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terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O Outro e A outra forma da água


                                                                               Para Chico Lima e sua cintilação do olhar

Assisti ontem nesse feriadão de Carnaval (esse é o meu bloco) ao novo filme de Del Toro, A forma da água, com mais de uma dezena de indicações para o Oscar. Curiosa a princípio pelo título enigmático, guiada pelo prazer que tive com O labirinto do Fauno, ansiosa para saber o motivo de tantas indicações e motivada pelas recomendações especiais de 3 amigos cinéfilos (João Evangelista, Gleidson Ramos e Juliana Salles), devo dizer que todos estavam certos, é mesmo um grande filme, daqueles que causam o tal estranhamento sistematizado pelos formalistas russos.
O argumento principal da trama é insólito (aquilo que não soe acontecer), uma faxineira muda apaixona-se por uma Criatura aquática estranha(meio anfíbio, meio peixe, meio homem) capturada nas águas da América do Sul pelos americanos em plena Guerra Fria, plano de fundo político do filme (em O labirinto o cenário de fundo é a ditadura de Franco). Ela trabalha em uma espécie de laboratório secreto bem aos moldes do clima de espionagem e sabotagem entre essas duas potências bélicas nos anos 60. Sua rotina maçante e quase robótica é despertada pela chegada da Criatura aquática.
Em um dos diálogos ficamos sabendo que para os nativos da região, a criatura era considerada um Deus, fato que se confirmará no final. Ancorado em excelente fotografia, cenários, trilha sonora, figurinos e jogo de luz, o filme nos remete  todo tempo à uma atmosfera onírica aos moldes dos contos de fadas (há ecos de Amelie Poulain). Vale ressaltar, que há muitos outros contos de fadas e lendas construídos através de laços afetivos entre criaturas de mundos diferentes ou espécies diferentes tais como A Pequena Sereia, A Bela e  a Fera ou King Kong dentre vários exemplos, inclusive nas diversas mitologias.
            O caráter fabular da narrativa é confirmado no início e no final pela voz de um narrador que nos introduz na trama, que mais tarde ficamos sabendo que se trata de Giles, o melhor amigo de Elisa, é esse o nome da protagonista. É interessante notar que para todos os seus superiores ela é a faxineira muda, mas seus dois amigos, Giles e Zelda (brilhantes coadjuvantes, Octavia Spencer arrebata como sempre, ele o gay artista velho e solitário, ela a faxineira negra e mal casada) seu nome é sempre pronunciado com muita força, pois um dos motes principais do filme é a comunicação com o outro, esse estranho.
Daí chegamos na tal alteridade (alter= outro), creio que a pedra de toque do filme. A Criatura, esse outro estranho, desperta sentimentos e interesses diversos a todos ao seu redor. Os interesses políticos das duas nações, o interesse científico do cientista russo, que tocado pelo seu lado de pesquisador acaba por arrepender-se de sua sabotagem e se aliará aos “sem voz” do filme para realizar a retirada da Criatura do laboratório e tentar salvar sua existência,  o interesse amoroso de Elisa e generoso de Giles que depois de mais uma decepção profissional e afetiva resolve ajudar no plano mirabolante da fuga, também entra aí Zelda que por sua amizade por Elisa completa a tropa da salvação. Todos esses motivados em dar um sentido às suas vidas vazias e a seus papéis subalternos, posição social ratificada sempre pelo Chefe do lugar, antagonista por excelência, tão prepotente que acha que Deus se parece com ele, jamais com a Criatura ou com Zelda.
A riqueza metafórica e alegórica do filme é composta de infinitas camadas que creio não conseguir alcançar em sua profundidade, daí tantos parêntesis nesse texto. Comecemos pela água, a grande imagem do filme, explícita no título. Se a água é amorfa e toma a forma do seu recipiente, ela terá um sentido único para cada um. E ela surge sob diversas formas, no ferver dos ovos, no banho, na chuva, no rio, e é claro na sobrevivência da Criatura. Símbolo de vida e erotismo, essa carga semântica literalmente extravasa e transborda na tela, como na gloriosa cena do encontro erótico-amoroso no banheiro ente Elisa e Ele (agora não mais a Criatura) que respinga por todo prédio, não gratuitamente construído sobre o cinema Orpheum.
O ovo, outra metáfora da vida, é alimento para Elisa e para Ele, que também lhe nutre com música e carinho. Os dedos apodrecidos do Chefe exalam o mal cheiro de sua essência (cena boa quando Giles amassa o seu Cadilac verde-azulado, modelo de sua arrogância). Os cabelos renascidos e a cura dos ferimentos de Guiles por Ele mostra o seu vigor voltando depois de tantas frustações e a sua TV sempre passando romances e musicais alimentam os sonhos de Elisa, que em uma das cenas protagoniza um filme, onde finalmente solta sua voz.
Semelhante aos heróis míticos, a origem de Elisa é desconhecida, uma criança encontrada à beira de um rio e criada em um orfanato. O Chefe sugere que a sua mudez seja fruto de suas cicatrizes no pescoço, alguém pode ter cortado suas cordas vocais, fato que fica em aberto no filme. Há uma cena em que esse déspota a assedia e a humilha, pois na sua fala destaca a sua mudez e cicatrizes como uma espécie de argumento que ninguém mais se interessaria por ela.
Como uma história sempre puxa outras e outras, A forma da água me lembrou o olhar dos cronistas viajantes sobre O Novo Mundo, esse novo inapreensível pelos moldes de olhos velhos. Francisco Ferreira de Lima pesquisador do tema e hábil navegador dessas águas no seu livro O Brasil de Gabriel Soares de Sousa & outras viagens (2009, 7 Letras/UEFS), versando sobre esse espanto sobre o novo que nos seduz e apavora, resume a tríade que rege o espírito dessa  literatura: “Susto, espanto e maravilha. Com essas três palavras atingimos o ser profundo da literatura de viagem: Antes que qualquer coisa possa ser dita ou escrita, o viajante experimenta desconcertante sensação intima, uma espécie de cintilação do real, como a bem denominou Francis Affergan(1987). Nenhum código, qualquer que seja, será capaz de domá-la porque elas a todos eles resiste. É só através  dessa cintilação que a alteridade pode ser vivida em sua inteireza”(p.106-107)
Se na Literatura de Viagem o Outro eram os mistérios do Movo mundo, em A forma da água o Outro era a Criatura, Ele, o sem nome, já em nossas relações O Outro também nos seduz e apavora e nessas diferenças conhecemos mais sobre nós mesmos, nem que para isso tenhamos que mergulhar nos mistérios das águas pronfundas....Como nos versos islâmicos citados no final do filme:
“Impossibilitado de perceber Sua forma, encontro você à minha volta. Sua presença me enche os olhos com Seu amor, acalma meu coração, porque Você está em todos os lugares.”



quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

É tempo de tempo de amar

                                        Para minha mãe Antônia, fiel companheira dessa história e de tantas outras.

A novela das 18:00h, Tempo de amar, traz em si todas as virtudes de um bom folhetim de época. Sob a autoria de Alcides Nogueira e Bia Corrêa do Lago (argumento de Rubem Fonseca), o primeiro  já mostrou seu talento em outras produções de época seja como colaborador ou como autor principal (Força de um desejo, Direito de amar, Um só Coração, JK). Só agora nas férias tive tempo de apreciá-la como ela merece, e aceitei o convite para sentar-me como se estivesse na Confeitaria Colombo e degustá-la.  Esse horário é ingrato para nós mulheres desdobráveis. Começo a elogiar a estética da trama, a fotografia e cenários, sejam do Portugal interiorano com suas quintas e casas de pedra, ou do Rio de Janeiro do final dos anos 20, estão belamente representados e funcionam como molduras para a narrativa. Vale destacar o enxerto de imagens de época que conferem mais beleza e veracidade à tela da ficção.

A pesquisa histórica também é digna de nota. Temos como pano de fundo todas as questões que pulsavam na nossa Belle epoque tropical. Um Brasil pós-escravidão, vivendo as primeiras décadas da República, se assentando naquilo que começaríamos a chamar de nossa modernidade convivendo com os resquícios coloniais, urbanização, industrialização, imigração, organização das relações trabalhistas (Vide Pepito e as geleias Supimpa), jogadas políticas, sobrados e cortiços, movimentos culturais, boemia. É interessante notar um rebuliço nas classes sociais e posições que começam a se mexer, como é o caso da megerinha de Débora Evelyn que faz de tudo para manter a pose de um status quo que já não possui ou acha que possuiu.  Observem as cenas do Grêmio onde os jovens da trama discutem feminismo, literatura, racismo, artes, inclusive com a presença de Pixinguinha e Gilka Machado. Há também muitas cenas de rua e ambientes sociais variados, bares, cafés, cinemas, confeitarias e o simbólico cabaré enfatizando bem o frêmito do período, como numa crônica de João do Rio ou Bilac.

Sobre o eixo central paira o tema dos temas de todos os folhetins: O drama amoroso de Maria Vitória e Inácio e suas agruras para conseguir viver esse sentimento de além e aquém-mar. Até uma fadista temos (Quem diria que Magda poderia!) para alimentar mais a coita de amor. Como soe acontecer há os vilões dispostos a separar o casal. Dessa vez duas vilãs com V maiúsculo. Desse lado do oceano, Lucinda, surpreendente Horta (virei fã depois de Elis), e toda sua carga de rancor e cicatrizes. Do lado de lá do Atlântico, Delfina, brilhante Sabatella, com seu desejo de reparação que lhe cega (ecos de juliana de O primo Basílio). O tema dos temas que atravessa os séculos está magistralmente representado na abertura com casais que atravessam a nossa cultura: Adão e Eva, Helena de Troia e Páris, Romeu e Juileta, Zumbi e Dandara e Lampião e Maria Bonita em quadros que vão se superpondo para retratar a ideia da força do amor dos protagonistas. Ao lado deles na trama, outros romances vão surgindo e também nos encantando, seja na burguesia ou no proletariado, ou melhor ainda quando se misturam como o médico e a doméstica. É mesmo uma novela de amor e como amor rima com humor, há cenas bem cômicas como a de Seu Geraldo e Dona Nicota na Festa dos Porcos...
A trama é bem construída e parece ter espaço para todas as personagens aparecerem um pouco e todas têm alguma complexidade. Desde o gigante Tony Ramos aos bem novatos como os jovens imigrantes. E por falar em personagens, fomos brindados com a aparição de Ester Delamare (Malu Mader), a baronesa de Sobral de Força de um desejo, uma das melhores novelas de época que já tivemos. Um show de intertextualidade, não só cruzando os enredos, mas também cruzando os tempos, pois uma das suas falas foi sobre o fato de que agora os títulos de nobreza não mais importavam.
Sempre é tempo para falar de amor, sempre é tempo para boas histórias sobre esse “Um não sei quê, que nasce não sei onde; Vem não sei como; e dói não sei porquê.” Continuemos...Afinal:

Balada do amor através das idades
 Eu te gosto, você me gosta 
desde tempos imemoriais. 
Eu era grego, você troiana, 
troiana mas não Helena. 
Saí do cavalo de pau 
para matar seu irmão. 
Matei, brigamos, morremos. 
Virei soldado romano, 
perseguidor de cristãos. 
Na porta da catacumba 
encontrei-te novamente. 
Mas quando vi você nua 
caída na areia do circo 
e o leão que vinha vindo, 
dei um pulo desesperado 
e o leão comeu nós dois.
Depois fui pirata mouro, 
flagelo da Tripolitânia. 
Toquei fogo na fragata 
onde você se escondia 
da fúria de meu bergantim. 
Mas quando ia te pegar 
e te fazer minha escrava, 
você fez o sinal-da-cruz 
e rasgou o pito a punhal.. 
Me suicidei também.
Depois (tempos mais amenos) 
fui cortesão de Versailles, 
espirituoso e devasso. 
Você cismou de ser freira.. 
Pulei o muro do convento 
mas complicações políticas 
nos levaram à guilhotina.
Hoje sou moço moderno, 
remo, pulo, danço, boxo, 
tenho dinheiro no banco. 
Você é uma loura notável 
boxa, dança, pula, rema. 
Seu pai é que não faz gosto. 
Mas depois de mil peripécias, 
eu, herói da Paramount, 
te abraço, beijo e casamos.
Carlos Drummond de Andrade 


sábado, 6 de janeiro de 2018

Entre irmãs: Outras histórias cruzadas

Para meu tio Auri Cotias, que assistiu comigo atentamente ao último capítulo

A minissérie Entre irmãs exibida essa semana pela Rede Globo de Televisão nos encantou através de um tema que é universal, a relação entre irmãos. Baseada no livro “A Costureira e o Cangaceiro”, de Frances de Pontes Peebles, virou filme pelas mãos de Breno da Silveira e roteiro de Patrícia Andrade e agora esse filme foi exibido no formato que vimos na TV (assim como Malasartes) durante essa primeira semana do ano.

Bom começo para a teledramaturgia. O tema universal da relação entre irmãos é um mote que atravessa a nossa cultura, mas de forma geral é contado através da sombra rivalidade. Desde  Caim e Abel, Esau e Jacó, José do Egito, Pedro e Paulo e Yaqub e Omar (protagonistas de Dois irmãos, de Miltom Hatoum que também foi transformada em série pelas brilhantes mãos de Maria Camargo) vemos irmãos brigando nas páginas e nas telas. Já nessa história, o que se sobressaiu é justamente o contrário, o amor fraterno incondicional entre as protagonistas, Luzia e Emília, defendidas muito bem por Nanda Costa e Marjorie Estiano (como essa atriz cresceu desde Malhação até aqui). 


Além da trama muito bem construída, ou melhor dizendo costurada, devemos destacar as atuações (Cyria Coentro é uma verdadeira estrela, a cena de seu delírio e morte na rede foi comovente), os figurinos, a fotografia, a abertura, a direção de arte minuciosa. Sobre o tema, ponto para ideia dos destinos cruzados e inseparáveis das irmãs narrado como uma questão aberta pela tia Sofia, a sábia que as criou. A que acreditava no amor, não foi amada como idealizou. A que foi levada quase à força encontrou o verdadeiro amor nos braços do mítico Carcará, mistura de Lampião com todos  os outros reis do cangaço (o episódio do sal  saiu de Lampião). Cidade e Sertão, Recife e Caatinga, Luxo e Fome, Macacos e Jagunços, Ciência e Fé atravessaram os pespontos desse tecido tão bem cozido. Vale ressaltar também, o papel narrativo dos jornais da época, uma espécie de voz paralela que ia nos contando dos acontecimentos com suas manchetes sensacionalistas e fotografias fortes.

A obra dialoga profundamente com nossos romances regionalistas (realistas/naturalistas) do século XIX e com o romance de 30, com destaque para O Quinze de Rachel de Queiroz. A cena em que Emília recebe o sobrinho Expedito dos braços de Luzia é muito semelhante a que Conceição toma Duquinha, até mesmo o espaço dos retirantes (muito semelhante aos campos de refugiados de hoje) no meio da nada e da fome e as mães com os peitos vazios pela seca que assola corpos e almas.

Outro ponto chave da narrativa foi a tal Frenologia ( de phrenos= mente e logos= estudo), ciência que acreditava que o formato da cabeça determinava o caráter da pessoas e a sua capacidade mental, daí tantas cabeças cortadas para estudo na época (Ver  Cesare Lombroso, pai da criminologia moderna,  tem tudo a ver com isso!). O sogro de Emilia, defensor fiel dessa crença, protagonizou algumas cenas com sua fita métrica que achava poder explicar tudo. Ledo engano, todos ao seu redor (inclusive seu filho para seu desespero, a homossexualidade considerada doença  a ser tratatada no sanatório) traíram sua teoria. Emília, que também usava a fita métrica como instrumento de trabalho, revelou em sua tocante carta de despedida (cena final da série), que em matéria de gente as medidas são bem outras, intangíveis, incomensuráveis e imponderáveis, numa bela analogia entre a costura e a ciência.


Excelente texto, rico em signos e simbologias (o baile de carnaval e suas máscaras que o digam), com forte pesquisa histórica e política, diálogos impecáveis a exemplo do rompimento de Felipe com Degas (“Minha vida andou para frente e nossa história ficou para trás”), enredo bem cingido que nos concedeu fortes emoções como a viuvez simultânea das irmãs. Como as Moiras ou Fiandeiras (mito greco/romano) de Malasartes ou sem elas, parecem que alguns destinos estão mesmo cruzados e entrelaçados por fios tênues, ninguém é irmão de sangue ou da vida por acaso...Continuemos, I'm fine...

sábado, 16 de dezembro de 2017

O extraordinário Extraordinário

                  Para Guel, Bá, Nanda e Bia



O filme Extraordinário, dirigido por Stephen Chbosky, é daqueles que nos fazem entrar em contato com uma gama de sentimentos e sair do cinema com aquela sensação reconfortante que viver vale a pena, ou as penas de viver valem, apesar de tudo.  Adaptação do livro homônimo escrito por R.J. Palacio, narra a história de Auggie Pullman, um menino que nasceu com uma anomalia na face e passou por dezenas de cirurgias, 27 exatamente. As pulseirinhas de cada internamento aparecem como se fossem um quadro de medalhas de feitos heroicos ou troféus de vitórias. Ele nunca foi à escola até entrar no Fundamental II (na nossa equivalência) sendo escolarizado por sua mãe, a brilhante Julia Roberts, numa atuação digna de Oscar. Sua mãe, seu pai e sua irmã, como é descrito no filme, são os planetas que giram em torno do sol que é Auggie.
Chega em fim o dia tão temido de Auggie ir à escola regular, o mote central da trama é sua adaptação a esse novo mundo inóspito para muitas crianças, imaginem para ele que tem sua diferença estampada na face. O que aparentemente seria mais uma história sobre bullying e superação, ganha contornos maravilhosos que cativam a plateia do início ao fim. Entre os pontos altos do filme está o modo narrativo que vai mostrando os pontos de vista de cada personagem envolvido na vida de Auggie, mostrando que cada um tem suas razões para agir como age, lição de alteridade: O pai, a mãe, a irmã, a amiga da irmã e os companheiros de escola. Detaca-se nessa estratégia o papel da irmã e a reflexão que é feita sobre o drama de quem tem irmãos especiais e tem que contentar-se com o papel de coadjuvante na vida da família, ela sofre por sua invisibilidade ante os olhos da mãe e tem amparo nas lembranças do afeto que sua avó (Sonia Braga rouba a cena em menos de 5 minutos de flashback) a devotava e na amiga Miranda, outra grande personagem, fiquem de olho nela.
Na escola, Auggie é recepcionado por alguns colegas que se tornam seu grupo e mais tarde descobrirá que foi tudo a pedido do diretor, outra personagem cativante. As sequências de rejeição e desrespeito são muitas e o menino vai sobrevivendo como pode, sempre apoiado pelo amor incondicional da família. É sintomático o fato dele ter no Halloween sua festa preferida, pois mascarado ele não é desprezado por ninguém e se sente parte do grupo.
 Sua inteligência e humor vai aos poucos conquistando algumas amizades verdadeiras e vai ganhando seu espaço na escola. São deliciosas as cenas da Feira de Ciências, ele é um geniozinho dessa área, e da briga entre os meninos. Nessa briga é selado, de fato, um pacto entre amigos e ele agora tem sua gangue! Sua emoção após a briga, abraçado aos meninos diante do lago, é daquelas cenas de derreter os corações mais duros.
Outro ponto digno de nota é o papel do professor com suas aulas cheias de ética e valores positivos, a partir de lemas edificantes que atuam na formação do caráter das crianças. Dentre esses lemas, há um em especial, que diz aproximadamente assim: Entre ter razão e ser gentil, seja gentil, você nunca sabe as batalhas que o outro está travando. Vale ressaltar também o papel das famílias na formação de seus filhos, temos modelos diversos de famílias na trama, das modelares às repulsivas e como isso afeta seus filhos.Ainda há um brinde especial no filme, a relação intertextual com o universo de Star Wars e Minecraft, cerejas de um bolo que em si já é um deleite.
O filme nos aproxima daqueles romances de formação que o protagonista tem que passar por expiações e aprendizagens múltiplas a fim de alcançar a felicidade. E Auggie a alcança, com direito a medalha e discurso, como aluno destaque do colégio para a alegria da plateia do auditório no filme e para nós na plateia do lado de fora da tela.
Vão assistir Auggie, Augusto, sagrado, levem suas crianças (a censura é dez, mas de uns 6 em diante estão aptos) e reflitam com elas sobre o que vimos ali. Extraordinário, aquilo que foge ao ordinário, ao comum, ao trivial e vai além...





domingo, 10 de dezembro de 2017

O outro lado do paraíso: Walcyr Carrasco e o profícuo diálogo com os clássicos

O outro lado do paraíso entrou no ar com a difícil missão de substituir o sucesso de A força do querer, tarefa sempre árdua em qualquer setor, substituir algo ou alguém que alçou altos níveis de aprovação. Chegou de mansinho sem muita novidade, com uma primeira fase meio morna para quem estava com a adrenalina alta ministrada pelas doses diárias de Glória Perez. A primeira fase funcionou como uma etapa bem didática com a função de preparar o terreno para a sua segunda fase que agora caminha muito bem. A princípio entramos em contato com os perfis psicológicos de cada personagem e com as motivações de vingança/justiça que animam a segunda fase, pois toda a trama é baseada na lei do retorno, haja vista sua música de abertura que não deixa dúvidas ( “Tudo que você faz, um dia volta pra você”).

Na fase de transição entre a primeira e a segunda fase, uma década, destaquemos os anos de formação de Clara ao lado de Beatriz (como a de Dante, a conduziu das trevas para a luz através do conhecimento). Assim como Clara, ela também foi vítima de uma cilada familiar motivada pela cupidez que culminou num destino comum para ambas: o sanatório. Não foi difícil reconhecer logo nos primeiros acordes da convivência das duas a relação intertextual com O conde de Monte Cristo, clássico incontornável da literatura ocidental de Alexandre Dumas, relação muito bem tecida já que também seu mote central é um plano de vingança/justiça. Beatriz preparou Clara emocionalmente  e culturalmente para poder trilhar seu retorno  e conduzir seu plano de reaver o que lhe foi usurpado, além de fazê-la herdeira de uma fortuna que facilitará a execução de seus objetivos.

Walcyr Carrasco, profundo leitor dos clássicos da literatura ocidental, adaptou vários deles para o público juvenil, e costuma trazer esse salutar diálogo para suas tramas na televisão. Em O cravo e a rosa relemos A megera domada de Shakespeare, em Chocolate com pimenta entramos em contato com A viúva alegre filme de 1934, em Sete Pecados com A divina Comédia, em Êta mundo bom revimos um misto de Cândido de Voltaire e Mazzaropi, para ficarmos aqui com as citações mais diretas, pois ele também faz menções mais sutis como na última cena de Amor à vida inspirada em Morte em Veneza.

Para Ítalo Calvino em Por que ler os clássicos, um clássico é aquela obra que nunca termina de dizer o que há para dizer, dessa forma considero extremamente bem-vindo esse trabalho de visitação ao nosso acervo cultural nas telenovelas, além de enriquecer o texto, nos põe em contato com os grandes dramas humanos que são em última instância  a matéria primordial das obras clássicas. Também lembrando Kristeva “todo texto é um mosaico de citações”, vamos nos alimentando do que lemos, do que vimos, do que ouvimos e assim costurando nossos fios através dessa rede interminável de diálogos.

Dito isto, passemos para alguns detalhes da trama. Um ponto me chama  atenção na novela, a complexa relação da maternidade. Há muitos tipos de mães na narrativa. A megera-mor Sophia, brilhante Marieta Severo (quem diria que Dona Nenê seria capaz?), manipula e maltrata seus 3 filhos ao sabor dos seus planos, com ênfase para sua não aceitação da filha anã, para ela uma aberração que não merecia e tenta esconder a todo custo. A personagem Stela está interessantíssima, Walcyr inova ao trazer o tema do nanismo para a discussão, além de termos com ela outra relação maternal não consanguínea, sua babá é sua mãe de fato e luta por sua felicidade.

Nadia, outra manipuladora, também conduz com mão de ferro o destino dos filhos. Esposa de um juiz corrupto, se refestela com seus “jeitinhos” e lucros auferidos, tida como grande dama da sociedade é a encarnação do preconceito e egoísmo, seu peso é aliviado na trama pela comédia que é sua alcova com suas peripécias sexuais. A mãe do médico gay, que não tem coragem de sair do armário para não decepcionar mamãe, é outra relação materna interessante, uma manipuladora também, ganha nossa simpatia pelos disparates que fala. Lívia, obsessiva pela maternidade, compactuou com o plano diabólico da mãe, para ficar com o filho de Clara. A personagem de Glória Pires, em nome de salvar o futuro de sua filha, aceita morrer em vida e mata Elizabeth para dar vida à Duda. E parece que mais mistérios envolvem sua relação com a maternidade. Tudo indica que a maternidade na trama é que é o padecer no outro lado do paraíso, e até então se insinua que o amor materno pleno só se realizará com Clara que moverá o mundo para reaver o filho roubado, sua verdadeira mina.

Outro ponto especial na trama é a atuação dos nossos atores octogenários. Um time estrelado: Lima Duarte, Fernanda Monte Negro, Nathalia Timberg, Laura Cardoso e Ana Lúcia Torre ( essa septuagenária). Todas as vezes que eles aparecem em cena temos momentos de fulgor na tela. Fernanda com sua personagem mística está mesmo alguns centímetros acima do chão, ganhou uma aura de santidade. Sua cena em que enfrentou a morte para salvar seu amigo/amor foi emocionante. Lima com seu homem cheio de brio e dignidade que não se rende às tiranias dos poderosos também o faz com maestria. Timberg roubou a cena e continua roubando com sua presença fantasmagórica, uma espécie de mentora de Clara, mesmo depois de morta. Ana Lúcia está cômica com seus gracejos sobre a macheza do filho e sua birra com a nora. Agora, Dona Laura Cardoso como a cafetina Caetana é um presente para nós, seu retorno ontem foi hilário, “quem nasceu para quenga, morre quenga”, completa o quinteto de ouro. Excelente escolha de elenco, reunir os cinco numa mesma trama.

Sobre os retornos da segunda fase, já temos na arena a volta triunfal de Raquel como juíza, nada mais simbólico para o projeto da novela. Ela que foi humilhada por sua cor e condição social, retorna como uma espécie de esperança para que a justiça social (e individual) seja mesmo feita sem as interferências do poder econômico. Agora aguardemos a chegada de Clara em Palmas, certamente não será de balão como Edmond Dantes, mas causará muitas surpresas agradáveis para uns e demolidoras para outros...



domingo, 22 de outubro de 2017

A Força do querer : Entre afetos, perdão e verossimilhança



Encerrou-se essa semana a novela A Força do querer de Glória Perez. Novela polêmica, carregada de discussões que dividiu o país e obteve excelentes níveis de audiência, termômetro inquestionável dos seus muitos acertos. Dentre esses acertos destaco o cuidado da autora em lançar sua câmara sobre todos os núcleos dando vez e voz a praticamente todas as personagens, jogando luz não só sobre os protagonistas (aqueles que primeiro lutam), mas deixando brilhar também os muitos coadjuvantes que desfilaram pela trama. Foi uma novela multiplot, com diversas temáticas sendo trabalhadas simultaneamente, alternativa exigente que nos faz acompanhar a narrativa atentos aos muitos lances de dados que estão sendo jogados todo o tempo.

Silvana, brilhante Lilian Cabral, nossa Meryl Streep, nos colocou diante do vício do jogo, tão destrutivo quanto qualquer outra dependência, ela pôs todos ao seu redor em risco, atolando-se a cada dia mais em mentiras e rebaixamento moral e pessoal, só assumindo sua doença nos lances finais e perigosos do jogo (o resgate de Simone foi uma reprodução de um episódio real).Tema ainda inédito e muito bem trabalhado, sobretudo, na figura de uma personagem feminina, de alta classe social. Ao lado dela, acho que tivemos um dos melhores núcleos da trama. Seu marido Eurico, o típico homem conservador, chefe de família que acha que tem o controle de tudo, deu a Humberto Martins o melhor papel de sua carreira. Sua relação com Nonato foi um dos pontos altos da novela, sua descoberta do grande segredo foi hilária, daí guardado para o finalzinho para ter aquele sabor de sua surpresa. A fala de Biga  bem o definiu: “Seu Eurico dá um jeito de encaixar os seus afetos no seu modo de ver a vida...” Então Nonato pode ser artista, mas fazendo os machões Jece Valadão ou Capitão Nascimento, um Nonato que só ele via, mas ao final, ele já sugeriu Hamlet, personagem ambíguo...Ser ou não ser...

Ritinha, nossa sereia, descendente direta de Gabriela Cravo e Canela, não se rendeu às convenções, movida exclusivamente por seus desejos, só fez o que quis e pisou fundo no coração de Zeca e Rui, mas mesmo assim emanou uma empatia com sua brejeirice (Égua!) que fez com que aceitássemos seu exotismo, com direito a foto de família no sofá dos Garcia com os dois pais de seu filho e a união fraterna de Rui e Zeca ao desvendar o mistério mítico das águas.

Um dos temas mais palpitantes da trama foi sem dúvida a transição de Ivana em Ivan, vivida pela Carol Duarte que deu um show de atuação num papel tão difícil, com todas as dores e estranhezas que  trazer esse assunto para a sala da família brasileira causa. A autora foi extremamente didática e sensível com toda a rede de questões que envolvem tal assunto e deu a Ivan um final glorioso e surpreendente ao lado de Claudio que a aceitou ao reconhecer que naquele novo corpo ainda habitava a alma pela qual ele havia se apaixonado, e  a cena tinha que ser na praia, na natureza, onde ao contrário das convenções da cultura, tudo pode acontecer em matéria de afetos.

Muitas tramas paralelas tiveram a chance de aparecer na telinha, a psicopatia de Irene com seu final de filme de terror descendo aos infernos, as relações entre patrões e empregados que fogem aos modelos meramente legais, o estilo de vida da comunidade com seus muitos tipos psicológicos, a chegada de Elvirinha e Tio Garcia que nos rendeu ótimas cenas já do meio para o fim da novela, com justas homenagens a Betty Faria que reviveu sua Tieta (Dançando Funk ou vestida de Mulher Maravilha e sua Lucinha de Pecado Capital, dinheiro na mão é vendaval).

Cheguemos ao núcleo central do tema do tráfico de drogas carregado nas tintas da verossimilhança, com direito a todas as críticas possíveis ao nosso sistema judicial e carcerário (a expressão enxugando gelo foi várias vezes repetida). A força dos traficantes em seus domínios, as imagens de guerra e guerrilha no último capítulo, a permanência do crime e sua força a despeito de muitas ações de combate, o fascínio que esse submundo exerce para muitos. A autora escancarou as veias abertas de um dos nossos principais problemas sociais e ao contrário das críticas sofridas por setores da sociedade, a novela não inventou nada dessa realidade, ela espelhou uma pequena parcela do que de fato ocorre naqueles becos e vielas labirínticos. E como boa ficção que é, criou um Sabiá misto de bandido e herói popular com sua boa dose de humor “poblemático”, pedindo a senha do wifi na cadeia e lendo o Salmo 91.

Bibi Perigosa, personagem real, teve sua redenção, expiou suas penas e se regenerou como boa cria folhetinesca, teve direito ao seu final feliz ao lado do Cavalheiro Andante Caio, representação positiva (ao lado de Jeíza) da polícia e da justiça. Como protagonista ela cumpriu seu percurso heroico de ascensão no crime, queda moral e retorno à luz através da expurgação e consciência do erro. O seu reencontro com Caio, para ele ela sempre foi Fabiana e nunca Bibi, foi marcado pelos versos do Poema em Linha Reta, do heterônimo Álvaro de Campos de Fernando Pessoa, apontando que todos somos carregados de falhas, mas que só poucos têm coragem de assumir ( “Nunca conheci na vida quem tivesse levado porrada!”), a vitória do perdão sobre o ódio esteve presente nesse final sob vários modos. Destaquemos na trama de Bibi a atuação de Elisângela, como uma mãe arquetípica que tudo fez para salvar sua filha e para o menino Dedé, vítima indefesa dos erros dos pais, fez um papel forte para uma criança, que tinha a fuga para a fantasia ao lado da amizade de Goku.


A Força do querer ficará marcada no imaginário brasileiro, ganhar um Globo Repórter é para poucas novelas, mostrando sua penetração na sociedade e o desconcerto que causa as obras polêmicas. Ao lado da força do real retratado na trama venceu de fato, a força do querer. Com suas novidades narrativas ousadas inovando até o último dia com a narração de Tio Garcia, um sábio anti-herói, nos pondo a par dos desdobramentos de cada personagem...Terminamos com os versos de Menotti Del Picchia que ele disse para Rui ao mandar que ele perdoasse Ritinha e que resume bem a vitória dos afetos no final da trama, apesar de toda a realidade que sangra ao nosso redor: Esta vida é um punhal com dois gumes fatais: não amar é sofrer; amar é sofrer mais"!

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Quem tem medo de Glória Perez?

Em 1995, portanto no século passado, Glória Perez em Explode Coração já sacudiu/confundiu o Brasil com Sarita Vitti, personagem Travesti ou Drag Queen (talvez nessa época os nomes não eram  tão importantes ou definidos ainda nesses termos), interpretada pelo ator Floriano Peixoto, em primeiro papel na televisão. Numa época na qual ainda não havia as redes sociais e seus megafones, o assunto  foi bastante polêmico e de vanguarda. Já naquele tempo, Glória desenhava essa personagem de difícil contorno para os padrões da época com as tintas da humanidade, focando no drama humano de ser diferente do que se espera e como lidar com isso numa sociedade hostil e que rejeita, assim como Narciso, o que não é espelho. E assim ela continua com seus pinceis e teares encantados...

Passados 22 anos, em outro século, o tema volta em sua trama A força do querer com vigor e complexidade e ainda gera polêmica. Temos em cena Nonato (Silvero Pereira), de dia vestido no seu paletó e gravata que parecem sempre apertados e de noite se traveste de Elis Miranda, cantora performática que irradia alegria assim caracterizada. Se  define como um travesti e  se aceita com seu corpo assim como ele é. Em justaposição (porque não se trata de outro lado), temos Ivana até ontem, agora Ivan (Carol Duarte), que depois de um longo processo de crise existencial se descobre Transexual. O processo de descoberta e transição de Ivana foi lento e doloroso (continuará sendo), acredito na intenção pedagógica da autora em exibir todo o entorno da complexa questão, pois houve um investimento em muitas cenas didáticas sobre o assunto.

Ao por Elis e Ivan em diálogo, a primeira passou a ser uma espécie de fada madrinha e anjo da guarda vigilante de toda família Garcia (seu desempenho vem crescendo e ocupando vários espaços, quando Eurico o descobrir, o coitado que acha que sabe de tudo, não poderá mais viver sem sua amizade!), foi no pequeno apartamento de Elis que Ivana conseguiu decidir sua dolorosa metamorfose e enfim tomar a decisão de comunicar a família sua condição. O colo e as almofadas acolhedoras de Elis funcionaram como uma espécie de útero para gestar o Ivan que nasceria em breve. Mas para nascer Ivan, há de morrer Ivana, daí a cena dramática de ontem, vivida mais intensamente por Joyce, mãe que desejou uma filha à sua imagem e semelhança com todos os códigos femininos que ela acredita ser fundamental para ser uma mulher feliz.

A cena, ritual sacrifical de morte de Ivana representado pelo corte dos cabelos, marca feminina por excelência (ecos de Camila em Laços de Família) foi realizada com uma forte carga emocional. Joyce em posição de Pietá, chorava a morte de Ivana, e Ivan nascia chorando como um bebê que vê o  mundo pela primeira vez. A mater dolorosa, enlutada, agarrada aos fios do cabelo de sua menina, fez o Brasil se emocionar.

O espelho, antes motivo de tortura para Ivana, começou a dar sinais positivos para Ivan, que começa a se encontrar. Não posso avaliar como deve ser dolorida essa travessia, essa transformação, mas acho que a trama acertou em mostrar primeiro que é no seio (bendita metáfora!) da família que devemos ser compreendidos e aceitos primordialmente, para depois partir para o desafio inóspito das ruas (outras tantas cenas já foram mostradas com Ivan e com Elis sobre a barbárie das ruas contra os “diferentes”). A autora é famosa por introduzir questões sociais e reais em suas novelas, acho que está acertando em cheio em nos esclarecer sobre uma questão tão pulsante e necessária. O conhecimento liberta, gera a empatia, promove a compaixão, que significa etimologicamente sentir com o outro, e podemos sonhar por alguns minutos com um mundo mais acolhedor como são os braços de Elis Miranda... But I see your true colors, Continue Glória!

P.S. A autora não criou o tráfico no Rio de Janeiro.