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sexta-feira, 5 de abril de 2019

Órfãos da Terra: Entre o folhetim e a verossimilhança


A nova novela das 18:00h que estreou esta semana já roubou nosso coração desde o primeiro capítulo. Órfãos da Terra, da autoria de Thelma Guedes e Duca Rachid, tem como pano de fundo histórico, para uma grande história de amor proibido, o drama dos refugiados sírios. Parece que estes serão os dois eixos que nortearão a trama:  O amor e a guerra em suas variadas nuances, os dois maiores temas da literatura, senão, os únicos. Com esses ingredientes dificilmente a receita falhará. Poderia ser exibida ás 21:00h, tem força narrativa para o horário nobre.
O aspecto verossímil da trama nos pôs dentro da Guerra da Síria, ferida exposta e aberta do nosso tempo. A história macro da guerra cruza-se com a história micro da família de Laila (Julia Dalavia), a protagonista da trama, difícil dizer mocinha para uma moça tão valente. É como se em meio a milhares de vidas ali destruídas, as autoras pinçassem uma família para individualizar o drama coletivo daqueles que perdem tudo, até mesmo o chão debaixo dos pés. As imagens felizes de uma festa de aniversário foram substituídas, em segundos, por destruição e dor.
Em meio dessa terra arrasada, cenário inóspito de um campo de refugiados, brota (regado por água) o amor proibido de Jamil (Renato Góes) e Laila. Mas como nos bons folhetins, trata-se de um amor proibido. O Sheik Aziz (Herson Capri excelente no papel), vilão por excelência, já havia posto os olhos nela e, por meio de métodos escusos, ganha o direito de desposá-la. Ao fugir para não casar, a jovem atrai a ira do seu algoz. Não bastasse isso, ele é uma espécie de protetor de Jamil, que o tirou do orfanato quando criança e planeja que ele seja seu genro e sucessor. Jamil, portanto, sofrerá do dilema moral de trair aquele que o amparou, mesmo discordando de seu comportamento abjeto.
São claro os ecos de Tristão e Isolda sobre eles. Tristão recebe a tarefa de ir buscar a noiva de seu tio que o criara, o Rei Marcos, e, durante a missão, apaixona-se pela bela Isolda, até a viagem e o navio temos. Mas, como obra contemporânea costurada pelos fios da intertextualidade, torceremos que o final do casal seja outro que não o do drama medieval. Os espectadores torcem sempre por finais felizes.
Ao escolher o tema dos refugiados como fundo histórico, enredo completamente verossímil, as autoras também estão tratando dos imigrantes que  aqui vivem por diversas razões, na maioria por guerras também. Já sabemos que essa Babel paulista nos trará o lado cômico da trama com tantos “brimos” e ‘brimas” brigando e comendo quibe e tabule. Já nesse início, tivemos uma cena de briga entre um árabe (Flávio Migliaccio) e um judeu (Osmar Prado), ressignificando com humor conflitos milenares. Tal cena nos remeteu ao magistral filme Concorrência Desleal, de Ettore Scola. A colônia árabe de São Paulo receberá, em breve, a família de Laila, e o choque cultural certamente aparecerá. Do outro lado do mapa, casamentos arranjados, poligamia, dote... Por aqui, uma prima feminista que mostra os seios na Avenida Paulista, comerciantes tradicionais que têm que se adaptar aos novos tempos, em meio àquele clima de casa árabe com mesa farta, mães dramáticas e muito falatório.
Destaquemos ainda a beleza da novela construída por riqueza de detalhes e símbolos. A abertura é belíssima, um mosaico de vários povos que por aqui vivem e os personagens vão se juntar a eles como naquelas fotografias de família. A oposição entre a casa-palácio do Sheik e a pobreza dos refugiados, a aliança perdida no meio da explosão, a chave da casa que o árabe que vive há décadas no Brasil guarda no bolso esperando pela volta, os despojos no mar, fragmentos de vidas que se dissolvem abruptamente e os abraços frequentes da família para quem a Pátria passa ser apenas o desejo de permanecerem juntos, mostrando que o amor sobrevive em meio aos destroços e é o combustível para continuar buscando uma terra prometida...E a mola propulsora dos folhetins...
Começamos muito bem, e com desejo aceso de continuar assistindo nossas Sherazades, Thelma e Duca, que já nos encantaram outrora com seus cordéis encantados e joias raras, a cada capítulo mal respiramos esperando o próximo, assim como o sultão das Mil e uma noites, afinal o que gostamos mesmo é de ouvir boas histórias para continuarmos vivos e esperarmos o dia seguinte....


segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Assédio: O médico é o monstro


O famoso romance inglês O médico e o monstro de Robert Louis Stevenson, conta a história do prestigiado médico Dr.Jekill que faz pesquisas sobre o comportamento humano, numa dessas experiências acaba criando uma droga que faz vir à tona seu lado animal adormecido, o Mr. Hyde (no inglês o verbo hide, esconder, ocultar; Mr. Hyde é a face oculta do bom Dr. Jekyll), tal livro representa um dos maiores clássicos do terror psicológico, bem típico do cientificismo da época vitoriana. É impossível assistir à série Assédio, exibida atualmente apenas no aplicativo Globoplay (só foi ao ar na TV aberta o primeiro episódio), e não associar ao livro publicado no século XIX e tantas vezes reencenado no cinema e nos desenhos infantis. Só que na série, ao contrário do protagonista ficcional, o médico é o monstro e infelizmente não é só um ser imaginário.
Baseado no livro A clínica: a farsa e os crimes de Roger Abdelmassih de Vicente Viladraga, adaptado para a televisão pelo texto preciso de Maria Camargo e direção de Amora Mautner, a série perscruta os corredores da clínica (laboratório do médico/monstro) com seus insondáveis segredos, a mente labiríntica de todos os envolvidos e, sobretudo, o sofrimento individual  das vítimas, mulheres que buscam naquele sombrio local o milagre da vida que a natureza lhes negou, mas aquele médico das estrelas poderia resolver.
Creio que muitos de nós já conhecíamos o perfil do Dr. Roger, antes dos seus crimes virem à luz, de algum programa da televisão ou revista semanal, nos quais ele expunha com toda pompa e circunstância os bebês por ele vindos ao mundo, algumas vezes filhos de celebridades que gostavam de repetir “foi Dr. Roger quem fez”. Auto apelidado de Dr. Vida tal sua prepotência (na série Roger Sadalla), esse psicopata é representado por Antonio Calloni com total competência, chegando a nos provocar o asco inevitável. Todavia, passamos a ver sua migração das colunas sociais e afins para as páginas policiais através da denúncia de mulheres vítimas de seus ataques. A série é muito mais que a representação ficcional da história de ascensão e queda de um monstro, ela é também a consagração da força das mulheres que se uniram em prol dessa dor inominável, serem violentadas num momento de total fragilidade.
Todas as vítimas tiveram suas vidas destruídas ao cruzarem o portão daquela bela clinica que escondia horrores em suas saletas de vidros baços onde à meia luz e, aproveitando-se algumas vezes do torpor do anestésico, o monstro agiu impune por anos, condenando essas mulheres ao sofrimento do silêncio, da dúvida, da escuridão e da solidão tão bem retratados na tela por cenas escuras e ambientes fechados.
Destaquemos a qualidade artística da produção tão rica em detalhes e potência simbólica (talento já mostrado por Maria Camargo na adaptação de Dois irmãos). A começar pela música de abertura, Silent Night, traduzida para o português por Noite Feliz, que simboliza a um só tempo a festa cristã, como também a silêncio e a solidão. As mulheres com desejo pelo nascimento (natal) de filhos com ajuda da ciência que lhe acenava, tinham seu sonho atravessado pela violência sexual que lhes impingia o silêncio e o medo. Signo irônico presente na letra e na condensação de sentimentos cristãos presentes na trama, que vão da culpa à falsa fé apregoada pelo Dr. Vida. Na abertura também temos, como numa espécie de caleidoscópio, diversas imagens aparentemente desconexas, mas que dão uma unidade  à história, a agulha, o sangue, as pílulas, as imagens sacras dentre outras.
Quanto aos índices simbólicos dos sentimentos vividos pelas personagens temos muitos exemplos. O cofre, onde a sofrida esposa de Dr. Roger, Glória, vivida com maestria por Mariana Lima (uma personagem de uma complexidade impar, na sua primeira aparição já é possível perceber sua carga emotiva) guarda as fotografias das traições do marido aponta para toda a sua agonia recolhida que acaba por se transformar num câncer que a mata lentamente assim como as imagens das câmeras, segundo a fala de uma personagem, ela tinhas duas doenças, a outra era ele. A relação edipiana do médico com sua mãe e a opressão com os filhos e netos nas cenas da mesa/casa são sinais de quem era o homem de verdade na intimidade. A xícara tão cheia que transborda inundando a casa da personagem de Adriana Esteves, vítima com papel chave na narrativa com seu vestido vermelho e seu isolamento, uma atriz completa que sabe ir da comédia rasgada ao drama absoluto capaz de nos assombrar na série com seu silêncio eloquente. A cena da lâmina de barbear interpretada pela baiana Maria José no banho, vivida por Hermila Guedes, outra personagem que junto com Odair (João Miguel), seu marido caminhoneiro desonrado, nos faz ter mais ódio ainda do criminoso. São inúmeros detalhes que compõem esse intricado mosaico de dor que vai lentamente sendo costurado como num triler psicológico de alta tensão.
Voltando para a força e união das mulheres que só vão ganhar voz e luz a partir das redes sociais e de ações investigativas encabeçadas na série pela jornalista Mira Simões que se doa por inteiro para solucionar essa série de atrocidades, inclusive negligenciando sua própria vida (a cena de Martim no carro é desesperadora) e se encarrega de costurar os fios soltos durante tantos anos. Tal corrente em busca de justiça vai ganhando corpo na abertura de cada episódio quando os nomes das mulheres vão se enfileirando em série e crescem a cada capítulo, representação alusiva da força que ganham quando se juntam e rompem o cerco de silencio, fruto de uma estrutura social repressora que criminaliza a mulher abusada e põe seu drama sob dúvida.
 É uma série muito forte, exige coragem para quem a fez, exige coragem para quem a assiste, exigiu coragem de quem teve coragem de denunciar e investigar, em muitas cenas fechei os olhos e senti repulsa, nada comparado ao drama real dessas mulheres, contado individualmente através de algumas delas. A justiça não foi perfeita, mas ao menos o ídolo foi destronado e já não poderá fazer mais vítimas. A vida pode ser muito pior que a arte e aqui muito além do entretenimento, a teledramaturgia presta um serviço para a sociedade. Quando a violência grita, grite. O silêncio pode criar outros monstros.


terça-feira, 16 de outubro de 2018

O Segundo Sol nasce para todos


A novela Segundo Sol encaminha-se para o final e segue aquecendo seus espectadores nessas últimas semanas. Como um dos elementos estruturantes do folhetim tradicional temos a transformação de personagens más em boas depois de passar por expiações ou também a famosa volta por cima, no melhor estilo “os humilhados serão exaltadados.” Na primeira categoria temos Rochelle e Roberval, na segunda Zefa e Nice.
Rochelle, a infante terrível da Bahia, retrato de uma educação permissiva feita de vontades, mimos e omissões, protagonizou cenas de caráter desprezível como as armações contra a irmã, o desprezo pelos pais e desrespeito por todos que ela julgava inferiores à herdeira do império Ataíde. Agora, vítima da Síndrome de Guillain-Barré (novela prestando papel informativo, merchandising social), começa seu aprendizado pela dor, quem antes ela maltratava são os únicos que lhe estendem à mão e cuidam dela com doação integral. Foi preciso chegar literalmente ao chão para chamar a mãe de mãe e sentar numa cadeira de rodas para ver o mundo de outra perspectiva. Já Roberval começa a se curar de tanto ódio e sede de vingança para novamente merecer o amor de Cacau e no fundo obter o que sempre quis, um lugar na casa dos Ataíde, mas para isso teve que suar a camisa de novo, voltar ás origens.
Zefa e Nice, minhas coadjuvantes preferidas, estão ganhando vez e, sobretudo, voz, tendo coragem para enfrentar seus homens opressores. A cena de Zefa intitulando-se como matriarca da família e esbofeteando Severo (símbolo da decadência burguesa) foi um espetáculo à parte. O seu micropoder antes silencioso, agora ecoa no casarão em franca dissolução, sobre o qual ela tenta manter de pé ao menos os laços afetivos. Nice, através de seu dom, está retemperando sua vida e construindo um novo cardápio de opções ao lado de suas filhas, enquanto Agenor se dissolve na solidão que provocou ao maltratar todos.
Mas nem só de redenção vive a trama, embora o Segundo Sol possa nascer para todos. O casamento de Clovinho e Gorete foi uma comédia musical para ninguém botar defeito, com direito ao Clown vestido apenas com uma bandeja, creio que ninguém resistiu no sofá e deu uma requebrada ao som do hit do verão 2019 Sal na pele, um perfeito clip do axé nos tempos áureos . Quanto ao núcleo principal, a quadrilha de JEC começa a acertar o compasso da justiça final: Valetim que era filho de Karola que agora é filho de Luzia que é mãe de Ícaro que é pai do filho de Rosa que era parceira de Laureta que era irmã de Remi que era filho de Nestor embora pensasse que fosse de Dodô que é casado com Naná que é mãe de Beto que é irmão de Yonan que é pai do filho de Maura, aliás doador (Ufa!), não é fácil acompanhar essa genealogia, mas nós estamos com os DNAs em dias.
Sigamos nos aquecendo com o Segundo Sol que já começa a se por, mas ainda briha com fulgor, ainda mais quando aqueles postais de Salvador nos faz crer que a depender do ângulo a Bahia é a terra de todos os cantos, encantos e axé. Salve, Pai Groa! Que bom seria se o Delegado Viana recebesse um caboclo em plena invasão do terreiro como num romance de Jorge Amado.


terça-feira, 28 de agosto de 2018

Segundo Sol: Precisamos falar sobre Zefa e Nice


A novela Segundo Sol vem trazendo discussões muito interessantes em suas tramas secundárias. É comum nas novelas de João Emanuel Carneiro o rodízio das histórias, lançando luz simultânea em variados núcleos, como naquelas mesas giratórias nas quais variados pratos vão passando em nossa frente. As histórias secundárias não são apenas satélites que giram ao redor do planeta, nesse caso em torno de Beto Falcão e seus dilemas éticos e amorosos, elas ganham corpo próprio e nos fazem até esquecer qual o eixo norteador da novela.
Personagens, a princípio coadjuvantes, vão crescendo e ganhando fôlego ao longo da jornada e despertando inquietações diversas. Sem desmerecer outras interpretações femininas arrebatadoras e hilárias (Quem não ri com Dona Naná e seus dois maridos ou de Gorete recebendo o espírito de Beto?), pois essa é uma narrativa com muitas mulheres fortes vivendo suas dores e delícias. Agora, olhemos com mais atenção para  Zefa e Nice.
Zefa, excelentemente interpretada pela atriz baiana Claudia Di Moura, em seu primeiro papel na televisão, vem, literalmente, roubando a cena. Seu papel é tão complexo que fica impossível rotulá-la. Ora ela é a mãe preta, a aia, a mucama com toda carga de submissão e resquícios da senzala. Ora ela é a cumeeira da casa grande, a única viga que mantém aquele palacete de pé sobre seus andaimes carcomidos, a guardiã dos segredos escusos no fundo das gavetas, a voz conciliadora ou tudo isso ao mesmo tempo. Repleta de fragilidade e força ela nos desperta sentimentos diversos dentro daquele núcleo que representa a ruína da família aristocrática. Seu sacrifício de escolhas duras entre os filhos e sua maternidade dolorosa nos remonta à matriz bíblica.
Ela é a famosa personagem esfíngica. Em nome do amor pelos filhos e pela impossibilidade de sobrevivência num mundo extramuros que lhe é hostil, ela foi suportando e vivendo com sua fé inabalável na família que caminha a passos largos para o precipício. Suas angústias nos colocam diante de uma questão sociológica, qual o seu lugar? Frase típica da submissão que ela sempre repete, “eu sei o meu lugar”, mas para nossa sorte, Zefa, seu lugar cresce a cada capítulo e vem tomando nosso afeto.
Vamos a Nice. Dona Nice, vivida pela talentosa atriz de teatro Kelzy Ecard, que assim como Claudia Di Moura, estreia nas telenovelas com uma atuação de tirar o fôlego. Nice, em princípio, pode ser vista como uma personagem-tipo, ela dá vida a milhões de mulheres oprimidas pelos lares brasileiros. Dona de casa caprichosa, mãe extremada, é completamente anulada em sua individualidade pelo marido opressor, o grande Roberto Bonfim, que nos faz ter asco de Seu Agenor. Aliás, permitam-me uma pausa, já que falei de asco. Agenor e o Delegado Viana, ótimo ator baiano Carlos Betão (grande Sargento Getúlio nos palcos), estão tão bons com seus “machos escrotos” que a gente tem vontade de surrá-los pessoalmente, e é esse o papel do ator, viver tão bem sua personagem a esse ponto de gerar repulsa ou empatia  na plateia ( Aristóteles na veia), diante de um palco ou de qualquer tela.
Voltando a Nice, uma dona de casa, do lar, que sofre suas dores calada e não tem voz para enfrentar o marido, nem mesmo quando esse rejeita e expulsa suas filhas de casa, mas como ela é muito mais que um tipo, sua virada começou. E sua força vem daquilo que ela melhor sabe fazer, cozinhar. Sua cena dizendo sim a Cacau (outra arretada) ou buscando desesperadamente sua imagem diante do espelho ou ainda o primeiro enfrentamento com Agenor, questionando inclusive a sua falta sexual, foram verdadeiros solos de ópera. Nice poderia ter saído das páginas de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles ou Adélia Prado, mas também ser nossas vizinhas e amigas, é uma mulher de carne e osso, mesmo que escrita de tinta.
Continuemos de olho nelas duas e em toda a trama, afinal todos têm direito a um Segundo Sol ou terceiro, ou quarto e Sal na pele, na pele, na pele...


sexta-feira, 17 de agosto de 2018

O tempo não para e o mundo é um museu de grandes novidades



A nova trama das 19:00h, O tempo não para, de autoria de Mario Teixeira, vem se revelando como uma bela novidade para esse horário que geralmente é reservado para comédias e experimentações diversas. O autor tem vasta experiência como colaborador em novelas como A padroeira, O cravo e a rosa, Passione e I Love you Paraisopólis, de programas infantis como Castelo Rá-ti-bum e O sítio do pica-pau amarelo, agora inaugura sua carreira solo  e a vem fazendo com grande competência, haja vista o sucesso dos primeiros capítulos.
Uma família de grande influência e posses na São Paulo do século XIX é congelada durante um naufrágio em 1886, juntamente com seus escravos e seu cachorrinho de estimação. Misteriosamente sobrevivem e despertam desse sono congelante intactos em 2018. O mote que aparentemente é inocente e já explorado no cinema, temos filmes famosos como O de volta para o futuro  ou as menos conhecidas comédias De volta para o Presente e Kate & Leopold com temáticas semelhantes, tem sido conduzido com muita destreza e diálogos milimetricamente elaborados que nos têm rendido boas risadas com as confluências e divergências desses dois brasis de ontem  e de hoje.
Uma das graças principais da trama é o que podemos aproximar da comédia de erros proporcionada pelos diálogos extremamente ricos sobre as diferenças desses mais de cem anos. As expressões linguísticas de ontem e hoje sempre estão gerando situações de ambiguidade que provocam o humor. E uma das funções do humor, presente na máxima de Plauto, Ridendo Castigat Mores, é ser usado como crítica social, papel que a novela tem desempenhado muito bem.
O texto está sendo construído como uma espécie de palimpsesto, o Brasil de hoje está sendo escrito sobre o Brasil de ontem e as camadas dos tempos passados sobrevivem com suas marcas e se confundem com o presente. Já aconteceram cenas excelentes que brincam com essa superposição de tempos e permanência de problemas sociais, como os diálogos entre Dom Sabino e Eliseu sobre impostos e política ou o tratamento dado ao tema da escravidão e seus ecos no presente.
Outra estratégia que chama a atenção é a formação de pares de posições semelhantes de ontem e hoje. Dom Sabino emparelha-se com Eliseu, assim como Marocas com Paulina. Chefes de família de ontem e hoje, moças fortes de ontem e hoje que ocupam classes sociais diferentes de ontem e hoje. As diferenças são muitas, mas as semelhanças no aspecto humano também são muitas, o que dá profundidade ao tom cômico gerado pela descoberta das novidades da contemporaneidade pelos congelados.
A presença insólita dos congelados provoca interesses diversos que vão do amor à cobiça, da amizade ao desejo de conhecimento que gera a glória. O mundo não é mesmo um museu de grandes novidades? Se a trama conseguir continuar seguindo o ritmo desses primeiros dias, parece-me que essa novela será supimpa, deleitosa, aprazível, esplendorosa, garbosa e com Ivete cantando Raul na abertura já é um convite a sentar na namoradeira, na voltaire, no divã ou no sofá diariamente....


quarta-feira, 11 de julho de 2018

O ser tão profundo de Onde nascem os fortes


A série Onde nascem os fortes de George Moura e Sérgio Goldenberg, dupla de roteiristas e cineastas de grande talento, já demonstrado em obras como Amores Roubados, O rebu e O canto da sereia, vem chegando ao seu final com êxito e se mostrou ao longo da trama como uma obra de fôlego, complexidade, escolha de elenco impecável e narrativa instigante O horário das 23:00 h tem algumas vantagens e o fato de ser uma obra fechada também, os autores contam com total liberdade de criação e não sofrem interferências da audiência. Talvez a única queixa que tenhamos a fazer seja o seu tamanho, creio que menos capítulos resolveriam bem a trama sem grandes prejuízos para o enredo.
Um misto de road movie, conflito familiar e drama de vingança se entrelaçam numa história comovente que gira em torno dos filhos gêmeos de Cássia, a visceral mãe coragem de Patrícia Pillar. Maria (Alice Wegmann) e Nonato (Marco Pigossi), em busca de aventuras na natureza com suas bicicletas, saem de Recife e vem para Sertão desbravar trilhas. O fato de serem gêmeos nos põe diante do tema do duplo, mote tão explorado na literatura universal. Nonato com sua curta participação, funcionará ao longo da trama como um espectro a guiar o enredo. O seu desaparecimento muda todo o rumo dessa aventura dos jovens e faz Maria se transformar numa Donzela Guerreira que busca com força desmedida descobrir o que aconteceu com seu irmão. Notemos que ela é uma personagem meio andrógina, frágil e forte, com suas roupas vaporosas e seus cabelos curtos, em determinado momento se vestiu de homem com direito a chapéu de vaqueiro a la Diadorim. Aliás, as referências ao universo rosiano aparecem com força. Sertão esse lugar sem porteira.
O lócus da trama, Sertão, é um microcosmo do Brasil profundo, quase medieval, com leis próprias, ou sem leis, ou leis que derivam ao gosto dos seus representantes como o juiz Ramiro (Fábio Assunção) e o delegado Plínio (Enrique Diaz), tão convincentes em suas atuações que nos provocam asco, ambos beirando a psicopatia. A questão mística também é sintomática desse universo, a figura de Samir, mais uma vez Irandhir Santos mostrando que é um dos melhores atores da nova geração, é uma das grandes personagens da trama. Esse líder espiritual da Comunidade de Lajedo dos Anjos, uma espécie de Terra Prometida, com suas chagas de estigmata ainda sofre na carne e na alma as angústias humanas que precisam ser expiadas eternamente.
Pedro Gouveia (Alexandre Nero, talhado para protagonistas fortes), em principio parecia ser o grande vilão da trama, foi se transmutando ao longo dos capítulos e despertando nossa empatia. É o tipo que perdoamos as falhas morais em nome do seu outro lado, pai amoroso e homem justo. E o que dizer de Ramirinho (Jesuíta Barbosa, outra fera), com sua Shakira do Sertão, uma atuação tão compungente que nos arrebata com sua dor de Assum Preto ou de José Dumont, com seu mítico Zé das Cacimbas?
A trama seria apenas uma história de Crime Castigo, não fosse o amor que esbarrasse no caminho das personagens. Maria/Hermano/Walquíria/ Simplício, Pedro/Rosinete/ Cássia/ Ramiro e outras ligações perigosas. Destaquem-se também as mutações de Rosinete, brilhante Débora Bloch, de mãe sofredora e contrita a uma mulher que busca sua felicidade. A intensidade dos sentimentos que vão da posse ao amor sem reservas transbordam na nossa tela alaranjada como o sol e a poeira das estradas do Sertão.
Outro ponto a destacar na trama é a presença dos fosseis na história, o fato de Sertão ser um sítio arqueológico. Parece-me a grande metáfora da trama, as camadas a escavar do humano que sempre guardam grandes mistérios. O revolver da terra faz o tempo voltar e desencavar segredos insondáveis. Foram muitas cenas memoráveis até então, destaco aqui  uma que comoveu muito, Cássia desenterrando a cova de Nonato com as próprias mãos, encerrando sua busca pelo corpo do filho.
A trama já está chegando ao fim, como bons espectadores aguardemos que a justiça seja feita e os maus punidos, mas fiquemos sempre atentos, pois nem tudo é o que parece nas paragens do Sertão, afinal “o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum!”. Eu conto e vocês botam o ponto...



sábado, 26 de maio de 2018

Sob e sobre o Segundo Sol: A morte e a morte de Beto Falcão



A nova novela das 21:00h, Segundo Sol, de João Emanuel Carneiro, começou antes de começar. A polêmica sobre a ausência de atores negros numa trama que se passa num estado onde a maioria da população é negra surgiu com força nos dias que antecederam sua estreia, assim que as primeiras chamadas foram ao ar. Como professora de literatura e estudiosa das relações entre Literatura e Telenovela, declinarei dessa discussão, pois concordo em parte com a questão que certamente traria mais verossimilhança para a trama, mas por outro lado, como defensora da arte como uma manifestação humana que não tem como função exclusiva retratar somente o real, defendo a novela como veículo de entretenimento e reflexão e sem esquecer que, sobretudo, é um produto mercadológico, por sinal o mais rentável da Televisão. A Bahia é só a moldura. Lanço, portanto, meu olhar para o terreno que costumo pisar, a análise textual.


 O título da novela já sugere a ideia de recomeço, por isso a passagem de tempo de 18  anos para que nós telespectadores, conhecedores do embrião da trama mostrada nos primeiros dias na novela, possamos compreender seus desdobramentos no tempo atual. E esses são muitos e variados. O eixo central gira em torno de Beto Falcão, cantor de Axé já em decadência que é convencido por sua entourage vigarista, irmão/empresário/canalha e namorada/ambiciosa/mau-caráter que ele vale mais morto que vivo, pois sua falsa morte faz com que  volte a valer no mercado artístico e publicitário, até romaria houve em sua porta mostrando a hipocrisia dos fãs que já nem lembravam do cantor. Daí todos lucram com o falso mito que se forma. São claros os ecos de Roque Santeiro, obra-prima de Dias Gomes. Assim como Roque, Beto vira mito e passa a viver de sua mitificação, como na fictícia Asa Branca que passa a ter no falso heroísmo de Roque sua principal fonte de renda. Até uma sombra de Porcina temos, a personagem de Débora Secco assume a postura de viúva oficial e vive para alimentar seus direitos autorais e manter vivo o legado do marido.


Além desse intertexto com o grande dramaturgo, autor de sucessos como Saramandaia e Mandala, temos também o diálogo claro com Jorge Amado, como não poderia ser diferente numa novela que tem como cenário Salvador. Inclusive houve uma cena em que Miguel/Beto lê Tieta do Agreste (por sua vez inspirada em A visita da velha Senhora, as relações entre os textos são inesgotáveis), aquela que volta para se vingar, assim como Luzia Batista (Cansada de Guerra, quanto sofrimento em tão poucos dias). Os influxos amadianos são muitos, mas gostaria de focar o olho na Casa Grande do núcleo rico da novela. Inclusive, a expressão Casa Grande e Senzala (Gilberto Freyre ainda tem muito a dizer sobre nós) já foi citada diretamente por Roberval, Fabrício Boliveira, que protagonizou uma cena magistral ao descobrir sua paternidade.


Filho do patrão com a empregada, aquela famosa “como se fosse da família”, transbordou sua revolta justa com um brilhante texto e sua saída da Casa sob uma chuva copiosa  deu mais dramaticidade à cena (nos remete também ao filme Que horas ela volta?). O discurso de Roberval nos levou a uma passsagem de Jubiabá:



 “A vida no Morro do Capa Negro era difícil. Viviam das tarefas no cais, carregando cargas pesadas ou do trabalho em casas ricas. As crianças já sabiam seu destino; o trabalho no cais ou em fábricas enormes. Enquanto isso, os meninos ricos iam ser médicos, advogados, engenheiros, homens ricos. Também, podiam ser escravos desses ricos. Antonio Balduíno queria outro destino, desejava ser livre como Jubiabá e Zé Camarão. Tudo o que fez depois, veio das histórias de valentia ouvidas à porta da casa da tia Luísa. E elas falavam daqueles que se revoltaram contra o trabalho escravo, dedicado ao branco. Mas, Balduíno era também moleque travesso, líder das coisas malfeitas no morro. 


Roberval, assim como Antonio Balduíno, deseja outra vida. Por agora, trilha caminhos tortuosos, aguardemos o que virá, é uma personagem que promete. Até então acho essa Casa o melhor núcleo da novela, com seus segredos, relações familiares complexas e seu cruzamento com o eixo central através da adoção problemática de Manuela, que acaba por reproduzir,com seu irmão Icaro, o mesmo drama de Roberval e o seu patrãozinho Edgar.


Passados os 18 anos, todos vivem sob esse segundo sol posto no passado que selou a separação entre Luzia e seus três filhos por artimanhas das vilãs Carola e Laureta, que volta agora para tentar reparar as injustiças sofridas e as pontas da sua vida interrompida. Seus três filhos são todos rebeldes e sofrem dramas diversos, drogas, rejeição, desajustes emocionais e farsas identitárias dentre outros conflitos.


Ainda destaquemos, nesse raiar do Segundo sol, a amoralidade de Laureta, uma Carminha mais perversa porque não gosta de ninguém, só pensa em lucrar e para isso não mede esforços, até leilão virtual de mulheres faz em sua mansão-club Sodoma e Gomorra (já deu saudade de Dona Caetana  e sua boate raiz), a bela amizade entre o Gringo e Luzia, o sotaque bem acertado de alguns como Ícaro (Chay Suede) e Ionan  (Armando Babaioff,). Tudo leva a crer que investiram bastante na pesquisa das expressões do nosso baianês, confesso que está massa ouvir tanto “mainha”, “se saia”, “oxe oxe oxe” e  “osadia”. E o colorido e a trilha sonora da abertura também estão de lenhar, a mistura de Cassia Eller com Baiana System ficou de torar.


JEC é conhecido como autor de tramas fortes, nos deu o maior sucesso dos últimos anos com Avenida Brasil, além de bagunçar nossa cabeça com A Favorita. O situo na linhagem de Gilberto Braga, com seus conflitos de forte carga dramática, jogo social em torno do poder do dinheiro, relações familiares densas e seus famosos ganchos que nos deixam ligados até o dia seguinte. Acho que O segundo sol até começou meio morno, mas já começou a esquentar....Continuemos na cocó, se ligue aí..

P.S. Eu sou baiana de Feira de Santana e creiam:  Existem muitas Bahias...