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sábado, 26 de maio de 2018

Sob e sobre o Segundo Sol: A morte e a morte de Beto Falcão



A nova novela das 21:00h, Segundo Sol, de João Emanuel Carneiro, começou antes de começar. A polêmica sobre a ausência de atores negros numa trama que se passa num estado onde a maioria da população é negra surgiu com força nos dias que antecederam sua estreia, assim que as primeiras chamadas foram ao ar. Como professora de literatura e estudiosa das relações entre Literatura e Telenovela, declinarei dessa discussão, pois concordo em parte com a questão que certamente traria mais verossimilhança para a trama, mas por outro lado, como defensora da arte como uma manifestação humana que não tem como função exclusiva retratar somente o real, defendo a novela como veículo de entretenimento e reflexão e sem esquecer que, sobretudo, é um produto mercadológico, por sinal o mais rentável da Televisão. A Bahia é só a moldura. Lanço, portanto, meu olhar para o terreno que costumo pisar, a análise textual.


 O título da novela já sugere a ideia de recomeço, por isso a passagem de tempo de 18  anos para que nós telespectadores, conhecedores do embrião da trama mostrada nos primeiros dias na novela, possamos compreender seus desdobramentos no tempo atual. E esses são muitos e variados. O eixo central gira em torno de Beto Falcão, cantor de Axé já em decadência que é convencido por sua entourage vigarista, irmão/empresário/canalha e namorada/ambiciosa/mau-caráter que ele vale mais morto que vivo, pois sua falsa morte faz com que  volte a valer no mercado artístico e publicitário, até romaria houve em sua porta mostrando a hipocrisia dos fãs que já nem lembravam do cantor. Daí todos lucram com o falso mito que se forma. São claros os ecos de Roque Santeiro, obra-prima de Dias Gomes. Assim como Roque, Beto vira mito e passa a viver de sua mitificação, como na fictícia Asa Branca que passa a ter no falso heroísmo de Roque sua principal fonte de renda. Até uma sombra de Porcina temos, a personagem de Débora Secco assume a postura de viúva oficial e vive para alimentar seus direitos autorais e manter vivo o legado do marido.


Além desse intertexto com o grande dramaturgo, autor de sucessos como Saramandaia e Mandala, temos também o diálogo claro com Jorge Amado, como não poderia ser diferente numa novela que tem como cenário Salvador. Inclusive houve uma cena em que Miguel/Beto lê Tieta do Agreste (por sua vez inspirada em A visita da velha Senhora, as relações entre os textos são inesgotáveis), aquela que volta para se vingar, assim como Luzia Batista (Cansada de Guerra, quanto sofrimento em tão poucos dias). Os influxos amadianos são muitos, mas gostaria de focar o olho na Casa Grande do núcleo rico da novela. Inclusive, a expressão Casa Grande e Senzala (Gilberto Freyre ainda tem muito a dizer sobre nós) já foi citada diretamente por Roberval, Fabrício Boliveira, que protagonizou uma cena magistral ao descobrir sua paternidade.


Filho do patrão com a empregada, aquela famosa “como se fosse da família”, transbordou sua revolta justa com um brilhante texto e sua saída da Casa sob uma chuva copiosa  deu mais dramaticidade à cena (nos remete também ao filme Que horas ela volta?). O discurso de Roberval nos levou a uma passsagem de Jubiabá:



 “A vida no Morro do Capa Negro era difícil. Viviam das tarefas no cais, carregando cargas pesadas ou do trabalho em casas ricas. As crianças já sabiam seu destino; o trabalho no cais ou em fábricas enormes. Enquanto isso, os meninos ricos iam ser médicos, advogados, engenheiros, homens ricos. Também, podiam ser escravos desses ricos. Antonio Balduíno queria outro destino, desejava ser livre como Jubiabá e Zé Camarão. Tudo o que fez depois, veio das histórias de valentia ouvidas à porta da casa da tia Luísa. E elas falavam daqueles que se revoltaram contra o trabalho escravo, dedicado ao branco. Mas, Balduíno era também moleque travesso, líder das coisas malfeitas no morro. 


Roberval, assim como Antonio Balduíno, deseja outra vida. Por agora, trilha caminhos tortuosos, aguardemos o que virá, é uma personagem que promete. Até então acho essa Casa o melhor núcleo da novela, com seus segredos, relações familiares complexas e seu cruzamento com o eixo central através da adoção problemática de Manuela, que acaba por reproduzir,com seu irmão Icaro, o mesmo drama de Roberval e o seu patrãozinho Edgar.


Passados os 18 anos, todos vivem sob esse segundo sol posto no passado que selou a separação entre Luzia e seus três filhos por artimanhas das vilãs Carola e Laureta, que volta agora para tentar reparar as injustiças sofridas e as pontas da sua vida interrompida. Seus três filhos são todos rebeldes e sofrem dramas diversos, drogas, rejeição, desajustes emocionais e farsas identitárias dentre outros conflitos.


Ainda destaquemos, nesse raiar do Segundo sol, a amoralidade de Laureta, uma Carminha mais perversa porque não gosta de ninguém, só pensa em lucrar e para isso não mede esforços, até leilão virtual de mulheres faz em sua mansão-club Sodoma e Gomorra (já deu saudade de Dona Caetana  e sua boate raiz), a bela amizade entre o Gringo e Luzia, o sotaque bem acertado de alguns como Ícaro (Chay Suede) e Ionan  (Armando Babaioff,). Tudo leva a crer que investiram bastante na pesquisa das expressões do nosso baianês, confesso que está massa ouvir tanto “mainha”, “se saia”, “oxe oxe oxe” e  “osadia”. E o colorido e a trilha sonora da abertura também estão de lenhar, a mistura de Cassia Eller com Baiana System ficou de torar.


JEC é conhecido como autor de tramas fortes, nos deu o maior sucesso dos últimos anos com Avenida Brasil, além de bagunçar nossa cabeça com A Favorita. O situo na linhagem de Gilberto Braga, com seus conflitos de forte carga dramática, jogo social em torno do poder do dinheiro, relações familiares densas e seus famosos ganchos que nos deixam ligados até o dia seguinte. Acho que O segundo sol até começou meio morno, mas já começou a esquentar....Continuemos na cocó, se ligue aí..

P.S. Eu sou baiana de Feira de Santana e creiam:  Existem muitas Bahias...




quinta-feira, 10 de maio de 2018

O outro lado do paraíso, algumas considerações antes do fim



Essa semana estamos acompanhando o final de O outro lado do Paraíso de Walcyr Carrasco. Não creio que seja uma novela que entrará para a lista das favoritas do país marcando seu imaginário, não a considero uma grande novela como um todo, mas digamos que seja uma boa novela, que cumpre seu duplo papel de entretenimento e discussão de temas polêmicos, com grandes pequenos momentos. Walcyr já nos deu belos banquetes dramatúrgicos  como em O Cravo e A rosa ou Amor à vida, já faz parte do panteão dos melhores autores e segue firme a nos contar boas histórias.

Dentre esses grandes pequenos momentos destaquemos como ponta de lança a atuação marcante dos atores da terceira e já quarta idade. Fernanda Montenegro que estamos acostumados a ver, em sua maioria, em papeis de mulheres sofisticadas e urbanas, encarnou sua Dona Mercedes com uma maestria que nos faz lembrar uma sacerdotisa ou sibila mítica. Sua sábia rezadeira nos deu lances emocionantes durante a trama, que vão do enfrentamento e vitória sobre a morte duas vezes (uma no começo da trama outro agora no final quando botou Zé Vitor para correr e fez seu “mal” escorrer pelas veias) a momentos de grande graça quando, como uma mocinha romântica, amarelou diante do altar onde seu noivo Josafá a esperava. E que parceria desses dois! Lembrando O amor nos tempos do cólera (ela mesma atuou na adaptação do romance de Gabo para o cinema) ou O Casarão, esses especiais amantes, mais de alma que de corpo, esperaram décadas para enfim viverem seu amor/cumplicidade/amizade especial. Ele, aquele homem cheio de dignidade e valores morais, se rende à sua amada que não consegue controlar de jeito nenhum, respeitando, mesmo cheio de medos, sua missão guiada por  “Eles”.


 E Dona Caetana, a decana do time, nossa Laura Cardoso, brilhando como a experiente cafetina entre os paetês, neons e segredos da Love Chic, acho que será um dos seus grandes momentos na TV pela desenvoltura e humor que deu o tom à grande Dama da Noite. Uma espécie de Fada Madrinha controversa para as primas do Bordel que vivem seus sonhos de Gata Borralheira, mostrando que nem sempre  "fazer a vida" é uma escolha. Mas Ana Lúcia Torre, também roubou os holofotes como Dona Adneia, no seu microcosmo familiar, dentro do seu AP de onde saiu poucas vezes, refletiu tão bem as agruras de uma mãe entre o modelo ideal de família que ela acreditava ser o melhor para seu filho até aceitar a família  que o faria feliz de fato. Dentro do seu AP tivemos as cenas mais engraçadas da novela, capitaneadas por ela e na sua crença na cura gay. Sua cena essa semana de aceitação do amor entre Samuca e Cido foi muito emocionante, após muito relutar (a apneia não colou) ela os abraça formando a família possível, amor de mãe em estado bruto. E seu monólogo posterior foi golpe de mestre do autor, ela sozinha rearrumando o novo lar, ajeitando as almofadas, recolhendo os farelos do bolo e se reinventando para aceitar que a felicidade do seu Tigrão  é com Cido (Zulu também surpreendeu) e chegando a constatação óbvia que não há cura porque não há doença. Sua voz foi uma espécie de voz da consciência social para a aceitação e conciliação.


Voltando ao núcleo central da novela, a vingança de Clara, ela enfim chega ao final da novela concluindo seu plano, só falta Sofia. Já um pouco vingada pela vida e tendo que ser cuidada por Stela, a filha que sempre rejeitou. Na cadeira de rodas ela ficou da mesma altura da “aberração” e teve que olhá-la de frente. O papel de Stela também é digno de nota, suas aulas de alfabetização para adultos iluminaram sua atuação. Durante sua recuperação tem que conviver com o que sempre quis esconder, houve alguma comoção na cena em que sua filha massageava seu rosto, mas ela é má por excelência e não há redenção para a vilã serial killer. Diferentemente de Gael que vem conseguindo a regeneração porque era dual. Depois de marido agressor punido pela Lei Maria da Penha, volta a ocupar os pensamentos da mocinha nada romântica. Como bom folhetim, ficou para o final a famosa pergunta Com quem ela vai ficar? Acreditamos que com Patrick, aquele amor cavalheiresco que mudou toda a sua vida para servir Sua Senhora, mesmo sem muitas garantias do final feliz.


Vale ainda lembrar que um dos temas mais fortes da novela foi a questão materna, como já disse em texto anterior. Foram muitos os modelos de relações de mães e filhos explorados na novela. Do abuso sexual pelo padrasto, da Grande Mãe do Quilombo, da mãe Naja que quer manipular a vida dos filhos e se redime pelo amor ao neto, da mãe que rejeita, da mãe-coragem que doa um rim, da madrasta que renega a enteada, da mãe adotiva Lívia que na hora do sequestro, dor extrema,  une-se a Clara e chamam Tomaz de nosso filho, aceitando que ele tem duas mães.


A novela em alguns momentos se perdeu um pouco se arrastando no meio do caminho, mas do meio para o fim recuperou o fôlego e nos fez ficar com vontade de assistir no dia seguinte. Aliás, ela passou a adotar o modelo do resumo do capítulo anterior e chama para o novo dia no inicio de cada episódio, ops, capítulo, imprimindo o ritmo de série à trama, pois essa filha do folhetim, que já foi radionovela, fotonovela, vai se transformando com os anos e se adaptando aos novos tempos onde enfrenta a concorrência de tantas outras telas, mas continua a nos convidar a sentar e assistir, torcendo pela justiça no final, onde o Bem sobrepuja o Mal, pois tudo que você faz um dia volta pra você, ao menos na ficção a Lei do Retorno é certa, com raras exceções...



quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

O Outro Lado do Paraíso: Entre a Hybris e a Mershandising Social

O tema da vingança atravessa a história da Literatura. Na mitologia grega temos como um dos grandes exemplos a personagem da tragédia de Euripedes, Medeia, que para vingar-se da traição do marido, Jasão, mata os filhos que tivera com ele. Em Hamlet, o herói vacilante vê-se obrigado a vingar o assassinato do seu pai que fora morto por seu tio para usurpar o trono, ainda casando-se com sua mãe. Em O Conde de Monte Cristo, o protagonista volta para cobrar vingança contra todos que o traíram. Esse último serve de inspiração direta para O Outro Lado do Paraíso. As personagens que encarnam esses planos de vingança geralmente são marcados pelo que os gregos chamavam de Hybris, a desmesura ou desmedida, ou seja, para executarem seu plano de vingança nada os detém, são capazes de tudo, até memso desafiarem os deuses e os códigos morais e sociais.
Clara se aproxima dessa característica, movida pela sede de vingança, ou justiça, dependendo do ponto de vista, ela voltou disposta a reparar o mal que lhe fizeram, para só depois cuidar de ser feliz. Começou seu plano vingando-se do médico que lhe diagnosticou como louca, facilitando sua internação. Para esse ela trouxe à tona sua orientação sexual escondida sob as sombras das cortinas sociais. Refeitos do escândalo que revelou que o Tigrão era Tigrete, o drama tornou-se núcleo cômico da novela. Agora era a vez do delegado, pois seu plano é urdido em ordem crescente relacionado à proporção do mal que lhe causaram. O delegado Vinicius (Flávio Tolezani) engavetou suas várias queixas de agressão contra Gael, sonegando-lhe a justiça a que tinha direito e também reforçou sua falsa insanidade. A vingança contra essa personagem teve seu ponto alto no capítulo de ontem: A falha moral do delegado eclodiu, ele é um pedófilo com requintes de psicopatia.
Para chegar a Vinicius foi preciso enxergar com lentes microscópicas o drama de Laura, vítima de abuso sexual infantil cometido pelo seu padrasto. A jovem e talentosa atriz Bella Piero, vem desenvolvendo muito bem sua personagem marcada pelas cicatrizes no corpo e na alma (Sempre com roupas escuras que lhe cobriam todo corpo, sempre cabisbaixa, olhar assustado, com dificuldade de comunicação, ela encarnou bem o tom de seu papel). Não foi fácil chegar a ele, toda uma teia de indícios foi construída até a cena catártica do julgamento de ontem. A polêmica sessão de hipnose (deixo essa discussão de mérito profissional para quem entende, eu fico com a ficção) realizada por Adriana fez emergir de sua memória os abusos sexuais que sofreu.
Essa cena foi construída com muita sutileza, repleta de alegorias e símbolos (confesso que fiquei com medo de como seria mostrado). A casa de bonecas, num mundo em miniatura com cores solares (ecos de Alice no país das maravilhas), foi invadida pelas botas escuras e pesadas do criminoso com suas muitas mãos gigantes como uma criatura monstruosa que toda criança associaria ao perigo. A cena ficou num limite elegante entre o dito e o não-dito.
Voltemos ao capítulo de ontem. O julgamento do delegado me parece que irá figurar entre as cenas antológicas da telenovela brasileira. Todas as provas levantadas pareciam ser em vão para punir o criminoso, destaque para a atuação do advogado de defesa, com retórica irretocável conseguia desfazer e refutar todas as acusações. Até que surge a testemunha-chave, como nos grandes filmes de tribunal nos quais tudo acontece nos 45 minutos do segundo tempo quando o jogo parece perdido, a diarista que trabalhou na casa de Laura na época em que sofreu as sucessivas violações de sua infância.
Tiana, Ilva Niño (nossa eterna Mina, que acaba de se recuperar de um câncer, borrando as fronteiras entre realidade e ficção mais uma vez), numa entrada triunfal, revela todos os segredos que assistiu silenciosamente naquela casa com tanquinho de tartarugas. Num monólogo comovente pede perdão a Laura, que lhe perdoa em um balbucio eloquente. Diante do depoimento cabal, só coube ao delegado confessar tudo e revelar seus crimes hediondos, num discurso cínico típico dos psicopatas (humilhou a esposa-mãe ao extremo, outra grande atuação, sua face foi se transmutando ao longo do júri entre a segurança dúbia e o desespero comovente ao cair em si) e ainda apontando seu fel para o juiz e Sofia como as próximas vítimas do plano de Clara.
 Daí em diante acho que foi o clímax de ontem, a reação da plateia, mostrada em cada face, em cada olhar, em cada gesto, tudo isso em silêncio, semelhante aos coros do teatro grego, eles iam com seus gritos silenciosos mostrando a indignação diante daquela máscara que caia e revelava a verdadeira face de um monstro. Quem assistiu ao julgamento, boa parte das personagens da novela, representou metonimicamente um júri popular que não perdoa o abusador infantil, era a personificação da opinião pública.
A chegada de Vinicius à cadeia, sua descida aos infernos, foi também significativa. Ao se despir de suas roupas lentamente para vestir o uniforme de presidiário, a câmera deu um close em suas botas, símbolo de seu poder sobre as vítimas e foi logo avisado pelo diretor do presídio o que costuma acontecer com criminosos como ele na cadeia, de acordo com o código dos presidiários, certamente um spoiler do que ocorrerá.
Ao final do capítulo novamente surgiu a campanha contra o abuso infantil, dando álibis de verossimilhança para a trama, bem ao modelo Glória Perez, pioneira nessa estratégia de mershanndising social, trazendo campanhas reais para o centro da narrativa. É a ficção trabalhando a serviço da sociedade, esclarecendo, discutindo e informando sobre um tema tão complexo e necessário. Creio que cenas como as de ontem fazem muitas pessoas abrirem os olhos para essa questão grotesca e reafirmam os dados  estatísticos que sempre apontam que a maioria dos abusos sexuais são cometidos por alguém muito próximo e de “confiança”, gente acima de qualquer suspeita.
 Voltemos à Clara e sua Hybris, agora faltam 2, o Juiz e sua grande algoz, Sofia, mas há indícios de que há um outro vilão se anunciando, Renato (e em paralelo Gael vai se redimindo) e ela terá que reelaborar seus planos. O mal da vingança é que ela te cega, assim como a cobiça pelas esmeraldas também, e talvez o preço a pagar por ela, seja uma Vitória de Pirro, na qual os ganhos da guerra não valem tantas perdas no caminho. Mas no caso de Vinicius a justiça se cumpriu para nossa felicidade e emoção profunda durante o capítulo de ontem....Continuemos na plateia desse espetáculo...Fechem as cortinas para o monstro....Esse já foi expulso do Paraíso...


terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O Outro e A outra forma da água


                                                                               Para Chico Lima e sua cintilação do olhar

Assisti ontem nesse feriadão de Carnaval (esse é o meu bloco) ao novo filme de Del Toro, A forma da água, com mais de uma dezena de indicações para o Oscar. Curiosa a princípio pelo título enigmático, guiada pelo prazer que tive com O labirinto do Fauno, ansiosa para saber o motivo de tantas indicações e motivada pelas recomendações especiais de 3 amigos cinéfilos (João Evangelista, Gleidson Ramos e Juliana Salles), devo dizer que todos estavam certos, é mesmo um grande filme, daqueles que causam o tal estranhamento sistematizado pelos formalistas russos.
O argumento principal da trama é insólito (aquilo que não soe acontecer), uma faxineira muda apaixona-se por uma Criatura aquática estranha(meio anfíbio, meio peixe, meio homem) capturada nas águas da América do Sul pelos americanos em plena Guerra Fria, plano de fundo político do filme (em O labirinto o cenário de fundo é a ditadura de Franco). Ela trabalha em uma espécie de laboratório secreto bem aos moldes do clima de espionagem e sabotagem entre essas duas potências bélicas nos anos 60. Sua rotina maçante e quase robótica é despertada pela chegada da Criatura aquática.
Em um dos diálogos ficamos sabendo que para os nativos da região, a criatura era considerada um Deus, fato que se confirmará no final. Ancorado em excelente fotografia, cenários, trilha sonora, figurinos e jogo de luz, o filme nos remete  todo tempo à uma atmosfera onírica aos moldes dos contos de fadas (há ecos de Amelie Poulain). Vale ressaltar, que há muitos outros contos de fadas e lendas construídos através de laços afetivos entre criaturas de mundos diferentes ou espécies diferentes tais como A Pequena Sereia, A Bela e  a Fera ou King Kong dentre vários exemplos, inclusive nas diversas mitologias.
            O caráter fabular da narrativa é confirmado no início e no final pela voz de um narrador que nos introduz na trama, que mais tarde ficamos sabendo que se trata de Giles, o melhor amigo de Elisa, é esse o nome da protagonista. É interessante notar que para todos os seus superiores ela é a faxineira muda, mas seus dois amigos, Giles e Zelda (brilhantes coadjuvantes, Octavia Spencer arrebata como sempre, ele o gay artista velho e solitário, ela a faxineira negra e mal casada) seu nome é sempre pronunciado com muita força, pois um dos motes principais do filme é a comunicação com o outro, esse estranho.
Daí chegamos na tal alteridade (alter= outro), creio que a pedra de toque do filme. A Criatura, esse outro estranho, desperta sentimentos e interesses diversos a todos ao seu redor. Os interesses políticos das duas nações, o interesse científico do cientista russo, que tocado pelo seu lado de pesquisador acaba por arrepender-se de sua sabotagem e se aliará aos “sem voz” do filme para realizar a retirada da Criatura do laboratório e tentar salvar sua existência,  o interesse amoroso de Elisa e generoso de Giles que depois de mais uma decepção profissional e afetiva resolve ajudar no plano mirabolante da fuga, também entra aí Zelda que por sua amizade por Elisa completa a tropa da salvação. Todos esses motivados em dar um sentido às suas vidas vazias e a seus papéis subalternos, posição social ratificada sempre pelo Chefe do lugar, antagonista por excelência, tão prepotente que acha que Deus se parece com ele, jamais com a Criatura ou com Zelda.
A riqueza metafórica e alegórica do filme é composta de infinitas camadas que creio não conseguir alcançar em sua profundidade, daí tantos parêntesis nesse texto. Comecemos pela água, a grande imagem do filme, explícita no título. Se a água é amorfa e toma a forma do seu recipiente, ela terá um sentido único para cada um. E ela surge sob diversas formas, no ferver dos ovos, no banho, na chuva, no rio, e é claro na sobrevivência da Criatura. Símbolo de vida e erotismo, essa carga semântica literalmente extravasa e transborda na tela, como na gloriosa cena do encontro erótico-amoroso no banheiro ente Elisa e Ele (agora não mais a Criatura) que respinga por todo prédio, não gratuitamente construído sobre o cinema Orpheum.
O ovo, outra metáfora da vida, é alimento para Elisa e para Ele, que também lhe nutre com música e carinho. Os dedos apodrecidos do Chefe exalam o mal cheiro de sua essência (cena boa quando Giles amassa o seu Cadilac verde-azulado, modelo de sua arrogância). Os cabelos renascidos e a cura dos ferimentos de Guiles por Ele mostra o seu vigor voltando depois de tantas frustações e a sua TV sempre passando romances e musicais alimentam os sonhos de Elisa, que em uma das cenas protagoniza um filme, onde finalmente solta sua voz.
Semelhante aos heróis míticos, a origem de Elisa é desconhecida, uma criança encontrada à beira de um rio e criada em um orfanato. O Chefe sugere que a sua mudez seja fruto de suas cicatrizes no pescoço, alguém pode ter cortado suas cordas vocais, fato que fica em aberto no filme. Há uma cena em que esse déspota a assedia e a humilha, pois na sua fala destaca a sua mudez e cicatrizes como uma espécie de argumento que ninguém mais se interessaria por ela.
Como uma história sempre puxa outras e outras, A forma da água me lembrou o olhar dos cronistas viajantes sobre O Novo Mundo, esse novo inapreensível pelos moldes de olhos velhos. Francisco Ferreira de Lima pesquisador do tema e hábil navegador dessas águas no seu livro O Brasil de Gabriel Soares de Sousa & outras viagens (2009, 7 Letras/UEFS), versando sobre esse espanto sobre o novo que nos seduz e apavora, resume a tríade que rege o espírito dessa  literatura: “Susto, espanto e maravilha. Com essas três palavras atingimos o ser profundo da literatura de viagem: Antes que qualquer coisa possa ser dita ou escrita, o viajante experimenta desconcertante sensação intima, uma espécie de cintilação do real, como a bem denominou Francis Affergan(1987). Nenhum código, qualquer que seja, será capaz de domá-la porque elas a todos eles resiste. É só através  dessa cintilação que a alteridade pode ser vivida em sua inteireza”(p.106-107)
Se na Literatura de Viagem o Outro eram os mistérios do Movo mundo, em A forma da água o Outro era a Criatura, Ele, o sem nome, já em nossas relações O Outro também nos seduz e apavora e nessas diferenças conhecemos mais sobre nós mesmos, nem que para isso tenhamos que mergulhar nos mistérios das águas pronfundas....Como nos versos islâmicos citados no final do filme:
“Impossibilitado de perceber Sua forma, encontro você à minha volta. Sua presença me enche os olhos com Seu amor, acalma meu coração, porque Você está em todos os lugares.”



quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

É tempo de tempo de amar

                                        Para minha mãe Antônia, fiel companheira dessa história e de tantas outras.

A novela das 18:00h, Tempo de amar, traz em si todas as virtudes de um bom folhetim de época. Sob a autoria de Alcides Nogueira e Bia Corrêa do Lago (argumento de Rubem Fonseca), o primeiro  já mostrou seu talento em outras produções de época seja como colaborador ou como autor principal (Força de um desejo, Direito de amar, Um só Coração, JK). Só agora nas férias tive tempo de apreciá-la como ela merece, e aceitei o convite para sentar-me como se estivesse na Confeitaria Colombo e degustá-la.  Esse horário é ingrato para nós mulheres desdobráveis. Começo a elogiar a estética da trama, a fotografia e cenários, sejam do Portugal interiorano com suas quintas e casas de pedra, ou do Rio de Janeiro do final dos anos 20, estão belamente representados e funcionam como molduras para a narrativa. Vale destacar o enxerto de imagens de época que conferem mais beleza e veracidade à tela da ficção.

A pesquisa histórica também é digna de nota. Temos como pano de fundo todas as questões que pulsavam na nossa Belle epoque tropical. Um Brasil pós-escravidão, vivendo as primeiras décadas da República, se assentando naquilo que começaríamos a chamar de nossa modernidade convivendo com os resquícios coloniais, urbanização, industrialização, imigração, organização das relações trabalhistas (Vide Pepito e as geleias Supimpa), jogadas políticas, sobrados e cortiços, movimentos culturais, boemia. É interessante notar um rebuliço nas classes sociais e posições que começam a se mexer, como é o caso da megerinha de Débora Evelyn que faz de tudo para manter a pose de um status quo que já não possui ou acha que possuiu.  Observem as cenas do Grêmio onde os jovens da trama discutem feminismo, literatura, racismo, artes, inclusive com a presença de Pixinguinha e Gilka Machado. Há também muitas cenas de rua e ambientes sociais variados, bares, cafés, cinemas, confeitarias e o simbólico cabaré enfatizando bem o frêmito do período, como numa crônica de João do Rio ou Bilac.

Sobre o eixo central paira o tema dos temas de todos os folhetins: O drama amoroso de Maria Vitória e Inácio e suas agruras para conseguir viver esse sentimento de além e aquém-mar. Até uma fadista temos (Quem diria que Magda poderia!) para alimentar mais a coita de amor. Como soe acontecer há os vilões dispostos a separar o casal. Dessa vez duas vilãs com V maiúsculo. Desse lado do oceano, Lucinda, surpreendente Horta (virei fã depois de Elis), e toda sua carga de rancor e cicatrizes. Do lado de lá do Atlântico, Delfina, brilhante Sabatella, com seu desejo de reparação que lhe cega (ecos de juliana de O primo Basílio). O tema dos temas que atravessa os séculos está magistralmente representado na abertura com casais que atravessam a nossa cultura: Adão e Eva, Helena de Troia e Páris, Romeu e Juileta, Zumbi e Dandara e Lampião e Maria Bonita em quadros que vão se superpondo para retratar a ideia da força do amor dos protagonistas. Ao lado deles na trama, outros romances vão surgindo e também nos encantando, seja na burguesia ou no proletariado, ou melhor ainda quando se misturam como o médico e a doméstica. É mesmo uma novela de amor e como amor rima com humor, há cenas bem cômicas como a de Seu Geraldo e Dona Nicota na Festa dos Porcos...
A trama é bem construída e parece ter espaço para todas as personagens aparecerem um pouco e todas têm alguma complexidade. Desde o gigante Tony Ramos aos bem novatos como os jovens imigrantes. E por falar em personagens, fomos brindados com a aparição de Ester Delamare (Malu Mader), a baronesa de Sobral de Força de um desejo, uma das melhores novelas de época que já tivemos. Um show de intertextualidade, não só cruzando os enredos, mas também cruzando os tempos, pois uma das suas falas foi sobre o fato de que agora os títulos de nobreza não mais importavam.
Sempre é tempo para falar de amor, sempre é tempo para boas histórias sobre esse “Um não sei quê, que nasce não sei onde; Vem não sei como; e dói não sei porquê.” Continuemos...Afinal:

Balada do amor através das idades
 Eu te gosto, você me gosta 
desde tempos imemoriais. 
Eu era grego, você troiana, 
troiana mas não Helena. 
Saí do cavalo de pau 
para matar seu irmão. 
Matei, brigamos, morremos. 
Virei soldado romano, 
perseguidor de cristãos. 
Na porta da catacumba 
encontrei-te novamente. 
Mas quando vi você nua 
caída na areia do circo 
e o leão que vinha vindo, 
dei um pulo desesperado 
e o leão comeu nós dois.
Depois fui pirata mouro, 
flagelo da Tripolitânia. 
Toquei fogo na fragata 
onde você se escondia 
da fúria de meu bergantim. 
Mas quando ia te pegar 
e te fazer minha escrava, 
você fez o sinal-da-cruz 
e rasgou o pito a punhal.. 
Me suicidei também.
Depois (tempos mais amenos) 
fui cortesão de Versailles, 
espirituoso e devasso. 
Você cismou de ser freira.. 
Pulei o muro do convento 
mas complicações políticas 
nos levaram à guilhotina.
Hoje sou moço moderno, 
remo, pulo, danço, boxo, 
tenho dinheiro no banco. 
Você é uma loura notável 
boxa, dança, pula, rema. 
Seu pai é que não faz gosto. 
Mas depois de mil peripécias, 
eu, herói da Paramount, 
te abraço, beijo e casamos.
Carlos Drummond de Andrade 


sábado, 6 de janeiro de 2018

Entre irmãs: Outras histórias cruzadas

Para meu tio Auri Cotias, que assistiu comigo atentamente ao último capítulo

A minissérie Entre irmãs exibida essa semana pela Rede Globo de Televisão nos encantou através de um tema que é universal, a relação entre irmãos. Baseada no livro “A Costureira e o Cangaceiro”, de Frances de Pontes Peebles, virou filme pelas mãos de Breno da Silveira e roteiro de Patrícia Andrade e agora esse filme foi exibido no formato que vimos na TV (assim como Malasartes) durante essa primeira semana do ano.

Bom começo para a teledramaturgia. O tema universal da relação entre irmãos é um mote que atravessa a nossa cultura, mas de forma geral é contado através da sombra rivalidade. Desde  Caim e Abel, Esau e Jacó, José do Egito, Pedro e Paulo e Yaqub e Omar (protagonistas de Dois irmãos, de Miltom Hatoum que também foi transformada em série pelas brilhantes mãos de Maria Camargo) vemos irmãos brigando nas páginas e nas telas. Já nessa história, o que se sobressaiu é justamente o contrário, o amor fraterno incondicional entre as protagonistas, Luzia e Emília, defendidas muito bem por Nanda Costa e Marjorie Estiano (como essa atriz cresceu desde Malhação até aqui). 


Além da trama muito bem construída, ou melhor dizendo costurada, devemos destacar as atuações (Cyria Coentro é uma verdadeira estrela, a cena de seu delírio e morte na rede foi comovente), os figurinos, a fotografia, a abertura, a direção de arte minuciosa. Sobre o tema, ponto para ideia dos destinos cruzados e inseparáveis das irmãs narrado como uma questão aberta pela tia Sofia, a sábia que as criou. A que acreditava no amor, não foi amada como idealizou. A que foi levada quase à força encontrou o verdadeiro amor nos braços do mítico Carcará, mistura de Lampião com todos  os outros reis do cangaço (o episódio do sal  saiu de Lampião). Cidade e Sertão, Recife e Caatinga, Luxo e Fome, Macacos e Jagunços, Ciência e Fé atravessaram os pespontos desse tecido tão bem cozido. Vale ressaltar também, o papel narrativo dos jornais da época, uma espécie de voz paralela que ia nos contando dos acontecimentos com suas manchetes sensacionalistas e fotografias fortes.

A obra dialoga profundamente com nossos romances regionalistas (realistas/naturalistas) do século XIX e com o romance de 30, com destaque para O Quinze de Rachel de Queiroz. A cena em que Emília recebe o sobrinho Expedito dos braços de Luzia é muito semelhante a que Conceição toma Duquinha, até mesmo o espaço dos retirantes (muito semelhante aos campos de refugiados de hoje) no meio da nada e da fome e as mães com os peitos vazios pela seca que assola corpos e almas.

Outro ponto chave da narrativa foi a tal Frenologia ( de phrenos= mente e logos= estudo), ciência que acreditava que o formato da cabeça determinava o caráter da pessoas e a sua capacidade mental, daí tantas cabeças cortadas para estudo na época (Ver  Cesare Lombroso, pai da criminologia moderna,  tem tudo a ver com isso!). O sogro de Emilia, defensor fiel dessa crença, protagonizou algumas cenas com sua fita métrica que achava poder explicar tudo. Ledo engano, todos ao seu redor (inclusive seu filho para seu desespero, a homossexualidade considerada doença  a ser tratatada no sanatório) traíram sua teoria. Emília, que também usava a fita métrica como instrumento de trabalho, revelou em sua tocante carta de despedida (cena final da série), que em matéria de gente as medidas são bem outras, intangíveis, incomensuráveis e imponderáveis, numa bela analogia entre a costura e a ciência.


Excelente texto, rico em signos e simbologias (o baile de carnaval e suas máscaras que o digam), com forte pesquisa histórica e política, diálogos impecáveis a exemplo do rompimento de Felipe com Degas (“Minha vida andou para frente e nossa história ficou para trás”), enredo bem cingido que nos concedeu fortes emoções como a viuvez simultânea das irmãs. Como as Moiras ou Fiandeiras (mito greco/romano) de Malasartes ou sem elas, parecem que alguns destinos estão mesmo cruzados e entrelaçados por fios tênues, ninguém é irmão de sangue ou da vida por acaso...Continuemos, I'm fine...

sábado, 16 de dezembro de 2017

O extraordinário Extraordinário

                  Para Guel, Bá, Nanda e Bia



O filme Extraordinário, dirigido por Stephen Chbosky, é daqueles que nos fazem entrar em contato com uma gama de sentimentos e sair do cinema com aquela sensação reconfortante que viver vale a pena, ou as penas de viver valem, apesar de tudo.  Adaptação do livro homônimo escrito por R.J. Palacio, narra a história de Auggie Pullman, um menino que nasceu com uma anomalia na face e passou por dezenas de cirurgias, 27 exatamente. As pulseirinhas de cada internamento aparecem como se fossem um quadro de medalhas de feitos heroicos ou troféus de vitórias. Ele nunca foi à escola até entrar no Fundamental II (na nossa equivalência) sendo escolarizado por sua mãe, a brilhante Julia Roberts, numa atuação digna de Oscar. Sua mãe, seu pai e sua irmã, como é descrito no filme, são os planetas que giram em torno do sol que é Auggie.
Chega em fim o dia tão temido de Auggie ir à escola regular, o mote central da trama é sua adaptação a esse novo mundo inóspito para muitas crianças, imaginem para ele que tem sua diferença estampada na face. O que aparentemente seria mais uma história sobre bullying e superação, ganha contornos maravilhosos que cativam a plateia do início ao fim. Entre os pontos altos do filme está o modo narrativo que vai mostrando os pontos de vista de cada personagem envolvido na vida de Auggie, mostrando que cada um tem suas razões para agir como age, lição de alteridade: O pai, a mãe, a irmã, a amiga da irmã e os companheiros de escola. Detaca-se nessa estratégia o papel da irmã e a reflexão que é feita sobre o drama de quem tem irmãos especiais e tem que contentar-se com o papel de coadjuvante na vida da família, ela sofre por sua invisibilidade ante os olhos da mãe e tem amparo nas lembranças do afeto que sua avó (Sonia Braga rouba a cena em menos de 5 minutos de flashback) a devotava e na amiga Miranda, outra grande personagem, fiquem de olho nela.
Na escola, Auggie é recepcionado por alguns colegas que se tornam seu grupo e mais tarde descobrirá que foi tudo a pedido do diretor, outra personagem cativante. As sequências de rejeição e desrespeito são muitas e o menino vai sobrevivendo como pode, sempre apoiado pelo amor incondicional da família. É sintomático o fato dele ter no Halloween sua festa preferida, pois mascarado ele não é desprezado por ninguém e se sente parte do grupo.
 Sua inteligência e humor vai aos poucos conquistando algumas amizades verdadeiras e vai ganhando seu espaço na escola. São deliciosas as cenas da Feira de Ciências, ele é um geniozinho dessa área, e da briga entre os meninos. Nessa briga é selado, de fato, um pacto entre amigos e ele agora tem sua gangue! Sua emoção após a briga, abraçado aos meninos diante do lago, é daquelas cenas de derreter os corações mais duros.
Outro ponto digno de nota é o papel do professor com suas aulas cheias de ética e valores positivos, a partir de lemas edificantes que atuam na formação do caráter das crianças. Dentre esses lemas, há um em especial, que diz aproximadamente assim: Entre ter razão e ser gentil, seja gentil, você nunca sabe as batalhas que o outro está travando. Vale ressaltar também o papel das famílias na formação de seus filhos, temos modelos diversos de famílias na trama, das modelares às repulsivas e como isso afeta seus filhos.Ainda há um brinde especial no filme, a relação intertextual com o universo de Star Wars e Minecraft, cerejas de um bolo que em si já é um deleite.
O filme nos aproxima daqueles romances de formação que o protagonista tem que passar por expiações e aprendizagens múltiplas a fim de alcançar a felicidade. E Auggie a alcança, com direito a medalha e discurso, como aluno destaque do colégio para a alegria da plateia do auditório no filme e para nós na plateia do lado de fora da tela.
Vão assistir Auggie, Augusto, sagrado, levem suas crianças (a censura é dez, mas de uns 6 em diante estão aptos) e reflitam com elas sobre o que vimos ali. Extraordinário, aquilo que foge ao ordinário, ao comum, ao trivial e vai além...





domingo, 10 de dezembro de 2017

O outro lado do paraíso: Walcyr Carrasco e o profícuo diálogo com os clássicos

O outro lado do paraíso entrou no ar com a difícil missão de substituir o sucesso de A força do querer, tarefa sempre árdua em qualquer setor, substituir algo ou alguém que alçou altos níveis de aprovação. Chegou de mansinho sem muita novidade, com uma primeira fase meio morna para quem estava com a adrenalina alta ministrada pelas doses diárias de Glória Perez. A primeira fase funcionou como uma etapa bem didática com a função de preparar o terreno para a sua segunda fase que agora caminha muito bem. A princípio entramos em contato com os perfis psicológicos de cada personagem e com as motivações de vingança/justiça que animam a segunda fase, pois toda a trama é baseada na lei do retorno, haja vista sua música de abertura que não deixa dúvidas ( “Tudo que você faz, um dia volta pra você”).

Na fase de transição entre a primeira e a segunda fase, uma década, destaquemos os anos de formação de Clara ao lado de Beatriz (como a de Dante, a conduziu das trevas para a luz através do conhecimento). Assim como Clara, ela também foi vítima de uma cilada familiar motivada pela cupidez que culminou num destino comum para ambas: o sanatório. Não foi difícil reconhecer logo nos primeiros acordes da convivência das duas a relação intertextual com O conde de Monte Cristo, clássico incontornável da literatura ocidental de Alexandre Dumas, relação muito bem tecida já que também seu mote central é um plano de vingança/justiça. Beatriz preparou Clara emocionalmente  e culturalmente para poder trilhar seu retorno  e conduzir seu plano de reaver o que lhe foi usurpado, além de fazê-la herdeira de uma fortuna que facilitará a execução de seus objetivos.

Walcyr Carrasco, profundo leitor dos clássicos da literatura ocidental, adaptou vários deles para o público juvenil, e costuma trazer esse salutar diálogo para suas tramas na televisão. Em O cravo e a rosa relemos A megera domada de Shakespeare, em Chocolate com pimenta entramos em contato com A viúva alegre filme de 1934, em Sete Pecados com A divina Comédia, em Êta mundo bom revimos um misto de Cândido de Voltaire e Mazzaropi, para ficarmos aqui com as citações mais diretas, pois ele também faz menções mais sutis como na última cena de Amor à vida inspirada em Morte em Veneza.

Para Ítalo Calvino em Por que ler os clássicos, um clássico é aquela obra que nunca termina de dizer o que há para dizer, dessa forma considero extremamente bem-vindo esse trabalho de visitação ao nosso acervo cultural nas telenovelas, além de enriquecer o texto, nos põe em contato com os grandes dramas humanos que são em última instância  a matéria primordial das obras clássicas. Também lembrando Kristeva “todo texto é um mosaico de citações”, vamos nos alimentando do que lemos, do que vimos, do que ouvimos e assim costurando nossos fios através dessa rede interminável de diálogos.

Dito isto, passemos para alguns detalhes da trama. Um ponto me chama  atenção na novela, a complexa relação da maternidade. Há muitos tipos de mães na narrativa. A megera-mor Sophia, brilhante Marieta Severo (quem diria que Dona Nenê seria capaz?), manipula e maltrata seus 3 filhos ao sabor dos seus planos, com ênfase para sua não aceitação da filha anã, para ela uma aberração que não merecia e tenta esconder a todo custo. A personagem Stela está interessantíssima, Walcyr inova ao trazer o tema do nanismo para a discussão, além de termos com ela outra relação maternal não consanguínea, sua babá é sua mãe de fato e luta por sua felicidade.

Nadia, outra manipuladora, também conduz com mão de ferro o destino dos filhos. Esposa de um juiz corrupto, se refestela com seus “jeitinhos” e lucros auferidos, tida como grande dama da sociedade é a encarnação do preconceito e egoísmo, seu peso é aliviado na trama pela comédia que é sua alcova com suas peripécias sexuais. A mãe do médico gay, que não tem coragem de sair do armário para não decepcionar mamãe, é outra relação materna interessante, uma manipuladora também, ganha nossa simpatia pelos disparates que fala. Lívia, obsessiva pela maternidade, compactuou com o plano diabólico da mãe, para ficar com o filho de Clara. A personagem de Glória Pires, em nome de salvar o futuro de sua filha, aceita morrer em vida e mata Elizabeth para dar vida à Duda. E parece que mais mistérios envolvem sua relação com a maternidade. Tudo indica que a maternidade na trama é que é o padecer no outro lado do paraíso, e até então se insinua que o amor materno pleno só se realizará com Clara que moverá o mundo para reaver o filho roubado, sua verdadeira mina.

Outro ponto especial na trama é a atuação dos nossos atores octogenários. Um time estrelado: Lima Duarte, Fernanda Monte Negro, Nathalia Timberg, Laura Cardoso e Ana Lúcia Torre ( essa septuagenária). Todas as vezes que eles aparecem em cena temos momentos de fulgor na tela. Fernanda com sua personagem mística está mesmo alguns centímetros acima do chão, ganhou uma aura de santidade. Sua cena em que enfrentou a morte para salvar seu amigo/amor foi emocionante. Lima com seu homem cheio de brio e dignidade que não se rende às tiranias dos poderosos também o faz com maestria. Timberg roubou a cena e continua roubando com sua presença fantasmagórica, uma espécie de mentora de Clara, mesmo depois de morta. Ana Lúcia está cômica com seus gracejos sobre a macheza do filho e sua birra com a nora. Agora, Dona Laura Cardoso como a cafetina Caetana é um presente para nós, seu retorno ontem foi hilário, “quem nasceu para quenga, morre quenga”, completa o quinteto de ouro. Excelente escolha de elenco, reunir os cinco numa mesma trama.

Sobre os retornos da segunda fase, já temos na arena a volta triunfal de Raquel como juíza, nada mais simbólico para o projeto da novela. Ela que foi humilhada por sua cor e condição social, retorna como uma espécie de esperança para que a justiça social (e individual) seja mesmo feita sem as interferências do poder econômico. Agora aguardemos a chegada de Clara em Palmas, certamente não será de balão como Edmond Dantes, mas causará muitas surpresas agradáveis para uns e demolidoras para outros...



domingo, 22 de outubro de 2017

A Força do querer : Entre afetos, perdão e verossimilhança



Encerrou-se essa semana a novela A Força do querer de Glória Perez. Novela polêmica, carregada de discussões que dividiu o país e obteve excelentes níveis de audiência, termômetro inquestionável dos seus muitos acertos. Dentre esses acertos destaco o cuidado da autora em lançar sua câmara sobre todos os núcleos dando vez e voz a praticamente todas as personagens, jogando luz não só sobre os protagonistas (aqueles que primeiro lutam), mas deixando brilhar também os muitos coadjuvantes que desfilaram pela trama. Foi uma novela multiplot, com diversas temáticas sendo trabalhadas simultaneamente, alternativa exigente que nos faz acompanhar a narrativa atentos aos muitos lances de dados que estão sendo jogados todo o tempo.

Silvana, brilhante Lilian Cabral, nossa Meryl Streep, nos colocou diante do vício do jogo, tão destrutivo quanto qualquer outra dependência, ela pôs todos ao seu redor em risco, atolando-se a cada dia mais em mentiras e rebaixamento moral e pessoal, só assumindo sua doença nos lances finais e perigosos do jogo (o resgate de Simone foi uma reprodução de um episódio real).Tema ainda inédito e muito bem trabalhado, sobretudo, na figura de uma personagem feminina, de alta classe social. Ao lado dela, acho que tivemos um dos melhores núcleos da trama. Seu marido Eurico, o típico homem conservador, chefe de família que acha que tem o controle de tudo, deu a Humberto Martins o melhor papel de sua carreira. Sua relação com Nonato foi um dos pontos altos da novela, sua descoberta do grande segredo foi hilária, daí guardado para o finalzinho para ter aquele sabor de sua surpresa. A fala de Biga  bem o definiu: “Seu Eurico dá um jeito de encaixar os seus afetos no seu modo de ver a vida...” Então Nonato pode ser artista, mas fazendo os machões Jece Valadão ou Capitão Nascimento, um Nonato que só ele via, mas ao final, ele já sugeriu Hamlet, personagem ambíguo...Ser ou não ser...

Ritinha, nossa sereia, descendente direta de Gabriela Cravo e Canela, não se rendeu às convenções, movida exclusivamente por seus desejos, só fez o que quis e pisou fundo no coração de Zeca e Rui, mas mesmo assim emanou uma empatia com sua brejeirice (Égua!) que fez com que aceitássemos seu exotismo, com direito a foto de família no sofá dos Garcia com os dois pais de seu filho e a união fraterna de Rui e Zeca ao desvendar o mistério mítico das águas.

Um dos temas mais palpitantes da trama foi sem dúvida a transição de Ivana em Ivan, vivida pela Carol Duarte que deu um show de atuação num papel tão difícil, com todas as dores e estranhezas que  trazer esse assunto para a sala da família brasileira causa. A autora foi extremamente didática e sensível com toda a rede de questões que envolvem tal assunto e deu a Ivan um final glorioso e surpreendente ao lado de Claudio que a aceitou ao reconhecer que naquele novo corpo ainda habitava a alma pela qual ele havia se apaixonado, e  a cena tinha que ser na praia, na natureza, onde ao contrário das convenções da cultura, tudo pode acontecer em matéria de afetos.

Muitas tramas paralelas tiveram a chance de aparecer na telinha, a psicopatia de Irene com seu final de filme de terror descendo aos infernos, as relações entre patrões e empregados que fogem aos modelos meramente legais, o estilo de vida da comunidade com seus muitos tipos psicológicos, a chegada de Elvirinha e Tio Garcia que nos rendeu ótimas cenas já do meio para o fim da novela, com justas homenagens a Betty Faria que reviveu sua Tieta (Dançando Funk ou vestida de Mulher Maravilha e sua Lucinha de Pecado Capital, dinheiro na mão é vendaval).

Cheguemos ao núcleo central do tema do tráfico de drogas carregado nas tintas da verossimilhança, com direito a todas as críticas possíveis ao nosso sistema judicial e carcerário (a expressão enxugando gelo foi várias vezes repetida). A força dos traficantes em seus domínios, as imagens de guerra e guerrilha no último capítulo, a permanência do crime e sua força a despeito de muitas ações de combate, o fascínio que esse submundo exerce para muitos. A autora escancarou as veias abertas de um dos nossos principais problemas sociais e ao contrário das críticas sofridas por setores da sociedade, a novela não inventou nada dessa realidade, ela espelhou uma pequena parcela do que de fato ocorre naqueles becos e vielas labirínticos. E como boa ficção que é, criou um Sabiá misto de bandido e herói popular com sua boa dose de humor “poblemático”, pedindo a senha do wifi na cadeia e lendo o Salmo 91.

Bibi Perigosa, personagem real, teve sua redenção, expiou suas penas e se regenerou como boa cria folhetinesca, teve direito ao seu final feliz ao lado do Cavalheiro Andante Caio, representação positiva (ao lado de Jeíza) da polícia e da justiça. Como protagonista ela cumpriu seu percurso heroico de ascensão no crime, queda moral e retorno à luz através da expurgação e consciência do erro. O seu reencontro com Caio, para ele ela sempre foi Fabiana e nunca Bibi, foi marcado pelos versos do Poema em Linha Reta, do heterônimo Álvaro de Campos de Fernando Pessoa, apontando que todos somos carregados de falhas, mas que só poucos têm coragem de assumir ( “Nunca conheci na vida quem tivesse levado porrada!”), a vitória do perdão sobre o ódio esteve presente nesse final sob vários modos. Destaquemos na trama de Bibi a atuação de Elisângela, como uma mãe arquetípica que tudo fez para salvar sua filha e para o menino Dedé, vítima indefesa dos erros dos pais, fez um papel forte para uma criança, que tinha a fuga para a fantasia ao lado da amizade de Goku.


A Força do querer ficará marcada no imaginário brasileiro, ganhar um Globo Repórter é para poucas novelas, mostrando sua penetração na sociedade e o desconcerto que causa as obras polêmicas. Ao lado da força do real retratado na trama venceu de fato, a força do querer. Com suas novidades narrativas ousadas inovando até o último dia com a narração de Tio Garcia, um sábio anti-herói, nos pondo a par dos desdobramentos de cada personagem...Terminamos com os versos de Menotti Del Picchia que ele disse para Rui ao mandar que ele perdoasse Ritinha e que resume bem a vitória dos afetos no final da trama, apesar de toda a realidade que sangra ao nosso redor: Esta vida é um punhal com dois gumes fatais: não amar é sofrer; amar é sofrer mais"!

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Quem tem medo de Glória Perez?

Em 1995, portanto no século passado, Glória Perez em Explode Coração já sacudiu/confundiu o Brasil com Sarita Vitti, personagem Travesti ou Drag Queen (talvez nessa época os nomes não eram  tão importantes ou definidos ainda nesses termos), interpretada pelo ator Floriano Peixoto, em primeiro papel na televisão. Numa época na qual ainda não havia as redes sociais e seus megafones, o assunto  foi bastante polêmico e de vanguarda. Já naquele tempo, Glória desenhava essa personagem de difícil contorno para os padrões da época com as tintas da humanidade, focando no drama humano de ser diferente do que se espera e como lidar com isso numa sociedade hostil e que rejeita, assim como Narciso, o que não é espelho. E assim ela continua com seus pinceis e teares encantados...

Passados 22 anos, em outro século, o tema volta em sua trama A força do querer com vigor e complexidade e ainda gera polêmica. Temos em cena Nonato (Silvero Pereira), de dia vestido no seu paletó e gravata que parecem sempre apertados e de noite se traveste de Elis Miranda, cantora performática que irradia alegria assim caracterizada. Se  define como um travesti e  se aceita com seu corpo assim como ele é. Em justaposição (porque não se trata de outro lado), temos Ivana até ontem, agora Ivan (Carol Duarte), que depois de um longo processo de crise existencial se descobre Transexual. O processo de descoberta e transição de Ivana foi lento e doloroso (continuará sendo), acredito na intenção pedagógica da autora em exibir todo o entorno da complexa questão, pois houve um investimento em muitas cenas didáticas sobre o assunto.

Ao por Elis e Ivan em diálogo, a primeira passou a ser uma espécie de fada madrinha e anjo da guarda vigilante de toda família Garcia (seu desempenho vem crescendo e ocupando vários espaços, quando Eurico o descobrir, o coitado que acha que sabe de tudo, não poderá mais viver sem sua amizade!), foi no pequeno apartamento de Elis que Ivana conseguiu decidir sua dolorosa metamorfose e enfim tomar a decisão de comunicar a família sua condição. O colo e as almofadas acolhedoras de Elis funcionaram como uma espécie de útero para gestar o Ivan que nasceria em breve. Mas para nascer Ivan, há de morrer Ivana, daí a cena dramática de ontem, vivida mais intensamente por Joyce, mãe que desejou uma filha à sua imagem e semelhança com todos os códigos femininos que ela acredita ser fundamental para ser uma mulher feliz.

A cena, ritual sacrifical de morte de Ivana representado pelo corte dos cabelos, marca feminina por excelência (ecos de Camila em Laços de Família) foi realizada com uma forte carga emocional. Joyce em posição de Pietá, chorava a morte de Ivana, e Ivan nascia chorando como um bebê que vê o  mundo pela primeira vez. A mater dolorosa, enlutada, agarrada aos fios do cabelo de sua menina, fez o Brasil se emocionar.

O espelho, antes motivo de tortura para Ivana, começou a dar sinais positivos para Ivan, que começa a se encontrar. Não posso avaliar como deve ser dolorida essa travessia, essa transformação, mas acho que a trama acertou em mostrar primeiro que é no seio (bendita metáfora!) da família que devemos ser compreendidos e aceitos primordialmente, para depois partir para o desafio inóspito das ruas (outras tantas cenas já foram mostradas com Ivan e com Elis sobre a barbárie das ruas contra os “diferentes”). A autora é famosa por introduzir questões sociais e reais em suas novelas, acho que está acertando em cheio em nos esclarecer sobre uma questão tão pulsante e necessária. O conhecimento liberta, gera a empatia, promove a compaixão, que significa etimologicamente sentir com o outro, e podemos sonhar por alguns minutos com um mundo mais acolhedor como são os braços de Elis Miranda... But I see your true colors, Continue Glória!

P.S. A autora não criou o tráfico no Rio de Janeiro.




domingo, 20 de agosto de 2017

Mulher Maravilha: Uma heroína grega na Primeira Guerra

A imagem da Mulher Maravilha com seu collant (naquele tempo não se dizia body) baseado na bandeira dos Estados Unidos, sua tiara, seu laço da verdade e seus voos e saltos povoaram toda a minha infância e acredito que todas as meninas da minha idade. Afinal, era uma mulher dentre tantos super-heróis. Eis que tive um maravilhoso reencontro com ela essa semana na nova versão do filme Mullher Maravilha (2017) sob a direção de Patty Jemkins, com roteiro de Allan Heinberg. 
Agora, Diana Prince (Deusa da caça e princesa) representada pela talentosa e lindíssima Gal Gadot, é construída com a força de suas origens míticas, e essa parte inicial conduz toda a diferença nessa narrativa. Ela é a Princesa das Amazonas, lendária tribo de mulheres guerreiras, treinadas desde a infância para combater o Mal, representado pelo mito grego de Hades (Deus dos infernos), no filme  Ares, vilão da DC. Vivem isoladas numa Ilha paradisíaca quando, numa espécie de portal do tempo, o piloto Steve Trevor (Chris Pine) vem ferido parar nessa ilha (tal cena nos remete á Odisseia, quando Ulisses aporta na Ilha de Ogígia e é aprisionado pela deusa Calipso), na verdade um espião (revelado pelo laço da verdade) soldado da Primeira Guerra (naquele tempo ainda A Guerra, pois não sabia-se que viria a Segunda).
A partir desse inusitado encontro de tempos históricos, filosóficos e ideológicos tão distintos nasce a raiz dessa arrebatadora trama. Diana Prince segue com Steve para os “Tempos modernos” e vai combater nas trincheiras da Guerra usando suas armas, seus super poderes e, sobretudo, seu código de ética heroico pautado nos valores do mundo grego. Ela o acompanha acreditando estar em busca de Ares e que ao derrotá-lo o mundo estaria salvo do Mal. É simbólico o fato de ela se apresentar, dizer seu nome, sua origem e de onde vem, sempre que vai combater um inimigo (era o usual nas guerras antigas). O choque entre esses dois mundos se dá em vários momentos e suscita diálogos hilários. Para ela é incompreensível os motivos de uma guerra, os modus operandis e as estratégias usadas pelas tropas modernas que lutam por riquezas e poder. A passagem dos mercenários negociando com eles é bastante significativa ( e a redenção deles no final muito emocionante).
Em sua Teoria do Romance, G. Lukács[1] situa o mundo grego, berço da epopéia homérica, como um sistema cultural fechado. Nesse sistema, os fatos narrados mantinham consonância com o conjunto de crenças e valores que conferiam coesão à sociedade grega. Na Grécia homérica, a mesma de Diana Prince, não há abismo entre imanência e transcendência, que formam um todo coeso; de modo que as verdades contidas na mitologia clássica estão presentes na trajetória de vida das personagens. Em contrapartida, por serem ilustrativas de um mundo marcado pela instabilidade, as formas modernas, representadas no filme pelo absurdo da Guerra, trazem em seu bojo existências marcadas pela desorientação e nostálgicas de um sistema mais estável. Nessas formas, se delineiam aventuras de busca de valores estáveis que pudessem superar os abismos intransponíveis entre existência e transcendência.
Eis a grande sacada do filme, a oposição entre esses dois mundos. O grego orientado, representado pela nossa Mulher Maravilha, e o moderno desorientado, representado por Steven e demais envolvidos na Guerra. Mas ao longo do filme, Diana vai imprimindo em Steven e em seu pequeno e inusitado exército seus valores e eles vão se moldando aos ideais guerreiros do mundo helênico e é claro que surge uma linda história de amor, doação e heroísmo (não conto mais para não dar spoiler).
Eis também um grande filme... Diana, de fato, encontra o Ares que buscava (excelente surpresa de quem ele é realmente), e a batalha épica entre eles é colossal com belíssimos efeitos especiais e aquela emoção que nos faz pular da poltrona ou do sofá (no meu caso da cama)! Apesar dos horrores da Guerra e da distópica ideia de que o mal vige no homem como cunhou o Riobaldo de Guimarães Rosa, o final é glorioso e vivificante, vence a ideia de que apesar da coexistência do Bem e do Mal, nossas ações e decisões podem mudar o rumo da História e das nossas histórias e que como não somos super-heróis não pudemos salvar o mundo, mas podemos salvar o dia de algumas pessoas...Vale a pena ver e rever essa venturosa heroina....De collant ou de Body...





[1] LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Ed. 34, 2000.