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domingo, 22 de outubro de 2017

A Força do querer : Entre afetos, perdão e verossimilhança



Encerrou-se essa semana a novela A Força do querer de Glória Perez. Novela polêmica, carregada de discussões que dividiu o país e obteve excelentes níveis de audiência, termômetro inquestionável dos seus muitos acertos. Dentre esses acertos destaco o cuidado da autora em lançar sua câmara sobre todos os núcleos dando vez e voz a praticamente todas as personagens, jogando luz não só sobre os protagonistas (aqueles que primeiro lutam), mas deixando brilhar também os muitos coadjuvantes que desfilaram pela trama. Foi uma novela multiplot, com diversas temáticas sendo trabalhadas simultaneamente, alternativa exigente que nos faz acompanhar a narrativa atentos aos muitos lances de dados que estão sendo jogados todo o tempo.

Silvana, brilhante Lilian Cabral, nossa Meryl Streep, nos colocou diante do vício do jogo, tão destrutivo quanto qualquer outra dependência, ela pôs todos ao seu redor em risco, atolando-se a cada dia mais em mentiras e rebaixamento moral e pessoal, só assumindo sua doença nos lances finais e perigosos do jogo (o resgate de Simone foi uma reprodução de um episódio real).Tema ainda inédito e muito bem trabalhado, sobretudo, na figura de uma personagem feminina, de alta classe social. Ao lado dela, acho que tivemos um dos melhores núcleos da trama. Seu marido Eurico, o típico homem conservador, chefe de família que acha que tem o controle de tudo, deu a Humberto Martins o melhor papel de sua carreira. Sua relação com Nonato foi um dos pontos altos da novela, sua descoberta do grande segredo foi hilária, daí guardado para o finalzinho para ter aquele sabor de sua surpresa. A fala de Biga  bem o definiu: “Seu Eurico dá um jeito de encaixar os seus afetos no seu modo de ver a vida...” Então Nonato pode ser artista, mas fazendo os machões Jece Valadão ou Capitão Nascimento, um Nonato que só ele via, mas ao final, ele já sugeriu Hamlet, personagem ambíguo...Ser ou não ser...

Ritinha, nossa sereia, descendente direta de Gabriela Cravo e Canela, não se rendeu às convenções, movida exclusivamente por seus desejos, só fez o que quis e pisou fundo no coração de Zeca e Rui, mas mesmo assim emanou uma empatia com sua brejeirice (Égua!) que fez com que aceitássemos seu exotismo, com direito a foto de família no sofá dos Garcia com os dois pais de seu filho e a união fraterna de Rui e Zeca ao desvendar o mistério mítico das águas.

Um dos temas mais palpitantes da trama foi sem dúvida a transição de Ivana em Ivan, vivida pela Carol Duarte que deu um show de atuação num papel tão difícil, com todas as dores e estranhezas que  trazer esse assunto para a sala da família brasileira causa. A autora foi extremamente didática e sensível com toda a rede de questões que envolvem tal assunto e deu a Ivan um final glorioso e surpreendente ao lado de Claudio que a aceitou ao reconhecer que naquele novo corpo ainda habitava a alma pela qual ele havia se apaixonado, e  a cena tinha que ser na praia, na natureza, onde ao contrário das convenções da cultura, tudo pode acontecer em matéria de afetos.

Muitas tramas paralelas tiveram a chance de aparecer na telinha, a psicopatia de Irene com seu final de filme de terror descendo aos infernos, as relações entre patrões e empregados que fogem aos modelos meramente legais, o estilo de vida da comunidade com seus muitos tipos psicológicos, a chegada de Elvirinha e Tio Garcia que nos rendeu ótimas cenas já do meio para o fim da novela, com justas homenagens a Betty Faria que reviveu sua Tieta (Dançando Funk ou vestida de Mulher Maravilha e sua Lucinha de Pecado Capital, dinheiro na mão é vendaval).

Cheguemos ao núcleo central do tema do tráfico de drogas carregado nas tintas da verossimilhança, com direito a todas as críticas possíveis ao nosso sistema judicial e carcerário (a expressão enxugando gelo foi várias vezes repetida). A força dos traficantes em seus domínios, as imagens de guerra e guerrilha no último capítulo, a permanência do crime e sua força a despeito de muitas ações de combate, o fascínio que esse submundo exerce para muitos. A autora escancarou as veias abertas de um dos nossos principais problemas sociais e ao contrário das críticas sofridas por setores da sociedade, a novela não inventou nada dessa realidade, ela espelhou uma pequena parcela do que de fato ocorre naqueles becos e vielas labirínticos. E como boa ficção que é, criou um Sabiá misto de bandido e herói popular com sua boa dose de humor “poblemático”, pedindo a senha do wifi na cadeia e lendo o Salmo 91.

Bibi Perigosa, personagem real, teve sua redenção, expiou suas penas e se regenerou como boa cria folhetinesca, teve direito ao seu final feliz ao lado do Cavalheiro Andante Caio, representação positiva (ao lado de Jeíza) da polícia e da justiça. Como protagonista ela cumpriu seu percurso heroico de ascensão no crime, queda moral e retorno à luz através da expurgação e consciência do erro. O seu reencontro com Caio, para ele ela sempre foi Fabiana e nunca Bibi, foi marcado pelos versos do Poema em Linha Reta, do heterônimo Álvaro de Campos de Fernando Pessoa, apontando que todos somos carregados de falhas, mas que só poucos têm coragem de assumir ( “Nunca conheci na vida quem tivesse levado porrada!”), a vitória do perdão sobre o ódio esteve presente nesse final sob vários modos. Destaquemos na trama de Bibi a atuação de Elisângela, como uma mãe arquetípica que tudo fez para salvar sua filha e para o menino Dedé, vítima indefesa dos erros dos pais, fez um papel forte para uma criança, que tinha a fuga para a fantasia ao lado da amizade de Goku.


A Força do querer ficará marcada no imaginário brasileiro, ganhar um Globo Repórter é para poucas novelas, mostrando sua penetração na sociedade e o desconcerto que causa as obras polêmicas. Ao lado da força do real retratado na trama venceu de fato, a força do querer. Com suas novidades narrativas ousadas inovando até o último dia com a narração de Tio Garcia, um sábio anti-herói, nos pondo a par dos desdobramentos de cada personagem...Terminamos com os versos de Menotti Del Picchia que ele disse para Rui ao mandar que ele perdoasse Ritinha e que resume bem a vitória dos afetos no final da trama, apesar de toda a realidade que sangra ao nosso redor: Esta vida é um punhal com dois gumes fatais: não amar é sofrer; amar é sofrer mais"!

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Quem tem medo de Glória Perez?

Em 1995, portanto no século passado, Glória Perez em Explode Coração já sacudiu/confundiu o Brasil com Sarita Vitti, personagem Travesti ou Drag Queen (talvez nessa época os nomes não eram  tão importantes ou definidos ainda nesses termos), interpretada pelo ator Floriano Peixoto, em primeiro papel na televisão. Numa época na qual ainda não havia as redes sociais e seus megafones, o assunto  foi bastante polêmico e de vanguarda. Já naquele tempo, Glória desenhava essa personagem de difícil contorno para os padrões da época com as tintas da humanidade, focando no drama humano de ser diferente do que se espera e como lidar com isso numa sociedade hostil e que rejeita, assim como Narciso, o que não é espelho. E assim ela continua com seus pinceis e teares encantados...

Passados 22 anos, em outro século, o tema volta em sua trama A força do querer com vigor e complexidade e ainda gera polêmica. Temos em cena Nonato (Silvero Pereira), de dia vestido no seu paletó e gravata que parecem sempre apertados e de noite se traveste de Elis Miranda, cantora performática que irradia alegria assim caracterizada. Se  define como um travesti e  se aceita com seu corpo assim como ele é. Em justaposição (porque não se trata de outro lado), temos Ivana até ontem, agora Ivan (Carol Duarte), que depois de um longo processo de crise existencial se descobre Transexual. O processo de descoberta e transição de Ivana foi lento e doloroso (continuará sendo), acredito na intenção pedagógica da autora em exibir todo o entorno da complexa questão, pois houve um investimento em muitas cenas didáticas sobre o assunto.

Ao por Elis e Ivan em diálogo, a primeira passou a ser uma espécie de fada madrinha e anjo da guarda vigilante de toda família Garcia (seu desempenho vem crescendo e ocupando vários espaços, quando Eurico o descobrir, o coitado que acha que sabe de tudo, não poderá mais viver sem sua amizade!), foi no pequeno apartamento de Elis que Ivana conseguiu decidir sua dolorosa metamorfose e enfim tomar a decisão de comunicar a família sua condição. O colo e as almofadas acolhedoras de Elis funcionaram como uma espécie de útero para gestar o Ivan que nasceria em breve. Mas para nascer Ivan, há de morrer Ivana, daí a cena dramática de ontem, vivida mais intensamente por Joyce, mãe que desejou uma filha à sua imagem e semelhança com todos os códigos femininos que ela acredita ser fundamental para ser uma mulher feliz.

A cena, ritual sacrifical de morte de Ivana representado pelo corte dos cabelos, marca feminina por excelência (ecos de Camila em Laços de Família) foi realizada com uma forte carga emocional. Joyce em posição de Pietá, chorava a morte de Ivana, e Ivan nascia chorando como um bebê que vê o  mundo pela primeira vez. A mater dolorosa, enlutada, agarrada aos fios do cabelo de sua menina, fez o Brasil se emocionar.

O espelho, antes motivo de tortura para Ivana, começou a dar sinais positivos para Ivan, que começa a se encontrar. Não posso avaliar como deve ser dolorida essa travessia, essa transformação, mas acho que a trama acertou em mostrar primeiro que é no seio (bendita metáfora!) da família que devemos ser compreendidos e aceitos primordialmente, para depois partir para o desafio inóspito das ruas (outras tantas cenas já foram mostradas com Ivan e com Elis sobre a barbárie das ruas contra os “diferentes”). A autora é famosa por introduzir questões sociais e reais em suas novelas, acho que está acertando em cheio em nos esclarecer sobre uma questão tão pulsante e necessária. O conhecimento liberta, gera a empatia, promove a compaixão, que significa etimologicamente sentir com o outro, e podemos sonhar por alguns minutos com um mundo mais acolhedor como são os braços de Elis Miranda... But I see your true colors, Continue Glória!

P.S. A autora não criou o tráfico no Rio de Janeiro.




domingo, 20 de agosto de 2017

Mulher Maravilha: Uma heroína grega na Primeira Guerra

A imagem da Mulher Maravilha com seu collant (naquele tempo não se dizia body) baseado na bandeira dos Estados Unidos, sua tiara, seu laço da verdade e seus voos e saltos povoaram toda a minha infância e acredito que todas as meninas da minha idade. Afinal, era uma mulher dentre tantos super-heróis. Eis que tive um maravilhoso reencontro com ela essa semana na nova versão do filme Mullher Maravilha (2017) sob a direção de Patty Jemkins, com roteiro de Allan Heinberg. 
Agora, Diana Prince (Deusa da caça e princesa) representada pela talentosa e lindíssima Gal Gadot, é construída com a força de suas origens míticas, e essa parte inicial conduz toda a diferença nessa narrativa. Ela é a Princesa das Amazonas, lendária tribo de mulheres guerreiras, treinadas desde a infância para combater o Mal, representado pelo mito grego de Hades (Deus dos infernos), no filme  Ares, vilão da DC. Vivem isoladas numa Ilha paradisíaca quando, numa espécie de portal do tempo, o piloto Steve Trevor (Chris Pine) vem ferido parar nessa ilha (tal cena nos remete á Odisseia, quando Ulisses aporta na Ilha de Ogígia e é aprisionado pela deusa Calipso), na verdade um espião (revelado pelo laço da verdade) soldado da Primeira Guerra (naquele tempo ainda A Guerra, pois não sabia-se que viria a Segunda).
A partir desse inusitado encontro de tempos históricos, filosóficos e ideológicos tão distintos nasce a raiz dessa arrebatadora trama. Diana Prince segue com Steve para os “Tempos modernos” e vai combater nas trincheiras da Guerra usando suas armas, seus super poderes e, sobretudo, seu código de ética heroico pautado nos valores do mundo grego. Ela o acompanha acreditando estar em busca de Ares e que ao derrotá-lo o mundo estaria salvo do Mal. É simbólico o fato de ela se apresentar, dizer seu nome, sua origem e de onde vem, sempre que vai combater um inimigo (era o usual nas guerras antigas). O choque entre esses dois mundos se dá em vários momentos e suscita diálogos hilários. Para ela é incompreensível os motivos de uma guerra, os modus operandis e as estratégias usadas pelas tropas modernas que lutam por riquezas e poder. A passagem dos mercenários negociando com eles é bastante significativa ( e a redenção deles no final muito emocionante).
Em sua Teoria do Romance, G. Lukács[1] situa o mundo grego, berço da epopéia homérica, como um sistema cultural fechado. Nesse sistema, os fatos narrados mantinham consonância com o conjunto de crenças e valores que conferiam coesão à sociedade grega. Na Grécia homérica, a mesma de Diana Prince, não há abismo entre imanência e transcendência, que formam um todo coeso; de modo que as verdades contidas na mitologia clássica estão presentes na trajetória de vida das personagens. Em contrapartida, por serem ilustrativas de um mundo marcado pela instabilidade, as formas modernas, representadas no filme pelo absurdo da Guerra, trazem em seu bojo existências marcadas pela desorientação e nostálgicas de um sistema mais estável. Nessas formas, se delineiam aventuras de busca de valores estáveis que pudessem superar os abismos intransponíveis entre existência e transcendência.
Eis a grande sacada do filme, a oposição entre esses dois mundos. O grego orientado, representado pela nossa Mulher Maravilha, e o moderno desorientado, representado por Steven e demais envolvidos na Guerra. Mas ao longo do filme, Diana vai imprimindo em Steven e em seu pequeno e inusitado exército seus valores e eles vão se moldando aos ideais guerreiros do mundo helênico e é claro que surge uma linda história de amor, doação e heroísmo (não conto mais para não dar spoiler).
Eis também um grande filme... Diana, de fato, encontra o Ares que buscava (excelente surpresa de quem ele é realmente), e a batalha épica entre eles é colossal com belíssimos efeitos especiais e aquela emoção que nos faz pular da poltrona ou do sofá (no meu caso da cama)! Apesar dos horrores da Guerra e da distópica ideia de que o mal vige no homem como cunhou o Riobaldo de Guimarães Rosa, o final é glorioso e vivificante, vence a ideia de que apesar da coexistência do Bem e do Mal, nossas ações e decisões podem mudar o rumo da História e das nossas histórias e que como não somos super-heróis não pudemos salvar o mundo, mas podemos salvar o dia de algumas pessoas...Vale a pena ver e rever essa venturosa heroina....De collant ou de Body...





[1] LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Ed. 34, 2000.

sábado, 29 de julho de 2017

A força da narrativa de Glória Perez: Dois contos em uma semana catártica


A Força do Querer vem se destacando como uma grata surpresa no horário das 21:00h (ainda chamo novela das 8 pela força do hábito, mas no geral ela está indo ao ar um pouco depois das 9). Desenvolvida a partir de vários plots, motivos ou núcleos, parece ter sucesso em todos eles. Não se trata apenas de tramas secundárias para alimentar o eixo central, ela vem tecendo bem todos os personagens e seus dramas numa espécie de rede simultânea de histórias em paralelo. Há inovações muito bem-vindas para nós telespectadores como o resumo do capítulo anterior no início, os ecos das vozes e/ou congelamento do gancho para o dia seguinte no seu final de cada capítulo (recurso já bem usado em Avenida Brasil) e personagens reais adentrando na trama(Fafá de Belém fazendo um pouco dela mesma e Tê para ajudar Ivana a se encontrar).

Essa semana em especial duas cenas são dignas de destaque: A surra de Irene e O aniversário de Dedé. Ambas nos remetem à natureza narrativa do conto. Poderiam ser capítulos isolados contados individualmente, como aqueles Casos Especiais que a Globo apresentava na minha infância. As duas como soe acontecer nos contos tradicionais tiveram início, meio e fim, clímax e desfecho bem contornados.  Júlio Cortazar em Valise de Cronópio[i], no ensaio Alguns aspectos do conto, resume algumas das características principais do gênero. Vejamos:

1. Escolher um acontecimento real ou fictício que passa essa misteriosa propriedade de irradiar alguma coisa para além dele mesmo;

2. Ruptura do cotidiano;

 3. Um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência;

4. Fabulosa abertura do pequeno para o grande, do individual e do circunscrito para a essência mesma da condição humana;

5. Estilo baseado na intensidade e na tensão;

6. Escrever tensamente, mostrar intensamente.

Em A surra de Irene, tivemos a clássica história da amante pérfida que apanha da esposa traída. Mulher bate em mulher no banheiro feminino e tem apoio de outras mulheres. Ritinha deu o nocaute e Marilda fechou a porta para ninguém interromper. Em Celebridade Maria Clara esbofeteou com gosto a vilã Laura no banheiro também. Em Caminho das índias, Ivone, bem que podia ser a mãe de Irene, também levou sua surra no clube, já em Por amor Eduarda derrubou a rival na piscina com cadeira de roda e tudo. Li nas redes sociais algumas críticas à surra de Irene, como se a cena quebrasse a corrente da sororidade. Penso ao contrário Marilda e Ritinha (mesmo com sua moral questionável, pois também traiu) foram sisters de Joyce e saíram em defesa do clã, um movimento feminino também legítimo, o desejo atávico de manter a casa segura. Ao ver uma família ameaçada por uma golpista que abusou da confiança e fragilidade da “amiga”, as amigas caíram “pra dentro”, e o Brasil esperava com ansiedade essa cena, Joyce literalmente saiu do salto ( Christian Louboutin, não é qualquer salto!), catarse coletiva (por onde passei no dia seguinte ouvi muitos comentários).  Claro, Eugênio devia levar sua sova também, com boas raquetadas de preferência para pagar o que já nos deve há anos, mas  a arte não existe para corrigir a vida e vice-versa. Creio que os pontos 5 e 6 de Cortazar estão bem  aí representados.

O aniversário de Dedé pode ser comparado a um daqueles contos antológicos com um belo final feliz. Dedé como a maioria das crianças (meu filho de 8 anos mal acaba um aniversário e começa a planejar o próximo e chorou junto comigo nesse capítulo) desejou sua festinha e convidou seus amiguinhos. Cenário montado, mesa posta, decoração de futebol e seu time não veio. Ele era a própria imagem da desolação, nada que sua mãe ou avó (Elisângela solando no papel) fizessem podia curar sua tristeza. O telefonema do pai só piorou nossa piedade do lado de cá da tela. Quando tudo parecia caminhar para a tragédia da solidão e do preconceito, eis que irrompe na festa Goku! A fantasia salva a triste realidade, a ruptura do cotidiano mencionada pelo crítico argentino. O extraordinário dentro do ordinário, o tremor de água dentro do cristal, o pequeno para o grande. Eu diria para o enorme, para o inalcançável, para o infinito. Foi uma das cenas mais lindas que já vi até hoje. O efeito seria diferente se fosse Yuri a chegar de repente, pois Dedé mandou o convite através dele para Goku, que veio em seu socorro heroico. Os pontos 1, 2 ,3 e 4 exemplarmente mostrados.

Por essas e outras continuamos a amar a literatura. As novelas filhas legítimas e herdeiras incontestáveis dos folhetins continuam  nos surpreendendo e como nos bons contos imortalizados nas páginas dos livros nos trazem essa Felicidade Clandestina e nos fazem rir e chorar como A moça tecelã...

P.S Entretelas hoje faz 2 anos! Dia de celebrar! Estejam todos convidados e lembrem de assinar o livro de visitas deixando seus comentários!

 




[i] CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. Serie Debates. Nº. 104. 2ª edição. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.
 




 

 
 
 
 

 

quinta-feira, 6 de julho de 2017

A força da força do querer


A novela A força do querer vem se destacando como uma boa novidade para o já consagrado currículo de Glória Perez. Longe dos mundos exóticos de Marrocos, Índia ou Turquia, toda a sua ambientação nessa segunda etapa se concentra no Rio de Janeiro-Niterói (Parazinho volta como lembrança e com a força dos seus mitos, a cena da rezadeira foi ótima!)  com toda sua dor e delícia, revólver  e coqueiro, asfalto e comunidade, zona sul e periferia.

Com ecos evidentes da excepcional série americana  Breaking Bad, temos no drama do casal Rubinho/Bibi umas das forças da narrativa. Aquele bom rapaz, vizinho adorável (químico e professor como Walter White, protagonista da série) entra para o tráfico seduzido pela ambição de riqueza fácil e bem-estar para sua família, ameaçada pelos infortúnios econômicos. Bibi (nossa Skyler, inspirada em Fabiana Escobar, personagem da vida real, começa a metamorfose para a Bibi Perigosa). Uma mulher que ama demais como uma personagem de Manoel Carlos, dantes repleta de virtudes morais e aspirante à advogada, está sendo rapidamente levada para esse submundo em lealdade incondicional ao seu marido.

Ela ainda não sabia, mas já cruzou a fronteira e agora já desceu aos infernos também. Cenas simbólicas dessa transformação foram o incêndio do restaurante, sua visita íntima clandestina e ontem sua fuga pelos labirintos do crime acuada pelo cachorro (Cérbero). Pela voz de uma mulher anônima no topo do morro ela ontem soube que já não há volta. É comovente as tentativas vãs de sua mãe em afastá-la desse mundo e revoltante para nós (sim, também sofremos e ficamos com raiva dela ) sua cegueira. Um drama policial daqueles, mediado pelas simbólicas personagens de Jeiza e Caio, exemplos positivos da polícia e da justiça. Jeiza O+ doa-se completamente a sua missão e Caio está sempre intercedendo pelo bem de alguém. A sequência de ontem foi como ver de novo Tropa de Elite.

Para dar um tom cômico nessa trama temos Silvana e suas aventuras de viciada em jogo e suas peripécias para continuar quebrando a banca também. Seus lances de dados ficam cada vez mais perigosos e o pobre Eurico, que acha que tudo sabe e controla, é mais uma peça do seu tabuleiro. Sem contar com a relação engraçada com Dita, mais que uma empregada, uma cúmplice eficiente! Ainda para rimos muito temos  Abel (Tonico Pereira é um dos nossos maiores atores, ainda falta-lhe o papel que merece) e Ednalva, naquela já conhecida antipatia que já sabemos onde vai dar, exatamente como em Muito barulho por nada, deliciosa comédia de Shakespeare ou para ser fiel à cultura de Parazinho: - Quem desdenha quer comprar!

Não podemos deixar de destacar a personagem de Nonato/Elis, interpretado magistralmente pelo jovem ator de teatro cearense Silvero Pereira. Sua personagem literalmente rouba a cena, o desconforto do paletó dá lugar à autoestima estonteante quando está pronta para o show. Ainda na trilha do labirinto da sexualidade temos Ivana, a também estreante Carol Duarte, brilhando com seu drama íntimo que aponta para a transsexualidade, conceito de teoria de gênero ainda tão mal entendido. Vale lembrar também de Biga (nossa Marcelina) e seu charme sexy fora dos padrões estabelecidos! Quem precisar de Natura é só falar com ela, bela sacada ser consultora de beleza.

A autora é muito eficiente em representar núcleos familiares, observemos que dentro de cada casa há conflitos a ser contados, há problemas e soluções, há afeto e desavenças como em todos os lares do mundo. A questão polêmica do tal jogo assassino Baleia Azul foi muito bem explorada sob diversos ângulos. Glória sempre explora causas sociais em suas histórias, só por essa exposição tão didática do que se trata essa ameaça para nossas crianças e nossa falsa ideia de segurança “com os meninos quietinhos no quarto” já me senti contemplada como mãe e educadora. Novela, assim como toda arte, não é só entretenimento, pode também despertar consciências.

Continuemos de olho e enredados pelo Canto das Sereias, como nos ecos que aparecem nos  finais dos capítulos ...Glória, Glória!

 

sábado, 15 de abril de 2017

A força dos quereres


A nova novela da Rede Globo das 21:00h, A força do querer, da premiada Glória Perez, parece trazer nos seus primeiros capítulos um colorido novo para o horário. Contrastando com sua pálida antecessora que nos deixou com sede de boa ficção, salvo alguns capítulos e personagens aqui e ali isolados.

A autora sabe explorar muito bem os contrastes desse nosso país.  Belém e Rio de Janeiro, rural e urbano, Zona Sul e Zona Norte, o folclore de nossas lendas e o jogo do poder das grandes empresas, alta sociedade e trabalhadores comuns, madames e cabeleleiras, gente que vai a restaurantes refinados e outras tantas que se divertem  de pé em rodas de samba e na gafieira (sempre uma presença em suas tramas). Tais dicotomias nos remetem a um Brasil bem Barroco, talvez o melhor movimento artístico que nos represente, marcado por seus extremos antagônicos, uma das nossas marcas culturais e identitárias. Justamente como canta Caetano na sua bela Quereres, música escolhida sob medida para a abertura da novela, sua letra é toda construída por imagens antitéticas.

Paralelos aos quadros sociais opostos, temos dramas familiares e individuais que valem  nossa atenção. Um pai amoroso que vê seu filho cair no canto e encanto de uma ”sereia” exageradamente sensual  (Isís Valverde está se especializando nesse papel) e luta contra essa obsessão do filho. Uma mãe que projeta na filha seu ideal de mulher/diva/capa-de-revista e sofrem as duas por não encontrarem essa tal imagem no espelho. Uma dama da sociedade viciada em jogo que ameaça sua estabilidade familiar em nome da adrenalina das apostas. Um executivo que em nome da empresa familiar renunciou sua felicidade e agora tenta resgatar seus verdadeiros desejos. Empregadas que são  confidentes e esteios de suas patroas. Uma mãe de adolescente cosplay que não sabe mais quem é seu filho, dentre outros conflitos que já se anunciam nesse início da narrativa.

Mas parece que a grande questão da trama é aquela que vem estampada no título e cantada na abertura: A bruta flor do querer,  melhor fica entre suspiros  como nos versos da canção: Ah! Bruta Flor, bruta flor...Todos se debatem entre os  seus quereres...Entre o Princípio do Prazer(PP)e o Princípio da Realidade(PR), como bem cunhou nosso gênio Freud.

A passional Bibi (Juliana Paes muito bem em mais um tipo popular) largou um noivo morno que lhe acenava com um futuro promissor, para viver um amor arrebatador com um garçom que lhe cobre de mimos sob um regime de penúria, para desespero e incompreensão de sua mãe (Sogra com letra maiúscula, que parece gritar a todos os instantes que” amor não enche barriga”), escolheu o PP  e amarga uma realidade dura. A nossa sereia se vê dividida entre o querer dos braços seguros  de Zeca e a infinidade de seus sonhos, ilustrada pelo mundo novo que Rui pode oferecer, eles protagonizam a profecia do primeiro capítulo, o perigo que vem das águas.

 Aliás, pelo já visto, os triângulos  e a complexidade de nossas escolhas serão motes presentes em vários núcleos. Paolla de Oliveira, linda de morrer como a policial lutadora Jeiza O+, se debate entre seu sonho profissional arrojado e o equilíbrio da vida afetiva, assim como muitas outras personagens que se dividem entre os seus quereres e os quereres dos outros, entre o que queremos e o que esperam da gente.

Glória Perez é uma Sherazade competente no retrato de conflitos sociais, familiares e individuais seja nos Caminhos das Índias, no Marrocos ou nos salões e subúrbios cariocas,  com  muitas cores  que não sei o nome, talvez de Almodóvar ou de Frida Kahlo. Ela também foi pioneira em trazer o marketing social para dentro da ficção, quem não se lembra das mães da Cinelândia em Explode Coração (1995) que buscavam por seus filhos desaparecidos? Proporcionando à teledramaturgia uma papel inestimável! Qual será o tema dessa vez?

Salve, Glória! Continuaremos atentos aos seus fios coloridos e saias rodadas da ficção e enredados no seu doce canto, enquanto nos balançamos no sofá ao som do contagiante carimbó ...

 

PS. Recolhendo elementos para Novo Mundo!

sábado, 21 de janeiro de 2017

Dois irmãos: As mil e uma noites de Nael...


A série Dois irmãos nos apresentou ontem seu último capítulo com a maestria dos grandes espetáculos. Um filme de arte exibido na televisão. As páginas do romance homônimo de Milton Hatoum ganharam vida pelas mãos hábeis de Maria Camargo, pela regência inconfundível de Luiz Fernando Carvalho, por uma produção de arte minuciosa e por um elenco que nos fez perder o fôlego em vários momentos. Os gêmeos rivais levaram às últimas consequências seu desamor desmedido para desespero e ruína da família, protagonizando a cena bíblica já antevista no mote da temática (pobre Zana,  ela era sim mãe de Caim e  Abel).

Havemos de destacar na série, ontem especialmente, a grande força dos símbolos. A casa desmoronando, as paredes nuas de lembranças, as águas sujas tudo devastando, as folhas secas, os móveis sendo arrastados ou encobertos (amortalhados), os sobreviventes da casa lembrando náufragos que tentam salvar alguns poucos objetos em meio aos destroços. Um conjunto de imagens que corroboram a ideia de decadência do clã. A casa, dantes fortaleza, sucumbe também, assim como seus membros.

Dentre os símbolos explorados ontem, não podemos esquecer o sangue que escorre da rede após a cena violenta entre os irmãos (um é calculista, fere sem sujar as mãos. O outro, força bruta, age agressivamente). Um elemento importante na simbologia familiar – o laço de sangue – foi utilizado para dar ênfase ao horror do quase fratricídio cometido por Omar. Domingas tenta lavar as marcas, esconder sempre as nódoas com sua servidão, mas o sangue persiste e suja as mãos da matriarca. Para Felipe Sellier[1], a história de Caim e Abel ecoa fortemente no imaginário dos escritores como fonte de inspiração: “o ódio de um irmão, o derramamento de sangue, a agonia e as andanças do culpado, a proliferação da violência constituíram uma surpreendente parábola, sempre presente nas literaturas ocidentais.”

 A rivalidade bíblica ambientada em Manaus no seio de uma família libanesa retomou tão bem esse tema universal e fez a pequena história cruzar-se com a História do país, nos emocionando verdadeiramente com a o capítulo sobre a ditadura e o AI5. Naquele dia tivemos muita pena de Omar, em Laval ele perdeu muito mais que um mestre, perdeu sua filiação a algo que o fez mais humano.

A atuação de Zana no seu grand finale é digna de aplausos. Giardini brilhou como num solo de ópera, ópera dos mortos, ao rever seus ancestrais, ao expor sua senilidade, ao apego à casa e às lembranças, ao ecoar sua eterna pergunta sobre a paz entre os irmãos. É interessante perceber em toda a trama a recorrência às fotografias e espelhos, rejeição da ideia de que os dois eram um só...Omar tratava sempre de destruir o que lhe lembrava a imagem do outro ...

E o que dizer de Nael, Irandhir Santos, personagem que considero um dos melhores narradores da contemporaneidade. Sherazade que também narrou para não morrer, sempre à espreita, sempre a observar por ângulos especiais e em closes únicos (os enquadramentos da câmera destacaram bem seu foco narrativo de soslaio) os segredos ditos e não ditos daquela casa. O herdeiro dos despojos, os ouvidos de Halim, o filho bastardo da casa, o que recolheu as histórias e as costurou. Ele sobreviveu para contar, saiu dos fundos da casa para frente de uma sala de aula, apesar de tudo sorriu ao final, singrando o rio da vida. Ele a tudo assistiu, ouviu e procurou sentido através da escrita. Vale ressaltar, o poema de Drummond que apareceu no início e no final, atando as pontas da história através da casa (Liquidação, ver postagem anterior).

Como o Rio Negro e o Solimões, imagem final da série, que não se misturam em razão de suas diferenças, os dois irmãos jamais se uniram, causa da ruína da família, metaforizada pela casa. Mas, causa também de podermos ler e ver uma das mais belas produções de nossa literatura e teledramaturgia. Maktub! Ainda bem que estava escrito....



[1] Verbete Caim do Dicionário de Mitos Literários organizado por Pierre Brunel


sábado, 14 de janeiro de 2017

Dois irmãos: A escolha de Zana


 A série Dois Irmãos, adaptação do romance homônimo (2000, Prêmio Jabuti em 2001) de Milton Hatoum pelas mãos de Maria Camargo, apresenta-se como mais uma produção de altíssima qualidade de uma obra literária vertida para as telas da televisão. Sabemos que não é tarefa fácil transmutar a linguagem da literatura com suas peculiaridades múltiplas para outro veículo tão diferente e ao alcance do grande público, todavia considero que toda a produção cumpriu muito bem sua empreitada (a série já estava pronta há algum tempo, esperando hora oportuna para exibição).
Em sua primeira semana tivemos grandes momentos dramáticos de profunda reflexão sobre os melindres das relações familiares sob uma iluminação difusa que nos convida a olhar com mais vagar para aquela casa e seus mistérios. Aliás, destaque-se como um dos pontos altos o belíssimo poema Liquidação de Drummond (Boitempo, 1968) usado como epígrafe na abertura da série:

       A casa foi vendida com todas as lembranças
       Todos os móveis todos os pesadelos
       Todos os pecados cometidos ou em via de cometer
       A casa  foi vendida com seu bater de portas
      Com seu vento encanado sua vista do mundo
                  Seus imponderáveis
                   Por vinte, vinte contos.


O tema do poema dialoga diretamente com um dos assuntos discutidos no livro e bem recortados pela adaptação: A casa como portadora de memórias, espaço guardião de bens intangíveis e sua herança imponderável. A direção de Luiz Fernando Carvalho (como já disse antes sobre Velho Chico) é inconfundível, ele possui uma assinatura autoral que confere tintas rebuscadas e sensíveis em seus trabalhos, optando por soluções narrativas sofisticadas e respeitando bastante o texto original. A narração simultânea em três tempos através da voz de Nael (Irandhir Santos nos conduzindo brilhantemente), o filho da casa na fala resignada de Halim (sabemos a razão ou a repudiamos), confere à trama um tom de segredo sussurrado que nos faz lembrar o ditado popular que as paredes têm ouvidos, ou olhos...
A narrativa se insere na tradição do tema bíblico da rivalidade fraterna presente em Abel e Caim e Esaú e Jacó, páginas já divinamente reescritas por Saramago (Caim), Machado de Assis (Esaú e Jacó) e Hélder Macedo (Pedro e Paula). Hatoum atualiza o assunto e coloca os gêmeos numa família de libaneses que migraram para Manaus em um contexto histórico que cobre momentos emblemáticos do Brasil no século XX. A razão da intriga entre os irmãos se dá desde o nascimento, quando Zana faz sua escolha por Omar, por considerá-lo mais frágil. Seu caçula cresce sob sua proteção desmedida (Édipo forte) para desespero do pai, do seu outro gêmeo, Yakub, que teve que contar com o colo servil de Domingas (aula sobre nossa colonização) e da irmã caçula de fato, quase invisível na casa. Na cena do parto, a alegoria do vaso se quebrando (o duplo partido) indica essa instabilidade ou rompimento da unidade que Omar traria para aquela casa. Eles eram muito diferentes em tudo, mas a mãe sempre reafirmava que eram um mesmo corpo...Já o pai sempre soube...
Não importa o que de bom Yakub fizesse, o caçula queria sempre lhe roubar o protagonismo (ou primogenitura) à força. Vários outros sinais colaboram com essa ideia, o pássaro rasga-mortalha, o rolar da escada a baixo,  a posição fetal, o pesadelo do pai, a falta de comunicação, o ódio do professor, e por fim a mais forte, a disputa por Lívia, desencadeadora da cena crucial da trama, a razão da cicatriz que acabou por separar de vez os dois irmãos.
Em linhas gerais a série é digna de elogios, a representação das famílias árabes, a mistura de culturas, os closes bem fechados, o amor-eros de Halim e Zana, o figurino, os cenários, os atores (Mateus Abreu, interpretando os gêmeos adolescentes é uma grata revelação e o Michel Melamed, parece talhado para o Professor Laval e seus poemas malditos ), as técnicas cinematográficas, os diálogos do "avô com o neto" no curso do rio, retardar de algumas ações simulando o vai e vem das memórias ( ver  a lição machadiana no capítulo LXXI de Memórias Póstumas) e a inserção de cartuchos históricos entremeados na ficção, dentre outros elementos, fazem da narrativa um deleite, mas não um deleite fácil, é preciso atenção e concentração para os detalhes insuspeitáveis daquela casa...

E quem não leu o livro ainda, recomendo que o faça com urgência, é um dos melhores romances da Literatura brasileira, tive a sorte de conhecê-lo nas aulas fascinantes de Teoria da narrativa no Doutorado na UFBA, sob a regência de minha orientadora Mirella Márcia Longo Vieira Lima que, assim como Nael, nos soprou que aqueles segredos valiam a pena e agora valem a tela...Continuemos olhando aquela casa, muitas emoções ainda nos esberam, brimos!

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Entretelas balanço e promessas

Mais um janeiro se anuncia nesse fim de dezembro que teima sempre em ser agridoce. Como nos versos do belo poema Reinauguração de Drummond “Entre o gasto dezembro e o florido janeiro, entre a desmistificação e a expectativa, tornamos a acreditar, a ser bons meninos, e como bons meninos reclamamos a graça dos presentes coloridos”....Não podíamos findar 2016 sem uma última postagem no nosso Entretelas, espaço de diálogo entre Literatura e Teledramaturgia, Cinema e Séries (essa última ainda em débito pela falta de tempo e jeito dessa escriba com tantas novidades no tsunami da Netflix, confesso que perco mais tempo olhando o menu que assistindo e me apego a algumas e fico revendo). Como a época é propícia para os balanços e promessas, falemos um pouco de 2016  e de coisas futuras...
Julgo que na teledramaturgia o ano foi de duas novelas: Velho Chico e Êta mundo bom! Nas águas do Rio São Francisco, tivemos um espetáculo diário de dramaturgia, incompreendido e rejeitado por muitos, que não conseguiram navegar na barca das alegorias propostas pela trama. Não adiantou o velho testamento todo e suas pragas, Benedito Ruy Barbosa (e Cia) e Luis Fernando Carvalho mergulharam fundo nos grotões do Brasil sertanejo com suas lendas e encantados, coronelismo e utopias que saltaram da ficção para a realidade com câmaras de vereadores invadidas no país com as bênçãos de Bento dos Anjos, e realizaram uma grande novela.
Com fortes diálogos com a literatura brasileira canônica e popular e ainda salpicadas de mitologias e clássicos diversos, a novela nos deu cenas memoráveis como a das chuvas, proteção de São Jorge e outros guardiões, planos paralelos e tantos outros diálogos de rara beleza, com uma trilha sonora incomparável a reger a trama (Haverá doravante sempre um rio afogando em nós). E ao final a vida deu uma senhora rasteira na arte, mitificando ainda mais a trama já tão cercada de mistérios. A morte do ator protagonista em plano real no fim da narrativa foi tão inverossímil que não soubemos por alguns dias que dramaturgo malvado rascunhara tão perversa sequência e mesmo assim o show teve que continuar e continuou exigindo um sacrifício doloroso para o elenco e não menos para os expectadores...
Êta mundo bom! nos trouxe para aquela leveza ingênua das tramas das 18:00h, horário em que precisamos do riso leve e descomprometido que nos faz pausar da agonia do cotidiano. E Candinho, Policarpo e sua bela trupe (bem mambembe mesmo, com destaque para o grande Nanini e seus múltiplos) nos fez meninos alegres que acreditam que o bem  e o mal é assim mesmo tão dividido. Com um bom caldinho de referências com destaque para o Cândido de Voltaire e o Candinho de Mazzaropi, Walcyr Carrasco fez um trabalho genial de comédia, mas com certeiras doses de ternura e bons retratos caricaturais da cupidez humana. E vale destacar que ele sempre escala um time muito bom em papeis certeiros como Ary Fontoura, Elizabeth Savalla e Flávia Alessandra ( especializando-se em megeras louras).
No momento temos três novelas em exibição na Vênus platinada que não me empolgam muito ou quase nada. Acho que ficamos muito exigentes depois das duas acima e a comparação é inevitável. A lei do amor até que já deu uma melhorada, mas não oferece vibração e não fideliza a platéia. Como minha intenção no blog em analisar novelas é mostrar o lado A da nossa produção, entendam o silêncio como um sinal. O trio só cumpre seu papel de folhetim para o simples entretenimento, mas faltam-lhe algum ingrediente que vez ou outra abunda em outras receitas.Na carência, é melhor rever Cheias de Charme, diversão garantida e crítica social de primeira. Ou apelar para as reprises do Viva...
Nas minisséries tivemos Justiça como uma obra digna de elogios. Inovou, ousou e fez um grande trabalho com cenas lancinantes e personagens de rara densidade como a Fátima de Adriana Esteves e a mãe-pietá  de Débora Bloch, além da breguice perverso-cômica de Kellen (Leandra Leal). O conceito de justiça foi visto sob diversos olhares, oferecendo lentes de aumento sobre vários dramas. Optou bem pelo Recife e seus cenários, o espaço resultou num protagonista a mais.  A ideia dos múltiplos pontos de vista trouxe um frescor excitante para o horário. Todos bebendo das séries, mas e daí? Não há nada de novo mesmo sob o sol...
Janeiro se anuncia com uma boa promessa: Dois irmãos, adaptação do romance do amazonense Milton Hatoum. Um dos melhores romances que já li. O classifico não só como um grande romance contemporâneo, mas o ponho na lista dos melhores do Brasil. O autor revive a relação de gêmeos rivais de inspiração bíblica assim como fez Machado de Assis com o seu Esaú e Jacó. Vale mesmo ler o romance e garanto que vão querer ler outros títulos do autor. Pelas chamadas e pelo elenco a série promete. Aliás, acho que a televisão contribui com a leitura e curiosidade sobre os livros quando produzem essas obras. Afinal depois dela, Nada, nada mesmo, será como antes...

Avante 2017, Que os bons fios da ficção nos tragam boas horinhas de descuido e felicidade, afinal precisamos dessa Terceira margem... Contiuemos em diálogo dentro e fora das telas e dos livros...

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Cartas para Antía: Julieta de Almodóvar, uma ode ao destino


O novo filme de Almodóvar, Julieta, é uma daquelas tramas que faz nossos votos de amor às narrativas serem renovados durante seus 100 minutos e continuam ecoando em nós por mais algum tempo. Baseado no livro de contos Fugitiva de Alice Munro (Nobel da literatura em 2013), o titulo original é Silêncio, um dos contos que inspiram o cineasta espanhol. Os dois títulos, seja Silêncio ou Julieta, fazem todo sentido ao longo da história. Mas, para muito além da influência da autora canadense, o filme estabelece um belo diálogo com a literatura clássica (tragédia grega) e a força do destino presente no mundo grego.

Almodóvar é um grande leitor/escritor de perfis femininos, suas mulheres têm sempre muita força e os homens ao seu redor parecem sempre coadjuvantes perdidos no vendaval de sentimentos que elas representam, afinal sempre precisamos volver ou saber mais sobre nossas mães. Em Julieta ele não foge dessa regra e faz sua protagonista brilhar em dois tempos. Uma jovem professora de Literatura Clássica com visual punk dos anos 80, e no presente, uma mulher de meia idade atormentada pelo silêncio imposto pelo fuga/sumiço de sua filha, Antía (personagem de uma obra grega atribuída a Xenofonte, Os Efésios, um romance amoroso regido pela interferência de Eros, considerado pela crítica uma obra feita para mulheres).

Julieta está pronta para mudar-se para Portugal com seu atual companheiro quando reencontra uma amiga de sua filha, Bea, que a faz reabrir as feridas e nos contar sua história. Daí, em media res, como nos épicos, vamos conhecer seu passado, numa escrita catártica de cartas para sua filha. Ela vai desfiando no papel seu relato e nós vamos acompanhando suas memórias em flash back, principalmente seu romance com o pai de sua filha, Xoan, um pescador que encontra numa surpreendente viagem de trem (há mais mistérios nessa sequência...) e muda o curso de seu destino/viagem. Quando se apaixonam, ele cuida há anos de uma esposa doente que vem a falecer e Julieta ocupa seu lugar, sua casa e também herda sua empregada, sua amiga, ambas peças- chave no filme.

É interessante notar a idéia de destino típica das tragédias. Além de ser professora de Literatura clássica (dá uma aula sobre Ulisses e os sentidos do mar em grego, episódio em que ele fica refém da deusa Calipso), quando conhece Xoan no trem ela está lendo um livro sobre Tragédia grega. A questão da culpa vai surgir em várias cenas que parecem se desdobrar muitas vezes. O mesmo que ocorre com a mulher de Xoan, vai acontecer com os pais de Julieta, sua mãe adoece gravemente e seu pai arruma uma amiga dela para cuidar da casa, mas o amor entre eles acontece e essa moça também tomará o lugar de sua mãe. A ideia de cumprir uma expiação vai sempre se refazendo de várias formas e em várias personagens...

O drama que vira a trama do avesso se dá quando Julieta descobre a traição de seu marido, eles discutem, ela sai, ele vai pescar e morre numa tempestade e tudo isso ocorre enquanto Antía está em um acampamento de férias. Daí em diante, o silêncio reina e esse será um dos motivos da partida da filha, viagem incompreensível para sua mãe. Ela passará a escrever para entender o que aconteceu...Colando os pedaços da fotografia rasgada, um quebra-cabeças que vamos montando junto com ela, numa busca densa pelas respostas.

Elas só se encontrarão doze anos depois (quase como Ulisses), quando um elemento que o destino mais uma vez reduplica faz com que sua filha a procure, claro que não contarei aqui...E essa cena não veremos, ficamos com os créditos, uma bela viagem (odisséia), uma bela música (Si no te vas) e a imaginar os abraços de reconciliação que se privaram por tanto tempo.

Oh, Almodóvar, que os deuses continuem te inspirando e que o nosso destino permita desfrutar  ainda muito desse mar sem fim de suas histórias...

 

 

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Trolls, abraços, arco-íris e bolinhos


Para Miguel, Lúcia, Lina, Jorge e Breno, companheiros felizes de sessão



O novo filme da Dreamorks é mais do que uma simples animação. Dos mesmos autores do inesquecível Shrek (mesma fórmula da feiura fofa), para Trolls também pode ser atribuída à classificação de aventura e comédia musical, sobretudo, um bom musical. A trilha sonora é  de excelência, daquelas que fazem a gente se sacudir na cadeira do cinema. As crianças grandes reconhecerão muitos hits revisitados (John Travolta e Elton John dentre eles).

Estruturado no binômio Felicidade x Tristeza ou Entusiamo x Apatia, temos de um lado os coloridos e pequeninos Trolls liderados pela sempre otimista Poppy, e do outro os cinzentos e gigantes Bergens, cuja tristeza só pode ser unicamente revertida por um antídoto: comer os Trolls...Numa espécie de ritual antropofágico, os cinzentos precisam devorar a poder dos coloridos para assimilar seus sentimentos positivos e sua cor, caso contrário, são condenados à tristeza profunda e contínua.

A princípio parece um maniqueísmo bem simplista típico dos contos de fadas tradicionais, mas o desenho vai ganhando contornos bem interessantes ao longo da trama. O conflito surge quando os Trolls, liderados pelo seu rei, o pai de Poppy, resolvem fugir com seu povo no dia do Festival em que seriam devorados. Escondem-se por longos anos em um reino subterrâneo de pura alegria, até que são encontrados e correm risco de vida novamente. Daí surge toda a graça do desenho. Na luta pela sobrevivência, a já Princesa Poppy encontra no rabugento Tronco, um parceiro de aventuras e um grande amor.

Na jornada engraçadíssima, ainda renovam o clássico Cinderela através da ajudante de cozinha do Rei dos Bergens que alimenta um amor por sua majestade. O pobre reizinho nunca conheceu a felicidade, até desfrutar do amor dessa Gata Borralheira de patins (virou uma diva na mão dos Trolls) e comer pizza em sua boa companhia, imagem que denota outras possibilidades de ser feliz...E o melhor de tudo, a tal felicidade está em nós mesmos e  nas nossas relações...

Destacam-se ainda no filme o colorido especial, os traumas que nos fazem ficar acinzentados, o poder curativo do afeto e dos abraços, a lealdade, a coragem e outros tantos valores que as crianças e nós, crianças grandes, precisamos lembrar sempre. E toda a história é contada através de uma espécie de livro mágico, que vai dando vida aos personagens, reavivando nossas emoções e acionando camadas profundas da nossa alma ao correr das páginas e dos pixels...Desde Toy Story, Shrek, Divertidamente que eu não gostava tanto de um desenho...

sábado, 1 de outubro de 2016

Velho Chico, penúltimas palavras


Entre 14 de março ( Dia da poesia) e a noite de ontem ( Vésperas das eleições municipais) o Brasil acompanhou Velho Chico, casamento feliz entre poesia e realidade. Novela que dividiu opiniões, não foi líder de audiência, desagradou muitos, mas na minha visão e na de tantos outros telespectadores entrará para a história da teledramaturgia brasileira como uma de suas melhores produções. Usando um trocadilho inevitável, será lembrada como um divisor de águas de nossa televisão. Esse texto final que ora escrevo, será o nono sobre a trama, por absoluta falta de tempo de escrever mais, pois cada capítulo suscitava em mim o desejo de correr à pena.

Creio que o principal já disse ao longo desses 6 meses, mas para louvar o final é necessário atar algumas pontas da arte e da vida. Guerra entre famílias  e dentro de famílias, amores proibidos, coronéis déspotas, cidadezinhas perdidas no sertão, padres conciliadores, heróis idealistas, tudo isso já foi contado e recontado ao longo dos 50 anos da novela brasileira, motes igualmente cantados em prosa e verso na nossa literatura. Então o que fez de Velho Chico algo especial? Um amálgama de temas, cores, formas, mitos, fotografia, lendas, arte, música, mistérios, texto, real e fantasia, planos paralelos, misturados em dose especial. Afinal se não houvesse magia nas receitas todos nós podíamos fazer os mesmos pratos com os mesmos ingredientes, mas sabemos que isso não é possível... Há segredos insondáveis que geram resultados inusitados...

Primeiro destacaria a direção de arte, com sua riqueza de detalhes, olhar de míope para as miudezas desse sertão. Podemos nos extasiar de beleza com os detalhes presentes nas festas religiosas, nos altares dos santos, nas fotografias das paredes, no fogão de lenha, nas rezas, nos velórios, dentre tantos outros pormenores que fizeram a diferença.

A trilha sonora foi um espetáculo à parte. De Tom Zé (a música parecia sob medida para o Saruê)  a Ednardo, de Geraldo Azevedo a Xangai, da sanfona de Luzia ao forró do Bar de Chico Criatura, de Legião Urbana às ladainhas e aboios, dos boleros de Iolanda à belíssima Margem (“Há um rio afogando em mim”) e uma menção honrosa para Maria Bethania que nos acalentou com seu dom divinal em vários momentos da trama. A narrativa nos brindou com um concerto variado de vozes e ritmos que por si só já valia acompanhá-la, a musicalidade  foi uma protagonista paralela. Vale lembrar ainda do canto doloroso  da “Rasga mortalha” para anunciar cada morte iminente...

Outro aspecto digno de nota foi a possibilidade generosa dos autores de dar espaço, vez, voz e cenas arrebatadoras não só para os protagonistas, mas para todas as personagens secundárias. Todas tinham uma história e tiveram oportunidade de nos contar. Como num rio principal que é alimentado pelos seus afluentes, todos tiveram seus momentos de glória. Destaquemos nesse final:  Dona Ceci e Dalva (meus aplausos para Mariene de Castro, grata revelação) como personagens simbólicas de questões identitárias que ganharam solos dignos de ópera nessa última semana. A rezadeira chorando a morte de seu Deus e a doméstica rompendo seus grilhões e ainda estapeando o coronel genérico. Ciço também merece nosso olhar, personagem que saiu das trevas para a luz através do amor e da arte. Seu final ao lado de sua “Darva” foi apoteótico, saíram das coxias para os palcos como uma trupe mambembe que vai disseminando alegria por onde passa, mas antes disso tomou a benção do Seu Painho (revivendo Renascer) que pode retomar com ele resíduos da paternidade negada a Martim.

A intertextualidade gritou tão alto nessa novela que poderia me ocupar disso por dias (e devo agradecer a vários amigos-colaboradores que sempre estavam me apontando mais alguma citação), lembraremos de alguns. Romance de 30 com destaque para Jorge Amado e Graciliano Ramos. Guimarães Rosa em tantos momentos com seu sertão mítico, físico e metafísico (Terceira margem do rio reinou). Os amores proibidos de Shakespeare, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós. Nesse final tivemos a citação direta de Dom Quixote e seus moinhos de Vento, Ecos de Rei Lear, releitura da tentação de Cristo com o Demônio Saruê x o Cristo Afrânio, e  este venceu despindo-se do coronel grotesco que  aprisionou sua alma. Retomou-se o galo do início da trama, páginas de Gabriel Garcia Marquez (todo épico volta ao princípio). No primeiro capítulo o galo era do pai de Afrânio e ontem esse o passou a Miguel. Um símbolo de “macheza” que deveria ficar com o homem da casa doravante. Aliás, o belo diálogo entre avô e neto circulou entre os mistérios da existência...Quem nos explica?...Natureza, Deus, destino, perguntas que nos acompanharão eternamente...

No quesito “social” a novela navegou muito bem, singrando as margens e barrancos das injustiças sociais, corrupção, jogos de poder, delações e tantas outras pautas que poderiam nos confundir com o noticiário que nos rodeia. Deixando uma mensagem de esperança através da participação popular e de novas pessoas propondo uma política diferente do que temos. Bento e Beatriz, vocês deveriam existir fora da tela e os coronéis perecerem de sede como Carlos Eduardo...

O capítulo final, apesar da melancolia incômoda pela ausência bruta do seu protagonista, apresentou um tom também esperançoso. Com nascimento, casamento, frutas, chuva, broto, flores e vinho nos sinalizando que a vida segue em frente e mais uma vez todos reunidos à mesa, espaço sagrado de conciliação (mitos primaveris). E como não podemos terminar sem lembrar da fatalidade que cruzou esse rio... A homenagem ao nosso Santo, colhido pelo Gaiola dos Encantados para nosso espanto e tristeza, o trouxe de volta à vida pelos fios da ficção...E ele segue navegando no Velho Chico e na nossa memória afetiva...Essa história não acaba aqui, segue conosco, por isso minhas penúltimas palavras, haverá sempre um rio afogando em nós...Nunca houve uma novela como Velho Chico...