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domingo, 26 de maio de 2019

A dona do pedaço: Uma receita de sucesso


Existem poucas histórias, é a maneira de contá-las que faz a diferença” Daniel Filho

A epígrafe que abre este texto, da autoria do ator diretor Daniel Filho, um dos grandes nomes da televisão do Brasil, expressa as minhas primeiras impressões sobre A dona do Pedaço, novela de Walcyr Carrasco com direção acurada de Amora Mautner, que estreou trazendo sabor novo ao horário nobre. Ele que é um chef em misturas exitosas como Chocolate com pimenta, parece que nos brindará com outro cardápio saboroso.
Estruturada nos elementos centrais do folhetim e do melodrama, a novela trata de amores impossíveis, famílias rivais, crianças perdidas, mocinha virtuosa, vale de lágrimas, segredos guardados, dentre outros fios tradicionais da telenovela. Temas que já vimos em tantas outras tramas nas telas e nos livros, mas ainda são capazes de nos comover e nos por diante da televisão (ou do smartphone, em tempos de segunda tela) a torcer pela felicidade de Maria da Paz. Como na frase de Daniel Filho, é a forma de contar que nos põe entusiasmados a assistir a mesma história contada de outra maneira. Os ingredientes do bolo parecem conhecidos, mas a forma de misturá-los e a apresentação da receita faz o já visto parecer novo diante de nós. E lá estamos a degustar nossa fatia diária...
A novela iniciou com muita força e repleta de simbologias. Numa espécie de lugar perdido no Brasil profundo, Rio Vermelho, duas famílias de pistoleiros rivais vivem em eterna disputa, onde cada morte é vingada seguindo a Lei de Talião. De um lado, os Mateus, do outro, os Ramires (remete aos Badarós e aos Silveira de Terras do Sem Fim de Jorge Amado), e para desequilibrar essa eterna guerra de sangue, brota o amor de Maria da Paz e Amadeu (nomes motivados, trazem a aliança em seus significados).
 Um amor que nasce na natureza, longe da cultura e das convenções, ele a salva do galope do cavalo, lhe dá água, ela lhe dá seu corpo e sua alma. Vale destacar, no campo dos símbolos, tendo no centro o sangue, a cena na qual a matriarca (Fernanda Montenegro, não há adjetivos para te louvar) treina as crianças atirando nas chamas das velas, metáfora da vida. Só Maria da Paz não acerta, indicando ali que a sua chama continuaria acesa e que ela não nascera para aquele destino. A sua chegada na Rodoviária de São Paulo rezando o salmo 23 foi uma cena forte e bem realizada, mostrando sua singularidade em meio à multidão que por ali chega todos os dias.
O capítulo de sexta-feira (24-05) foi icônico, enquanto Maria da Paz começava a dar seus passos que a tornará A dona do pedaço, ao lado de um núcleo cômico cativante, bem ao gosto dos clowns de Shakespeare, formado por atores de excelência (só não foi uma boa escolha Beth Farias como mãe de Nanini, a diferença de idade é inconcebível, literalmente, até brincaram com o seu biquini), sua avó cobrava a dívida familiar com mãos de ferro e força mítica. Matou seus inimigos e ateou fogo na casa rival, mais simbólico impossível, numa sequência de ação e emoção notáveis. Antes de morrer, a mãe coragem em sua carroça, arrancou o segredo que ali fora buscar, é preciso encontrar as crianças, a continuação do clã, juramento que moverá os Ramires. Destaque para o papel do padre, um veículo constante de apaziguamento.
Do outro lado do Brasil profundo, em São Paulo, outro país pulsa. Com suas personagens de um Brasil real, a professora aposentada com seus proventos minguados e coração gigante, o drama dos sem-teto amainados pela comicidade, o esnobismo da alta burguesia (Nathália Timberg divina), universo outro que atravessa o destino da protagonista, que como ela afirmou, se veste de esperança. Em suas costas, outro acordo será selado pelas mães sobreviventes, a morte dos amantes, para elas essa união é impossível, só gera tragédia. Como em O Seminarista de Bernardo Guimarães, a família sustentará essa falsa morte para enterrar o amor impossível, mas é claro que ele voltará com força...
Destaquemos ainda a beleza estética da trama com fotografia belíssima, cenas campais, sol que nos incandesce, interpretações viscerais, com menção honrosa para Luiz Carlos Vasconcelos, trilha musical bem brasileira e vivificante, abertura saborosa que deixa a gente com aquele gostinho de quero mais...Ao final, é isso que toda boa história nos provoca, o desejo de querer mais um pedaço...De bolo e de ficção...

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Órfãos da Terra: Entre o folhetim e a verossimilhança


A nova novela das 18:00h que estreou esta semana já roubou nosso coração desde o primeiro capítulo. Órfãos da Terra, da autoria de Thelma Guedes e Duca Rachid, tem como pano de fundo histórico, para uma grande história de amor proibido, o drama dos refugiados sírios. Parece que estes serão os dois eixos que nortearão a trama:  O amor e a guerra em suas variadas nuances, os dois maiores temas da literatura, senão, os únicos. Com esses ingredientes dificilmente a receita falhará. Poderia ser exibida ás 21:00h, tem força narrativa para o horário nobre.
O aspecto verossímil da trama nos pôs dentro da Guerra da Síria, ferida exposta e aberta do nosso tempo. A história macro da guerra cruza-se com a história micro da família de Laila (Julia Dalavia), a protagonista da trama, difícil dizer mocinha para uma moça tão valente. É como se em meio a milhares de vidas ali destruídas, as autoras pinçassem uma família para individualizar o drama coletivo daqueles que perdem tudo, até mesmo o chão debaixo dos pés. As imagens felizes de uma festa de aniversário foram substituídas, em segundos, por destruição e dor.
Em meio dessa terra arrasada, cenário inóspito de um campo de refugiados, brota (regado por água) o amor proibido de Jamil (Renato Góes) e Laila. Mas como nos bons folhetins, trata-se de um amor proibido. O Sheik Aziz (Herson Capri excelente no papel), vilão por excelência, já havia posto os olhos nela e, por meio de métodos escusos, ganha o direito de desposá-la. Ao fugir para não casar, a jovem atrai a ira do seu algoz. Não bastasse isso, ele é uma espécie de protetor de Jamil, que o tirou do orfanato quando criança e planeja que ele seja seu genro e sucessor. Jamil, portanto, sofrerá do dilema moral de trair aquele que o amparou, mesmo discordando de seu comportamento abjeto.
São claro os ecos de Tristão e Isolda sobre eles. Tristão recebe a tarefa de ir buscar a noiva de seu tio que o criara, o Rei Marcos, e, durante a missão, apaixona-se pela bela Isolda, até a viagem e o navio temos. Mas, como obra contemporânea costurada pelos fios da intertextualidade, torceremos que o final do casal seja outro que não o do drama medieval. Os espectadores torcem sempre por finais felizes.
Ao escolher o tema dos refugiados como fundo histórico, enredo completamente verossímil, as autoras também estão tratando dos imigrantes que  aqui vivem por diversas razões, na maioria por guerras também. Já sabemos que essa Babel paulista nos trará o lado cômico da trama com tantos “brimos” e ‘brimas” brigando e comendo quibe e tabule. Já nesse início, tivemos uma cena de briga entre um árabe (Flávio Migliaccio) e um judeu (Osmar Prado), ressignificando com humor conflitos milenares. Tal cena nos remeteu ao magistral filme Concorrência Desleal, de Ettore Scola. A colônia árabe de São Paulo receberá, em breve, a família de Laila, e o choque cultural certamente aparecerá. Do outro lado do mapa, casamentos arranjados, poligamia, dote... Por aqui, uma prima feminista que mostra os seios na Avenida Paulista, comerciantes tradicionais que têm que se adaptar aos novos tempos, em meio àquele clima de casa árabe com mesa farta, mães dramáticas e muito falatório.
Destaquemos ainda a beleza da novela construída por riqueza de detalhes e símbolos. A abertura é belíssima, um mosaico de vários povos que por aqui vivem e os personagens vão se juntar a eles como naquelas fotografias de família. A oposição entre a casa-palácio do Sheik e a pobreza dos refugiados, a aliança perdida no meio da explosão, a chave da casa que o árabe que vive há décadas no Brasil guarda no bolso esperando pela volta, os despojos no mar, fragmentos de vidas que se dissolvem abruptamente e os abraços frequentes da família para quem a Pátria passa ser apenas o desejo de permanecerem juntos, mostrando que o amor sobrevive em meio aos destroços e é o combustível para continuar buscando uma terra prometida...E a mola propulsora dos folhetins...
Começamos muito bem, e com desejo aceso de continuar assistindo nossas Sherazades, Thelma e Duca, que já nos encantaram outrora com seus cordéis encantados e joias raras, a cada capítulo mal respiramos esperando o próximo, assim como o sultão das Mil e uma noites, afinal o que gostamos mesmo é de ouvir boas histórias para continuarmos vivos e esperarmos o dia seguinte....


segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Assédio: O médico é o monstro


O famoso romance inglês O médico e o monstro de Robert Louis Stevenson, conta a história do prestigiado médico Dr.Jekill que faz pesquisas sobre o comportamento humano, numa dessas experiências acaba criando uma droga que faz vir à tona seu lado animal adormecido, o Mr. Hyde (no inglês o verbo hide, esconder, ocultar; Mr. Hyde é a face oculta do bom Dr. Jekyll), tal livro representa um dos maiores clássicos do terror psicológico, bem típico do cientificismo da época vitoriana. É impossível assistir à série Assédio, exibida atualmente apenas no aplicativo Globoplay (só foi ao ar na TV aberta o primeiro episódio), e não associar ao livro publicado no século XIX e tantas vezes reencenado no cinema e nos desenhos infantis. Só que na série, ao contrário do protagonista ficcional, o médico é o monstro e infelizmente não é só um ser imaginário.
Baseado no livro A clínica: a farsa e os crimes de Roger Abdelmassih de Vicente Viladraga, adaptado para a televisão pelo texto preciso de Maria Camargo e direção de Amora Mautner, a série perscruta os corredores da clínica (laboratório do médico/monstro) com seus insondáveis segredos, a mente labiríntica de todos os envolvidos e, sobretudo, o sofrimento individual  das vítimas, mulheres que buscam naquele sombrio local o milagre da vida que a natureza lhes negou, mas aquele médico das estrelas poderia resolver.
Creio que muitos de nós já conhecíamos o perfil do Dr. Roger, antes dos seus crimes virem à luz, de algum programa da televisão ou revista semanal, nos quais ele expunha com toda pompa e circunstância os bebês por ele vindos ao mundo, algumas vezes filhos de celebridades que gostavam de repetir “foi Dr. Roger quem fez”. Auto apelidado de Dr. Vida tal sua prepotência (na série Roger Sadalla), esse psicopata é representado por Antonio Calloni com total competência, chegando a nos provocar o asco inevitável. Todavia, passamos a ver sua migração das colunas sociais e afins para as páginas policiais através da denúncia de mulheres vítimas de seus ataques. A série é muito mais que a representação ficcional da história de ascensão e queda de um monstro, ela é também a consagração da força das mulheres que se uniram em prol dessa dor inominável, serem violentadas num momento de total fragilidade.
Todas as vítimas tiveram suas vidas destruídas ao cruzarem o portão daquela bela clinica que escondia horrores em suas saletas de vidros baços onde à meia luz e, aproveitando-se algumas vezes do torpor do anestésico, o monstro agiu impune por anos, condenando essas mulheres ao sofrimento do silêncio, da dúvida, da escuridão e da solidão tão bem retratados na tela por cenas escuras e ambientes fechados.
Destaquemos a qualidade artística da produção tão rica em detalhes e potência simbólica (talento já mostrado por Maria Camargo na adaptação de Dois irmãos). A começar pela música de abertura, Silent Night, traduzida para o português por Noite Feliz, que simboliza a um só tempo a festa cristã, como também a silêncio e a solidão. As mulheres com desejo pelo nascimento (natal) de filhos com ajuda da ciência que lhe acenava, tinham seu sonho atravessado pela violência sexual que lhes impingia o silêncio e o medo. Signo irônico presente na letra e na condensação de sentimentos cristãos presentes na trama, que vão da culpa à falsa fé apregoada pelo Dr. Vida. Na abertura também temos, como numa espécie de caleidoscópio, diversas imagens aparentemente desconexas, mas que dão uma unidade  à história, a agulha, o sangue, as pílulas, as imagens sacras dentre outras.
Quanto aos índices simbólicos dos sentimentos vividos pelas personagens temos muitos exemplos. O cofre, onde a sofrida esposa de Dr. Roger, Glória, vivida com maestria por Mariana Lima (uma personagem de uma complexidade impar, na sua primeira aparição já é possível perceber sua carga emotiva) guarda as fotografias das traições do marido aponta para toda a sua agonia recolhida que acaba por se transformar num câncer que a mata lentamente assim como as imagens das câmeras, segundo a fala de uma personagem, ela tinhas duas doenças, a outra era ele. A relação edipiana do médico com sua mãe e a opressão com os filhos e netos nas cenas da mesa/casa são sinais de quem era o homem de verdade na intimidade. A xícara tão cheia que transborda inundando a casa da personagem de Adriana Esteves, vítima com papel chave na narrativa com seu vestido vermelho e seu isolamento, uma atriz completa que sabe ir da comédia rasgada ao drama absoluto capaz de nos assombrar na série com seu silêncio eloquente. A cena da lâmina de barbear interpretada pela baiana Maria José no banho, vivida por Hermila Guedes, outra personagem que junto com Odair (João Miguel), seu marido caminhoneiro desonrado, nos faz ter mais ódio ainda do criminoso. São inúmeros detalhes que compõem esse intricado mosaico de dor que vai lentamente sendo costurado como num triler psicológico de alta tensão.
Voltando para a força e união das mulheres que só vão ganhar voz e luz a partir das redes sociais e de ações investigativas encabeçadas na série pela jornalista Mira Simões que se doa por inteiro para solucionar essa série de atrocidades, inclusive negligenciando sua própria vida (a cena de Martim no carro é desesperadora) e se encarrega de costurar os fios soltos durante tantos anos. Tal corrente em busca de justiça vai ganhando corpo na abertura de cada episódio quando os nomes das mulheres vão se enfileirando em série e crescem a cada capítulo, representação alusiva da força que ganham quando se juntam e rompem o cerco de silencio, fruto de uma estrutura social repressora que criminaliza a mulher abusada e põe seu drama sob dúvida.
 É uma série muito forte, exige coragem para quem a fez, exige coragem para quem a assiste, exigiu coragem de quem teve coragem de denunciar e investigar, em muitas cenas fechei os olhos e senti repulsa, nada comparado ao drama real dessas mulheres, contado individualmente através de algumas delas. A justiça não foi perfeita, mas ao menos o ídolo foi destronado e já não poderá fazer mais vítimas. A vida pode ser muito pior que a arte e aqui muito além do entretenimento, a teledramaturgia presta um serviço para a sociedade. Quando a violência grita, grite. O silêncio pode criar outros monstros.


terça-feira, 16 de outubro de 2018

O Segundo Sol nasce para todos


A novela Segundo Sol encaminha-se para o final e segue aquecendo seus espectadores nessas últimas semanas. Como um dos elementos estruturantes do folhetim tradicional temos a transformação de personagens más em boas depois de passar por expiações ou também a famosa volta por cima, no melhor estilo “os humilhados serão exaltadados.” Na primeira categoria temos Rochelle e Roberval, na segunda Zefa e Nice.
Rochelle, a infante terrível da Bahia, retrato de uma educação permissiva feita de vontades, mimos e omissões, protagonizou cenas de caráter desprezível como as armações contra a irmã, o desprezo pelos pais e desrespeito por todos que ela julgava inferiores à herdeira do império Ataíde. Agora, vítima da Síndrome de Guillain-Barré (novela prestando papel informativo, merchandising social), começa seu aprendizado pela dor, quem antes ela maltratava são os únicos que lhe estendem à mão e cuidam dela com doação integral. Foi preciso chegar literalmente ao chão para chamar a mãe de mãe e sentar numa cadeira de rodas para ver o mundo de outra perspectiva. Já Roberval começa a se curar de tanto ódio e sede de vingança para novamente merecer o amor de Cacau e no fundo obter o que sempre quis, um lugar na casa dos Ataíde, mas para isso teve que suar a camisa de novo, voltar ás origens.
Zefa e Nice, minhas coadjuvantes preferidas, estão ganhando vez e, sobretudo, voz, tendo coragem para enfrentar seus homens opressores. A cena de Zefa intitulando-se como matriarca da família e esbofeteando Severo (símbolo da decadência burguesa) foi um espetáculo à parte. O seu micropoder antes silencioso, agora ecoa no casarão em franca dissolução, sobre o qual ela tenta manter de pé ao menos os laços afetivos. Nice, através de seu dom, está retemperando sua vida e construindo um novo cardápio de opções ao lado de suas filhas, enquanto Agenor se dissolve na solidão que provocou ao maltratar todos.
Mas nem só de redenção vive a trama, embora o Segundo Sol possa nascer para todos. O casamento de Clovinho e Gorete foi uma comédia musical para ninguém botar defeito, com direito ao Clown vestido apenas com uma bandeja, creio que ninguém resistiu no sofá e deu uma requebrada ao som do hit do verão 2019 Sal na pele, um perfeito clip do axé nos tempos áureos . Quanto ao núcleo principal, a quadrilha de JEC começa a acertar o compasso da justiça final: Valetim que era filho de Karola que agora é filho de Luzia que é mãe de Ícaro que é pai do filho de Rosa que era parceira de Laureta que era irmã de Remi que era filho de Nestor embora pensasse que fosse de Dodô que é casado com Naná que é mãe de Beto que é irmão de Yonan que é pai do filho de Maura, aliás doador (Ufa!), não é fácil acompanhar essa genealogia, mas nós estamos com os DNAs em dias.
Sigamos nos aquecendo com o Segundo Sol que já começa a se por, mas ainda briha com fulgor, ainda mais quando aqueles postais de Salvador nos faz crer que a depender do ângulo a Bahia é a terra de todos os cantos, encantos e axé. Salve, Pai Groa! Que bom seria se o Delegado Viana recebesse um caboclo em plena invasão do terreiro como num romance de Jorge Amado.


terça-feira, 28 de agosto de 2018

Segundo Sol: Precisamos falar sobre Zefa e Nice


A novela Segundo Sol vem trazendo discussões muito interessantes em suas tramas secundárias. É comum nas novelas de João Emanuel Carneiro o rodízio das histórias, lançando luz simultânea em variados núcleos, como naquelas mesas giratórias nas quais variados pratos vão passando em nossa frente. As histórias secundárias não são apenas satélites que giram ao redor do planeta, nesse caso em torno de Beto Falcão e seus dilemas éticos e amorosos, elas ganham corpo próprio e nos fazem até esquecer qual o eixo norteador da novela.
Personagens, a princípio coadjuvantes, vão crescendo e ganhando fôlego ao longo da jornada e despertando inquietações diversas. Sem desmerecer outras interpretações femininas arrebatadoras e hilárias (Quem não ri com Dona Naná e seus dois maridos ou de Gorete recebendo o espírito de Beto?), pois essa é uma narrativa com muitas mulheres fortes vivendo suas dores e delícias. Agora, olhemos com mais atenção para  Zefa e Nice.
Zefa, excelentemente interpretada pela atriz baiana Claudia Di Moura, em seu primeiro papel na televisão, vem, literalmente, roubando a cena. Seu papel é tão complexo que fica impossível rotulá-la. Ora ela é a mãe preta, a aia, a mucama com toda carga de submissão e resquícios da senzala. Ora ela é a cumeeira da casa grande, a única viga que mantém aquele palacete de pé sobre seus andaimes carcomidos, a guardiã dos segredos escusos no fundo das gavetas, a voz conciliadora ou tudo isso ao mesmo tempo. Repleta de fragilidade e força ela nos desperta sentimentos diversos dentro daquele núcleo que representa a ruína da família aristocrática. Seu sacrifício de escolhas duras entre os filhos e sua maternidade dolorosa nos remonta à matriz bíblica.
Ela é a famosa personagem esfíngica. Em nome do amor pelos filhos e pela impossibilidade de sobrevivência num mundo extramuros que lhe é hostil, ela foi suportando e vivendo com sua fé inabalável na família que caminha a passos largos para o precipício. Suas angústias nos colocam diante de uma questão sociológica, qual o seu lugar? Frase típica da submissão que ela sempre repete, “eu sei o meu lugar”, mas para nossa sorte, Zefa, seu lugar cresce a cada capítulo e vem tomando nosso afeto.
Vamos a Nice. Dona Nice, vivida pela talentosa atriz de teatro Kelzy Ecard, que assim como Claudia Di Moura, estreia nas telenovelas com uma atuação de tirar o fôlego. Nice, em princípio, pode ser vista como uma personagem-tipo, ela dá vida a milhões de mulheres oprimidas pelos lares brasileiros. Dona de casa caprichosa, mãe extremada, é completamente anulada em sua individualidade pelo marido opressor, o grande Roberto Bonfim, que nos faz ter asco de Seu Agenor. Aliás, permitam-me uma pausa, já que falei de asco. Agenor e o Delegado Viana, ótimo ator baiano Carlos Betão (grande Sargento Getúlio nos palcos), estão tão bons com seus “machos escrotos” que a gente tem vontade de surrá-los pessoalmente, e é esse o papel do ator, viver tão bem sua personagem a esse ponto de gerar repulsa ou empatia  na plateia ( Aristóteles na veia), diante de um palco ou de qualquer tela.
Voltando a Nice, uma dona de casa, do lar, que sofre suas dores calada e não tem voz para enfrentar o marido, nem mesmo quando esse rejeita e expulsa suas filhas de casa, mas como ela é muito mais que um tipo, sua virada começou. E sua força vem daquilo que ela melhor sabe fazer, cozinhar. Sua cena dizendo sim a Cacau (outra arretada) ou buscando desesperadamente sua imagem diante do espelho ou ainda o primeiro enfrentamento com Agenor, questionando inclusive a sua falta sexual, foram verdadeiros solos de ópera. Nice poderia ter saído das páginas de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles ou Adélia Prado, mas também ser nossas vizinhas e amigas, é uma mulher de carne e osso, mesmo que escrita de tinta.
Continuemos de olho nelas duas e em toda a trama, afinal todos têm direito a um Segundo Sol ou terceiro, ou quarto e Sal na pele, na pele, na pele...


sexta-feira, 17 de agosto de 2018

O tempo não para e o mundo é um museu de grandes novidades



A nova trama das 19:00h, O tempo não para, de autoria de Mario Teixeira, vem se revelando como uma bela novidade para esse horário que geralmente é reservado para comédias e experimentações diversas. O autor tem vasta experiência como colaborador em novelas como A padroeira, O cravo e a rosa, Passione e I Love you Paraisopólis, de programas infantis como Castelo Rá-ti-bum e O sítio do pica-pau amarelo, agora inaugura sua carreira solo  e a vem fazendo com grande competência, haja vista o sucesso dos primeiros capítulos.
Uma família de grande influência e posses na São Paulo do século XIX é congelada durante um naufrágio em 1886, juntamente com seus escravos e seu cachorrinho de estimação. Misteriosamente sobrevivem e despertam desse sono congelante intactos em 2018. O mote que aparentemente é inocente e já explorado no cinema, temos filmes famosos como O de volta para o futuro  ou as menos conhecidas comédias De volta para o Presente e Kate & Leopold com temáticas semelhantes, tem sido conduzido com muita destreza e diálogos milimetricamente elaborados que nos têm rendido boas risadas com as confluências e divergências desses dois brasis de ontem  e de hoje.
Uma das graças principais da trama é o que podemos aproximar da comédia de erros proporcionada pelos diálogos extremamente ricos sobre as diferenças desses mais de cem anos. As expressões linguísticas de ontem e hoje sempre estão gerando situações de ambiguidade que provocam o humor. E uma das funções do humor, presente na máxima de Plauto, Ridendo Castigat Mores, é ser usado como crítica social, papel que a novela tem desempenhado muito bem.
O texto está sendo construído como uma espécie de palimpsesto, o Brasil de hoje está sendo escrito sobre o Brasil de ontem e as camadas dos tempos passados sobrevivem com suas marcas e se confundem com o presente. Já aconteceram cenas excelentes que brincam com essa superposição de tempos e permanência de problemas sociais, como os diálogos entre Dom Sabino e Eliseu sobre impostos e política ou o tratamento dado ao tema da escravidão e seus ecos no presente.
Outra estratégia que chama a atenção é a formação de pares de posições semelhantes de ontem e hoje. Dom Sabino emparelha-se com Eliseu, assim como Marocas com Paulina. Chefes de família de ontem e hoje, moças fortes de ontem e hoje que ocupam classes sociais diferentes de ontem e hoje. As diferenças são muitas, mas as semelhanças no aspecto humano também são muitas, o que dá profundidade ao tom cômico gerado pela descoberta das novidades da contemporaneidade pelos congelados.
A presença insólita dos congelados provoca interesses diversos que vão do amor à cobiça, da amizade ao desejo de conhecimento que gera a glória. O mundo não é mesmo um museu de grandes novidades? Se a trama conseguir continuar seguindo o ritmo desses primeiros dias, parece-me que essa novela será supimpa, deleitosa, aprazível, esplendorosa, garbosa e com Ivete cantando Raul na abertura já é um convite a sentar na namoradeira, na voltaire, no divã ou no sofá diariamente....


quarta-feira, 11 de julho de 2018

O ser tão profundo de Onde nascem os fortes


A série Onde nascem os fortes de George Moura e Sérgio Goldenberg, dupla de roteiristas e cineastas de grande talento, já demonstrado em obras como Amores Roubados, O rebu e O canto da sereia, vem chegando ao seu final com êxito e se mostrou ao longo da trama como uma obra de fôlego, complexidade, escolha de elenco impecável e narrativa instigante O horário das 23:00 h tem algumas vantagens e o fato de ser uma obra fechada também, os autores contam com total liberdade de criação e não sofrem interferências da audiência. Talvez a única queixa que tenhamos a fazer seja o seu tamanho, creio que menos capítulos resolveriam bem a trama sem grandes prejuízos para o enredo.
Um misto de road movie, conflito familiar e drama de vingança se entrelaçam numa história comovente que gira em torno dos filhos gêmeos de Cássia, a visceral mãe coragem de Patrícia Pillar. Maria (Alice Wegmann) e Nonato (Marco Pigossi), em busca de aventuras na natureza com suas bicicletas, saem de Recife e vem para Sertão desbravar trilhas. O fato de serem gêmeos nos põe diante do tema do duplo, mote tão explorado na literatura universal. Nonato com sua curta participação, funcionará ao longo da trama como um espectro a guiar o enredo. O seu desaparecimento muda todo o rumo dessa aventura dos jovens e faz Maria se transformar numa Donzela Guerreira que busca com força desmedida descobrir o que aconteceu com seu irmão. Notemos que ela é uma personagem meio andrógina, frágil e forte, com suas roupas vaporosas e seus cabelos curtos, em determinado momento se vestiu de homem com direito a chapéu de vaqueiro a la Diadorim. Aliás, as referências ao universo rosiano aparecem com força. Sertão esse lugar sem porteira.
O lócus da trama, Sertão, é um microcosmo do Brasil profundo, quase medieval, com leis próprias, ou sem leis, ou leis que derivam ao gosto dos seus representantes como o juiz Ramiro (Fábio Assunção) e o delegado Plínio (Enrique Diaz), tão convincentes em suas atuações que nos provocam asco, ambos beirando a psicopatia. A questão mística também é sintomática desse universo, a figura de Samir, mais uma vez Irandhir Santos mostrando que é um dos melhores atores da nova geração, é uma das grandes personagens da trama. Esse líder espiritual da Comunidade de Lajedo dos Anjos, uma espécie de Terra Prometida, com suas chagas de estigmata ainda sofre na carne e na alma as angústias humanas que precisam ser expiadas eternamente.
Pedro Gouveia (Alexandre Nero, talhado para protagonistas fortes), em principio parecia ser o grande vilão da trama, foi se transmutando ao longo dos capítulos e despertando nossa empatia. É o tipo que perdoamos as falhas morais em nome do seu outro lado, pai amoroso e homem justo. E o que dizer de Ramirinho (Jesuíta Barbosa, outra fera), com sua Shakira do Sertão, uma atuação tão compungente que nos arrebata com sua dor de Assum Preto ou de José Dumont, com seu mítico Zé das Cacimbas?
A trama seria apenas uma história de Crime Castigo, não fosse o amor que esbarrasse no caminho das personagens. Maria/Hermano/Walquíria/ Simplício, Pedro/Rosinete/ Cássia/ Ramiro e outras ligações perigosas. Destaquem-se também as mutações de Rosinete, brilhante Débora Bloch, de mãe sofredora e contrita a uma mulher que busca sua felicidade. A intensidade dos sentimentos que vão da posse ao amor sem reservas transbordam na nossa tela alaranjada como o sol e a poeira das estradas do Sertão.
Outro ponto a destacar na trama é a presença dos fosseis na história, o fato de Sertão ser um sítio arqueológico. Parece-me a grande metáfora da trama, as camadas a escavar do humano que sempre guardam grandes mistérios. O revolver da terra faz o tempo voltar e desencavar segredos insondáveis. Foram muitas cenas memoráveis até então, destaco aqui  uma que comoveu muito, Cássia desenterrando a cova de Nonato com as próprias mãos, encerrando sua busca pelo corpo do filho.
A trama já está chegando ao fim, como bons espectadores aguardemos que a justiça seja feita e os maus punidos, mas fiquemos sempre atentos, pois nem tudo é o que parece nas paragens do Sertão, afinal “o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum!”. Eu conto e vocês botam o ponto...