários organizado por Pierre Brunel


sábado, 14 de janeiro de 2017

Dois irmãos: A escolha de Zana


 A série Dois Irmãos, adaptação do romance homônimo (2000, Prêmio Jabuti em 2001) de Milton Hatoum pelas mãos de Maria Camargo, apresenta-se como mais uma produção de altíssima qualidade de uma obra literária vertida para as telas da televisão. Sabemos que não é tarefa fácil transmutar a linguagem da literatura com suas peculiaridades múltiplas para outro veículo tão diferente e ao alcance do grande público, todavia considero que toda a produção cumpriu muito bem sua empreitada (a série já estava pronta há algum tempo, esperando hora oportuna para exibição).
Em sua primeira semana tivemos grandes momentos dramáticos de profunda reflexão sobre os melindres das relações familiares sob uma iluminação difusa que nos convida a olhar com mais vagar para aquela casa e seus mistérios. Aliás, destaque-se como um dos pontos altos o belíssimo poema Liquidação de Drummond (Boitempo, 1968) usado como epígrafe na abertura da série:

       A casa foi vendida com todas as lembranças
       Todos os móveis todos os pesadelos
       Todos os pecados cometidos ou em via de cometer
       A casa  foi vendida com seu bater de portas
      Com seu vento encanado sua vista do mundo
                  Seus imponderáveis
                   Por vinte, vinte contos.


O tema do poema dialoga diretamente com um dos assuntos discutidos no livro e bem recortados pela adaptação: A casa como portadora de memórias, espaço guardião de bens intangíveis e sua herança imponderável. A direção de Luiz Fernando Carvalho (como já disse antes sobre Velho Chico) é inconfundível, ele possui uma assinatura autoral que confere tintas rebuscadas e sensíveis em seus trabalhos, optando por soluções narrativas sofisticadas e respeitando bastante o texto original. A narração simultânea em três tempos através da voz de Nael (Irandhir Santos nos conduzindo brilhantemente), o filho da casa na fala resignada de Halim (sabemos a razão ou a repudiamos), confere à trama um tom de segredo sussurrado que nos faz lembrar o ditado popular que as paredes têm ouvidos, ou olhos...
A narrativa se insere na tradição do tema bíblico da rivalidade fraterna presente em Abel e Caim e Esaú e Jacó, páginas já divinamente reescritas por Saramago (Caim), Machado de Assis (Esaú e Jacó) e Hélder Macedo (Pedro e Paula). Hatoum atualiza o assunto e coloca os gêmeos numa família de libaneses que migraram para Manaus em um contexto histórico que cobre momentos emblemáticos do Brasil no século XX. A razão da intriga entre os irmãos se dá desde o nascimento, quando Zana faz sua escolha por Omar, por considerá-lo mais frágil. Seu caçula cresce sob sua proteção desmedida (Édipo forte) para desespero do pai, do seu outro gêmeo, Yakub, que teve que contar com o colo servil de Domingas (aula sobre nossa colonização) e da irmã caçula de fato, quase invisível na casa. Na cena do parto, a alegoria do vaso se quebrando (o duplo partido) indica essa instabilidade ou rompimento da unidade que Omar traria para aquela casa. Eles eram muito diferentes em tudo, mas a mãe sempre reafirmava que eram um mesmo corpo...Já o pai sempre soube...
Não importa o que de bom Yakub fizesse, o caçula queria sempre lhe roubar o protagonismo (ou primogenitura) à força. Vários outros sinais colaboram com essa ideia, o pássaro rasga-mortalha, o rolar da escada a baixo,  a posição fetal, o pesadelo do pai, a falta de comunicação, o ódio do professor, e por fim a mais forte, a disputa por Lívia, desencadeadora da cena crucial da trama, a razão da cicatriz que acabou por separar de vez os dois irmãos.
Em linhas gerais a série é digna de elogios, a representação das famílias árabes, a mistura de culturas, os closes bem fechados, o amor-eros de Halim e Zana, o figurino, os cenários, os atores (Mateus Abreu, interpretando os gêmeos adolescentes é uma grata revelação e o Michel Melamed, parece talhado para o Professor Laval e seus poemas malditos ), as técnicas cinematográficas, os diálogos do "avô com o neto" no curso do rio, retardar de algumas ações simulando o vai e vem das memórias ( ver  a lição machadiana no capítulo LXXI de Memórias Póstumas) e a inserção de cartuchos históricos entremeados na ficção, dentre outros elementos, fazem da narrativa um deleite, mas não um deleite fácil, é preciso atenção e concentração para os detalhes insuspeitáveis daquela casa...

E quem não leu o livro ainda, recomendo que o faça com urgência, é um dos melhores romances da Literatura brasileira, tive a sorte de conhecê-lo nas aulas fascinantes de Teoria da narrativa no Doutorado na UFBA, sob a regência de minha orientadora Mirella Márcia Longo Vieira Lima que, assim como Nael, nos soprou que aqueles segredos valiam a pena e agora valem a tela...Continuemos olhando aquela casa, muitas emoções ainda nos esberam, brimos!

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Entretelas balanço e promessas

Mais um janeiro se anuncia nesse fim de dezembro que teima sempre em ser agridoce. Como nos versos do belo poema Reinauguração de Drummond “Entre o gasto dezembro e o florido janeiro, entre a desmistificação e a expectativa, tornamos a acreditar, a ser bons meninos, e como bons meninos reclamamos a graça dos presentes coloridos”....Não podíamos findar 2016 sem uma última postagem no nosso Entretelas, espaço de diálogo entre Literatura e Teledramaturgia, Cinema e Séries (essa última ainda em débito pela falta de tempo e jeito dessa escriba com tantas novidades no tsunami da Netflix, confesso que perco mais tempo olhando o menu que assistindo e me apego a algumas e fico revendo). Como a época é propícia para os balanços e promessas, falemos um pouco de 2016  e de coisas futuras...
Julgo que na teledramaturgia o ano foi de duas novelas: Velho Chico e Êta mundo bom! Nas águas do Rio São Francisco, tivemos um espetáculo diário de dramaturgia, incompreendido e rejeitado por muitos, que não conseguiram navegar na barca das alegorias propostas pela trama. Não adiantou o velho testamento todo e suas pragas, Benedito Ruy Barbosa (e Cia) e Luis Fernando Carvalho mergulharam fundo nos grotões do Brasil sertanejo com suas lendas e encantados, coronelismo e utopias que saltaram da ficção para a realidade com câmaras de vereadores invadidas no país com as bênçãos de Bento dos Anjos, e realizaram uma grande novela.
Com fortes diálogos com a literatura brasileira canônica e popular e ainda salpicadas de mitologias e clássicos diversos, a novela nos deu cenas memoráveis como a das chuvas, proteção de São Jorge e outros guardiões, planos paralelos e tantos outros diálogos de rara beleza, com uma trilha sonora incomparável a reger a trama (Haverá doravante sempre um rio afogando em nós). E ao final a vida deu uma senhora rasteira na arte, mitificando ainda mais a trama já tão cercada de mistérios. A morte do ator protagonista em plano real no fim da narrativa foi tão inverossímil que não soubemos por alguns dias que dramaturgo malvado rascunhara tão perversa sequência e mesmo assim o show teve que continuar e continuou exigindo um sacrifício doloroso para o elenco e não menos para os expectadores...
Êta mundo bom! nos trouxe para aquela leveza ingênua das tramas das 18:00h, horário em que precisamos do riso leve e descomprometido que nos faz pausar da agonia do cotidiano. E Candinho, Policarpo e sua bela trupe (bem mambembe mesmo, com destaque para o grande Nanini e seus múltiplos) nos fez meninos alegres que acreditam que o bem  e o mal é assim mesmo tão dividido. Com um bom caldinho de referências com destaque para o Cândido de Voltaire e o Candinho de Mazzaropi, Walcyr Carrasco fez um trabalho genial de comédia, mas com certeiras doses de ternura e bons retratos caricaturais da cupidez humana. E vale destacar que ele sempre escala um time muito bom em papeis certeiros como Ary Fontoura, Elizabeth Savalla e Flávia Alessandra ( especializando-se em megeras louras).
No momento temos três novelas em exibição na Vênus platinada que não me empolgam muito ou quase nada. Acho que ficamos muito exigentes depois das duas acima e a comparação é inevitável. A lei do amor até que já deu uma melhorada, mas não oferece vibração e não fideliza a platéia. Como minha intenção no blog em analisar novelas é mostrar o lado A da nossa produção, entendam o silêncio como um sinal. O trio só cumpre seu papel de folhetim para o simples entretenimento, mas faltam-lhe algum ingrediente que vez ou outra abunda em outras receitas.Na carência, é melhor rever Cheias de Charme, diversão garantida e crítica social de primeira. Ou apelar para as reprises do Viva...
Nas minisséries tivemos Justiça como uma obra digna de elogios. Inovou, ousou e fez um grande trabalho com cenas lancinantes e personagens de rara densidade como a Fátima de Adriana Esteves e a mãe-pietá  de Débora Bloch, além da breguice perverso-cômica de Kellen (Leandra Leal). O conceito de justiça foi visto sob diversos olhares, oferecendo lentes de aumento sobre vários dramas. Optou bem pelo Recife e seus cenários, o espaço resultou num protagonista a mais.  A ideia dos múltiplos pontos de vista trouxe um frescor excitante para o horário. Todos bebendo das séries, mas e daí? Não há nada de novo mesmo sob o sol...
Janeiro se anuncia com uma boa promessa: Dois irmãos, adaptação do romance do amazonense Milton Hatoum. Um dos melhores romances que já li. O classifico não só como um grande romance contemporâneo, mas o ponho na lista dos melhores do Brasil. O autor revive a relação de gêmeos rivais de inspiração bíblica assim como fez Machado de Assis com o seu Esaú e Jacó. Vale mesmo ler o romance e garanto que vão querer ler outros títulos do autor. Pelas chamadas e pelo elenco a série promete. Aliás, acho que a televisão contribui com a leitura e curiosidade sobre os livros quando produzem essas obras. Afinal depois dela, Nada, nada mesmo, será como antes...

Avante 2017, Que os bons fios da ficção nos tragam boas horinhas de descuido e felicidade, afinal precisamos dessa Terceira margem... Contiuemos em diálogo dentro e fora das telas e dos livros...

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Cartas para Antía: Julieta de Almodóvar, uma ode ao destino


O novo filme de Almodóvar, Julieta, é uma daquelas tramas que faz nossos votos de amor às narrativas serem renovados durante seus 100 minutos e continuam ecoando em nós por mais algum tempo. Baseado no livro de contos Fugitiva de Alice Munro (Nobel da literatura em 2013), o titulo original é Silêncio, um dos contos que inspiram o cineasta espanhol. Os dois títulos, seja Silêncio ou Julieta, fazem todo sentido ao longo da história. Mas, para muito além da influência da autora canadense, o filme estabelece um belo diálogo com a literatura clássica (tragédia grega) e a força do destino presente no mundo grego.

Almodóvar é um grande leitor/escritor de perfis femininos, suas mulheres têm sempre muita força e os homens ao seu redor parecem sempre coadjuvantes perdidos no vendaval de sentimentos que elas representam, afinal sempre precisamos volver ou saber mais sobre nossas mães. Em Julieta ele não foge dessa regra e faz sua protagonista brilhar em dois tempos. Uma jovem professora de Literatura Clássica com visual punk dos anos 80, e no presente, uma mulher de meia idade atormentada pelo silêncio imposto pelo fuga/sumiço de sua filha, Antía (personagem de uma obra grega atribuída a Xenofonte, Os Efésios, um romance amoroso regido pela interferência de Eros, considerado pela crítica uma obra feita para mulheres).

Julieta está pronta para mudar-se para Portugal com seu atual companheiro quando reencontra uma amiga de sua filha, Bea, que a faz reabrir as feridas e nos contar sua história. Daí, em media res, como nos épicos, vamos conhecer seu passado, numa escrita catártica de cartas para sua filha. Ela vai desfiando no papel seu relato e nós vamos acompanhando suas memórias em flash back, principalmente seu romance com o pai de sua filha, Xoan, um pescador que encontra numa surpreendente viagem de trem (há mais mistérios nessa sequência...) e muda o curso de seu destino/viagem. Quando se apaixonam, ele cuida há anos de uma esposa doente que vem a falecer e Julieta ocupa seu lugar, sua casa e também herda sua empregada, sua amiga, ambas peças- chave no filme.

É interessante notar a idéia de destino típica das tragédias. Além de ser professora de Literatura clássica (dá uma aula sobre Ulisses e os sentidos do mar em grego, episódio em que ele fica refém da deusa Calipso), quando conhece Xoan no trem ela está lendo um livro sobre Tragédia grega. A questão da culpa vai surgir em várias cenas que parecem se desdobrar muitas vezes. O mesmo que ocorre com a mulher de Xoan, vai acontecer com os pais de Julieta, sua mãe adoece gravemente e seu pai arruma uma amiga dela para cuidar da casa, mas o amor entre eles acontece e essa moça também tomará o lugar de sua mãe. A ideia de cumprir uma expiação vai sempre se refazendo de várias formas e em várias personagens...

O drama que vira a trama do avesso se dá quando Julieta descobre a traição de seu marido, eles discutem, ela sai, ele vai pescar e morre numa tempestade e tudo isso ocorre enquanto Antía está em um acampamento de férias. Daí em diante, o silêncio reina e esse será um dos motivos da partida da filha, viagem incompreensível para sua mãe. Ela passará a escrever para entender o que aconteceu...Colando os pedaços da fotografia rasgada, um quebra-cabeças que vamos montando junto com ela, numa busca densa pelas respostas.

Elas só se encontrarão doze anos depois (quase como Ulisses), quando um elemento que o destino mais uma vez reduplica faz com que sua filha a procure, claro que não contarei aqui...E essa cena não veremos, ficamos com os créditos, uma bela viagem (odisséia), uma bela música (Si no te vas) e a imaginar os abraços de reconciliação que se privaram por tanto tempo.

Oh, Almodóvar, que os deuses continuem te inspirando e que o nosso destino permita desfrutar  ainda muito desse mar sem fim de suas histórias...

 

 

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Trolls, abraços, arco-íris e bolinhos


Para Miguel, Lúcia, Lina, Jorge e Breno, companheiros felizes de sessão



O novo filme da Dreamorks é mais do que uma simples animação. Dos mesmos autores do inesquecível Shrek (mesma fórmula da feiura fofa), para Trolls também pode ser atribuída à classificação de aventura e comédia musical, sobretudo, um bom musical. A trilha sonora é  de excelência, daquelas que fazem a gente se sacudir na cadeira do cinema. As crianças grandes reconhecerão muitos hits revisitados (John Travolta e Elton John dentre eles).

Estruturado no binômio Felicidade x Tristeza ou Entusiamo x Apatia, temos de um lado os coloridos e pequeninos Trolls liderados pela sempre otimista Poppy, e do outro os cinzentos e gigantes Bergens, cuja tristeza só pode ser unicamente revertida por um antídoto: comer os Trolls...Numa espécie de ritual antropofágico, os cinzentos precisam devorar a poder dos coloridos para assimilar seus sentimentos positivos e sua cor, caso contrário, são condenados à tristeza profunda e contínua.

A princípio parece um maniqueísmo bem simplista típico dos contos de fadas tradicionais, mas o desenho vai ganhando contornos bem interessantes ao longo da trama. O conflito surge quando os Trolls, liderados pelo seu rei, o pai de Poppy, resolvem fugir com seu povo no dia do Festival em que seriam devorados. Escondem-se por longos anos em um reino subterrâneo de pura alegria, até que são encontrados e correm risco de vida novamente. Daí surge toda a graça do desenho. Na luta pela sobrevivência, a já Princesa Poppy encontra no rabugento Tronco, um parceiro de aventuras e um grande amor.

Na jornada engraçadíssima, ainda renovam o clássico Cinderela através da ajudante de cozinha do Rei dos Bergens que alimenta um amor por sua majestade. O pobre reizinho nunca conheceu a felicidade, até desfrutar do amor dessa Gata Borralheira de patins (virou uma diva na mão dos Trolls) e comer pizza em sua boa companhia, imagem que denota outras possibilidades de ser feliz...E o melhor de tudo, a tal felicidade está em nós mesmos e  nas nossas relações...

Destacam-se ainda no filme o colorido especial, os traumas que nos fazem ficar acinzentados, o poder curativo do afeto e dos abraços, a lealdade, a coragem e outros tantos valores que as crianças e nós, crianças grandes, precisamos lembrar sempre. E toda a história é contada através de uma espécie de livro mágico, que vai dando vida aos personagens, reavivando nossas emoções e acionando camadas profundas da nossa alma ao correr das páginas e dos pixels...Desde Toy Story, Shrek, Divertidamente que eu não gostava tanto de um desenho...

sábado, 1 de outubro de 2016

Velho Chico, penúltimas palavras


Entre 14 de março ( Dia da poesia) e a noite de ontem ( Vésperas das eleições municipais) o Brasil acompanhou Velho Chico, casamento feliz entre poesia e realidade. Novela que dividiu opiniões, não foi líder de audiência, desagradou muitos, mas na minha visão e na de tantos outros telespectadores entrará para a história da teledramaturgia brasileira como uma de suas melhores produções. Usando um trocadilho inevitável, será lembrada como um divisor de águas de nossa televisão. Esse texto final que ora escrevo, será o nono sobre a trama, por absoluta falta de tempo de escrever mais, pois cada capítulo suscitava em mim o desejo de correr à pena.

Creio que o principal já disse ao longo desses 6 meses, mas para louvar o final é necessário atar algumas pontas da arte e da vida. Guerra entre famílias  e dentro de famílias, amores proibidos, coronéis déspotas, cidadezinhas perdidas no sertão, padres conciliadores, heróis idealistas, tudo isso já foi contado e recontado ao longo dos 50 anos da novela brasileira, motes igualmente cantados em prosa e verso na nossa literatura. Então o que fez de Velho Chico algo especial? Um amálgama de temas, cores, formas, mitos, fotografia, lendas, arte, música, mistérios, texto, real e fantasia, planos paralelos, misturados em dose especial. Afinal se não houvesse magia nas receitas todos nós podíamos fazer os mesmos pratos com os mesmos ingredientes, mas sabemos que isso não é possível... Há segredos insondáveis que geram resultados inusitados...

Primeiro destacaria a direção de arte, com sua riqueza de detalhes, olhar de míope para as miudezas desse sertão. Podemos nos extasiar de beleza com os detalhes presentes nas festas religiosas, nos altares dos santos, nas fotografias das paredes, no fogão de lenha, nas rezas, nos velórios, dentre tantos outros pormenores que fizeram a diferença.

A trilha sonora foi um espetáculo à parte. De Tom Zé (a música parecia sob medida para o Saruê)  a Ednardo, de Geraldo Azevedo a Xangai, da sanfona de Luzia ao forró do Bar de Chico Criatura, de Legião Urbana às ladainhas e aboios, dos boleros de Iolanda à belíssima Margem (“Há um rio afogando em mim”) e uma menção honrosa para Maria Bethania que nos acalentou com seu dom divinal em vários momentos da trama. A narrativa nos brindou com um concerto variado de vozes e ritmos que por si só já valia acompanhá-la, a musicalidade  foi uma protagonista paralela. Vale lembrar ainda do canto doloroso  da “Rasga mortalha” para anunciar cada morte iminente...

Outro aspecto digno de nota foi a possibilidade generosa dos autores de dar espaço, vez, voz e cenas arrebatadoras não só para os protagonistas, mas para todas as personagens secundárias. Todas tinham uma história e tiveram oportunidade de nos contar. Como num rio principal que é alimentado pelos seus afluentes, todos tiveram seus momentos de glória. Destaquemos nesse final:  Dona Ceci e Dalva (meus aplausos para Mariene de Castro, grata revelação) como personagens simbólicas de questões identitárias que ganharam solos dignos de ópera nessa última semana. A rezadeira chorando a morte de seu Deus e a doméstica rompendo seus grilhões e ainda estapeando o coronel genérico. Ciço também merece nosso olhar, personagem que saiu das trevas para a luz através do amor e da arte. Seu final ao lado de sua “Darva” foi apoteótico, saíram das coxias para os palcos como uma trupe mambembe que vai disseminando alegria por onde passa, mas antes disso tomou a benção do Seu Painho (revivendo Renascer) que pode retomar com ele resíduos da paternidade negada a Martim.

A intertextualidade gritou tão alto nessa novela que poderia me ocupar disso por dias (e devo agradecer a vários amigos-colaboradores que sempre estavam me apontando mais alguma citação), lembraremos de alguns. Romance de 30 com destaque para Jorge Amado e Graciliano Ramos. Guimarães Rosa em tantos momentos com seu sertão mítico, físico e metafísico (Terceira margem do rio reinou). Os amores proibidos de Shakespeare, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós. Nesse final tivemos a citação direta de Dom Quixote e seus moinhos de Vento, Ecos de Rei Lear, releitura da tentação de Cristo com o Demônio Saruê x o Cristo Afrânio, e  este venceu despindo-se do coronel grotesco que  aprisionou sua alma. Retomou-se o galo do início da trama, páginas de Gabriel Garcia Marquez (todo épico volta ao princípio). No primeiro capítulo o galo era do pai de Afrânio e ontem esse o passou a Miguel. Um símbolo de “macheza” que deveria ficar com o homem da casa doravante. Aliás, o belo diálogo entre avô e neto circulou entre os mistérios da existência...Quem nos explica?...Natureza, Deus, destino, perguntas que nos acompanharão eternamente...

No quesito “social” a novela navegou muito bem, singrando as margens e barrancos das injustiças sociais, corrupção, jogos de poder, delações e tantas outras pautas que poderiam nos confundir com o noticiário que nos rodeia. Deixando uma mensagem de esperança através da participação popular e de novas pessoas propondo uma política diferente do que temos. Bento e Beatriz, vocês deveriam existir fora da tela e os coronéis perecerem de sede como Carlos Eduardo...

O capítulo final, apesar da melancolia incômoda pela ausência bruta do seu protagonista, apresentou um tom também esperançoso. Com nascimento, casamento, frutas, chuva, broto, flores e vinho nos sinalizando que a vida segue em frente e mais uma vez todos reunidos à mesa, espaço sagrado de conciliação (mitos primaveris). E como não podemos terminar sem lembrar da fatalidade que cruzou esse rio... A homenagem ao nosso Santo, colhido pelo Gaiola dos Encantados para nosso espanto e tristeza, o trouxe de volta à vida pelos fios da ficção...E ele segue navegando no Velho Chico e na nossa memória afetiva...Essa história não acaba aqui, segue conosco, por isso minhas penúltimas palavras, haverá sempre um rio afogando em nós...Nunca houve uma novela como Velho Chico...

 

 

 

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Velho Chico, um parêntesis para a arte antes do final


“A literatura existe porque a vida não basta” Fernando Pessoa

 

 

Pela proximidade de tempo que falta para o fim de Velho Chico iria escrever novamente sobre ela só depois que o seu final fosse ao ar, para fazer uma avaliação geral dessa estupenda trama, mas a força do capítulo de ontem me impôs que viesse aqui fazer esse texto, uma espécie de parêntesis antes da conclusão.

Os expectadores dessa excepcional novela devem ter sentido as mesmas emoções que eu senti ontem ao assistirem à solução ficcional escolhida pelos autores/diretores para driblar a ausência do seu protagonista. Ele teve que  sair bruscamente antes da festa acabar, num roteiro canhestro escrito pela dramaturgia irônica da vida. Roteirista cruel e mal assessorado pelos contrarregras e continuistas que nos deixarão sem respostas para tão malvado desfecho. De forma bela e sensível, sim também há beleza nas coisas tristes, eles transformaram a ausência em presença através dos recursos técnicos proporcionados pelos fios mágicos da arte.

Santo foi ontem um espectro de olhar panóptico que acompanhava todos ao seu redor e por eles era também acompanhado. Ele foi a câmara clara que tudo vê e é separada dos outros por uma espécie de neblina que embaçava sua percepção e a nossa também, divina metáfora de um muro invisível que separa o mundo dos vivos e dos mortos. Depois de sua partida toda novela passou a articular sentidos dobrados, jogos de linguagem, alegorias variadas que parecem incessantemente remeter à sua morte e a de todos nós. É como se todas as cenas posteriores ao seu desenlace, de alguma forma, portassem um sentido duplicado que aponta para a “indesejada das gentes” que o colheu na terceira margem do rio e o pôs como passageiro da Gaiola dos Encantados. Tudo parece deixar no ar notas de incenso, cheiro de velas e todas as músicas soam como um longo réquiem.

Duas cenas ontem exigiam a presença de um pai, o jantar de noivado e o casamento de “seus filhos”. A cena da mesa, amplamente explorada pela literatura como lugar de comunhão, pôs Santo na cabeceira, lugar onde devia estar e cada olhar das outras personagens indicava sua presença. A fartura da mesa, a reconciliação com Luzia, o anúncio da gravidez, o brinde com vinho formaram um buquê de imagens vivificantes que apontam para a continuidade da vida, apesar dos dissabores, apesar dessa exigência bruta de seguir adiante sem nossos afetos. Todos que já viveram suas perdas, já sentiram o que os atores sentiram e transmitiram ontem, essa ausência-presença daqueles que se foram para o undiscovered country, sobretudo, nas datas festivas como eternizaram os versos da canção popular “naquela mesa está faltando ele e  a saudade dele está doendo em mim”.

A ficção também pôs Santo no altar na condição de pai emocionado que leva os filhos ao enlace. E o padre em seu eloquente discurso cruzou a ficção de novo com a vida ao falar daqueles que não se fazem presente em corpo, mas em espírito. A vida passou uma rasteira na arte, mas a arte com seu poder incalculável driblou a vida e manteve vivo Santo dos Anjos, pena que só pelo breve instante da ficção. E deixo aqui minha eterna admiração para os atores das cenas de ontem, a vida e arte exigiram muito deles, muito mesmo. E todos eles captaram a lição de Drummond no poema:

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.