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quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Segunda Chamada, Segunda Temporada, Segunda Chance: “Eu nunca mais vou te esquecer”

 

A segunda temporada da série Segunda Chamada entrou no ar na Globoplay há poucos dias e já aquece corações e anima reflexões por todo país. Escrita por Carla Faour e Julia Spadaccini, com direção de Joana Jabace, esses novos seis episódios continuam revelando, com tensão dramática e doses de lirismo, o cotidiano de uma escola pública noturna com todas as suas carências e possibilidades.

Dessa vez a escola lida com um problema que tem atingindo o turno da noite em vários cantos do Brasil, o baixo número de matriculas, ou seja, a falta do interesse dos alunos em buscar essa escola por diversas razões pessoais e, sobretudo, sociais. Diante disso, muitos colégios são ameaçados de fechar. A partir desse mote, a Professora Lúcia, magistral Débora Bloch, toma para si a missão de encontrar mais alunos para que a escola não se acabe e que aqueles poucos que estão ali também não desistam.

Movida pela hybris que lhe é característica, ela nuca desiste e não permite ser subjugada pelos limites que lhe impõem, vai buscar em um grupo de moradores em situação de rua seus novos alunos. E, para a surpresa, repulsa e espanto de muitos, ela consegue incluir aquelas pessoas invisíveis na lista da Segunda Chamada, da Segunda Chance, da escola e da vida. Esse grupo, liderado por Hélio (Ângelo Antônio com sua força frágil que já conhecemos e adoramos), o sol daquelas almas, vai protagonizar grandes cenas dessa temporada. Por trás daqueles corpos sujos e rejeitados há uma profusão de histórias de vida que merecem ser ouvidas. Aquelas pessoas sem nome, sem endereço, sem documentos, terão seu espaço na Carolina Maria de Jesus.

Outros conflitos também são encenados nas salas de aula, preconceitos de toda ordem, contra o índio, contra o nordestino, contra o idoso, contra os novos alunos que não têm casa. Percebemos que o grande conteúdo daquela escola não está no Português de Lúcia, na Matemática de Eliete, na História de Sônia ou nas Artes de Marco André, mas nas múltiplas intervenções que os mestres fazem para que a maior lição seja aprendida, a convivência com o outro. A alteridade é o conteúdo primordial que atravessa essa trama.

Não poderia falar em idoso, sem destacar o papel de seu Gersinho, vivido de corpo e alma pelo veterano Moacyr Franco, sempre habituados a vê-lo nos fazer rir, tomamos um susto com a grandeza dessa personagem que sofre do Mal Alzheimer e quer realizar o sonho de terminar seus estudos antes que toda memória se esvaia. E olha, Carla e Júlia, se vocês não o botassem para cantar, eu ia ficar frustrada, que cena fenomenal. A música será usada como recurso mnemônico em um momento crucial, “ eu nunca mais vou te esquecer”...

Como em toda boa trama, há de ter os elementos folhetinescos, amor, morte, sonhos, segredos do passado, drama e afins. Sem dúvidas todos esses desfilaram em nossa tela ou em nossa telinha nos fazendo chorar de riso e de dor. O casal Sônia e Marco André (Hermila Guedes e Silvio Guindane, obrigada!) vai viver seu amor difícil com direito ao céu e o inferno em poucas horas sob a voz de Edith Piaf que já é suficiente para nos comover. Mais não digo...E por falar em música, a trilha sonora é um espetáculo à parte.

Como professora de Literatura preciso elogiar as aulas de Lúcia, a sequência na qual os alunos leem Grande Sertão: Veredas é belíssima. Ela alfabetizando Dona Néia é comovente, enquanto  mostra o A, Ana Maria Braga aparece na tela da pequena TV e é com música que a aluna avança alegremente em sua alfabetização. Aquela mulher que saber ler a vida, lerá também as letras e os livros que ela vende agora lhes pertencerão.  Método Paulo Freire na veia. Além, obviamente, das aulas e dos exercícios de Teatro de Marcos André que faz com que os alunos sejam protagonistas de suas tramas seja qual for o texto.

Ainda é preciso destacar quantas outras discussões contemporâneas e eternas são trazidas para o chão da escola, a pobreza menstrual, o alcoolismo, os subempregos, a moradia, a queima dos livros, a homofobia, a violência contra a mulher sob várias formas (Leandro!!!!), a acessibilidade, o difícil papel de diretor e administrar múltiplos problemas diariamente (Paulo Gorgulho, nota dez com louvor e distinção), o descaso das autoridades com a educação, representado pela brilhante alegoria da rachadura do prédio, não adianta remendos, “é estrutural”, mas mesmo assim como diz Lúcia “Educar não é sobre vencer, é sobre resistir, é sobre acreditar que as coisas podem mudar.” E todos os dias milhares de Lúcias saem de suas casas com o sol brilhando e voltam a noite exaustas, mas cientes de que fizeram algo por alguém... No reino da ficção é possível dizer muitas verdades...E Apesar de vocês, amanhã há de ser outro dia...

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Nos tempos do Imperador, uma dupla saudação! Ave, Pedro! Ave, Ficção!

 

A novela Nos tempos do Imperador de Alessandro Marson e Thereza Falcão é saudada com alegria pelos telespectadores ávidos por uma nova história na nossa televisão. Vale lembrar que desde 2020, com a suspensão das gravações pela pandemia, é a primeira trama completamente inédita, uma vez que Amor de Mãe e Salve-se quem puder retornaram para serem concluídas.

Nós, os noveleiros, não estamos felizes só por uma novidade no ar, só por mais um “Era uma vez” tão esperado, o que já nos contentaria, mas por se tratar de uma trama histórica que retrata um período importantíssimo do nosso país. Nos tempos do Imperador vem somar pontos na nossa tradição de produzir novelas de época de alta qualidade e que marcam nossa teledramaturgia como Escrava Isaura, Direito de Amar, Sinhá Moça, Força de um desejo e Lado a Lado dentre tantas outras.

Como uma espécie de parte II de Novo Mundo, os autores voltam para continuar a sucessão de Dom Pedro I na figura de seu filho Dom Pedro II. Com os pés fincados no real, a novela, obviamente, não se furta do seu papel folhetinesco e de seu compromisso único com a ficção, mas nos oferece uma boa dose de História. Misturando as esferas propostas por Aristóteles (Res Factae e Res Fictae), a narrativa tem tudo para acertar em cheio ao dosar bem esses dois universos.  Se for História demais, tenderá ao documentário, se for ficção demais, trairá o tempo citado no título.

Por falar em título, fica claro que se trata de uma novela de personagem, boa parte circula em torno de Pedro II, vivido pelo grande ator Selton Mello. Todas as outras linhas, de alguma forma, convergem para ele. Sua centralidade é bastante simbólica e construída com os pinceis da ficção que ampliam e retocam sua figura pública já conhecida. Ele é o homem ilustrado que lê Goethe, cita Dante e tem Victor Hugo como seu autor preferido, citações nada ingênuas e que dão a argamassa de seus pensamentos. Ele é o cientista, o colecionador, o fotógrafo, o monarca que aceita ideias diferentes, como consentir que um professor republicano dê aulas para suas filhas, mas não consegue frear tantos problemas. Características que compõem esse homem que não pôde escolher seu destino e há de decidir sobre o destino de um povo.

O que tem me chamado mais atenção até o momento é justamente os dramas íntimos do Imperador e de seus pares, ou seja, o homem e a mulher por baixo da coroa e do cetro, com todas as suas fragilidades, angústias e dúvidas. Sabatella é sempre excelente em portar o elemento trágico em suas atuações. A essa altura, ela já mostrou saber da ameaça que entrou em seu palácio, a Condessa de Barral. Ao que tudo indica Ximenes também protagonizará a trama com suas atitudes de vanguarda e por ser a outra vértice do famoso triângulo amoroso, se é que se pode falar de amor nos casamentos reais. Os olhares desse trio se mostraram eloquentes nessa primeira semana, dizendo muito do que virá.

Para além do Paço, temos uma cidade que pulsa com todas as suas camadas. Golpe de mestre dos autores trazer à luz a Pequena África com tudo que ela representa num país escravocrata, uma espécie de espaço utópico, um pequeno território onde os negros exerciam sua “cidadania” e que é desconhecido da maioria. Ao ser apresentada para Jorge/ Samuel pelo outro rei da trama, o rei negro, ele achou estar no céu. Não sem muita luta e sangue, meu caro jovem, a exemplo dos malês que ele acompanhou.

 E chegamos em Jorge/ Samuel, um outro protagonista, uma espécie de espelhamento do mundo de cima, que viverá as agruras de um amor proibido por sua Pilar, a jovem que quer mudar sua sina ao fugir de um casamento arranjado por seu pai. A menina tem força de heroína, filha do coronel vivido por José Dummont (muito bom vê-lo nessa condição social), metonímia de todo conservadorismo e interesses escusos (Moça só sai de casa ou casada ou morta!). Temos que destacar o núcleo dos coronéis baianos, liderados por Tonico Rocha (Olha o Imperador em outro Império! Dá-lhe Nero! E ainda levou Josué para o Paraguai!), um típico representante das elites do XIX, parece ter saído da lavra machadiana. Ele daria um ótimo primo de Brás Cubas. São muitas personagens e muitos brasis ainda a serem mostrados.

No bom estilo histórias cruzadas, todos esses brasis se misturam em busca de uma ideia de nação que ainda tateia sob as luzes difusas dos lampiões e das chamas das  fazendas do Recôncavo e não sabe o que fazer com tantos problemas internos e externos. E não podemos esquecer daquela herança maldita do tempo de Pedro I, ou de Novo Mundo, Licurgo e Germana, tão grotescos que nos chocam. Alegorias de um espírito atrasado e zombeteiro, espíritos de porco indomáveis. duas outras alminhas fantasmagóricas a nos assombrar, como aquela de Viva o povo brasileiro.

Estou confiante que teremos boas surpresas embaladas por uma trilha sonora sensacional, cenários, figurinos e fotografias de encher os olhos...E antes que venham as réplicas...Nunca foi fácil falar sobre o Brasil e sobre nosso passado tão incômodo e ainda tão presente nos nossos dias...

sábado, 10 de abril de 2021

Amor de MÃE: A ficção atravessada pela inverossimilhança da vida

 

A novela Amor de Mãe, que ontem se findou, será marcada pelo atravessamento surreal da pandemia em nossas vidas e seus desdobramentos na ficção. Iniciada no final de novembro de 2019, foi interrompida em março de 2020, retomada um ano depois para ser concluída da forma mais breve possível em razão das circunstâncias impostas para sua gravação e que consagra Manuela Dias, sua jovem autora, no time de ouro das nossas novelistas na esteira de Janete Clair, Glória Perez e cia.

             A novela é uma obra aberta e vai sendo feita ao sabor de diversas variáveis. Os autores sabem como começam seus primeiros capítulos, mas só têm uma vaga ideia de como terminará. Nessas variáveis entram, por exemplo, a aceitação do público que faz uma subtrama crescer ou minguar, uma personagem secundária se destacar ou as próprias intempéries da vida, como a doença ou morte de um ator, mudar o rumo, mas com a variável pandemia, ninguém, nem na arte, nem na vida, podia prever. E foi esse o desafio que se apresentou e que atravessou a novela das 21h, das 9h que já foi das 8h, a mais vista e desejada da nossa TV. E aguardamos um ano para ter o desfecho do mote principal, o reencontro de Lurdes com Domênico, seu filho vendido aos dois anos de idade. Fato central que fazia com que as outras duas protagonistas, Telma e Vitória, orbitassem ao seu redor até que suas histórias se cruzassem.

A grande cena do encontro de Lurdes com Domênico/Danilo já nasceu antológica, certamente entrará para a galeria da nossa teledramaturgia como uma das mais belas e emocionantes. O momento tão esperado foi marcado por diversos símbolos potentes, desde o altar possível construído por Lurdes para continuar rezando por seus filhos, à revelação da Graça da saída do cativeiro pela Pomba, formando uma trindade nova Mãe, Filho e Espirito Santo.

O encontro na estrada merece nossa atenção especial, a mãe que buscou o filho por 27 anos é que foi encontrada por ele. Sem saber quem estava procurando, o filho achou aquela que já estava velando por ele. A estrada empoeirada, semelhante ao espaço onde toda a busca começou, volta à cena, acrescida de trilhos abandonados, uma metáfora do curso de uma vida que foi interrompido e, no momento magistral do abraço e do reconhecimento através do cheiro na cabeça do filho, a mesma estrada deu ré para recuperar o tempo do amor perdido. Além dos símbolos, a interpretação dos atores foi visceral, Lurdes/Regina Casé tornou-se, nesse momento de desalento que vivemos, uma espécie de mãe arquetípica de todos nós (“Sua mãe está aqui” seu brado retumbante). Já Domênico/Chay Sued honrou toda a espera e a angustiada sequência da procura com a maestria de um grande ator que fala através dos olhares, dos silêncios, dos soluços e do texto forte (Onde estava Deus?) que brotava de sua voz rouca, típica das emoções que nos atravessam a alma. E a música Onde estará o meu amor?,  de Chico Cezar cantada por Maria Bethânia, coroou o momento ( A noite findou e o sol rebrilhou sobre eles).

Daí em diante a alegria dos reencontros com os filhos/irmãos, naquela grande família cheia de problemas, mas unida nas horas boas e ruins. Ao chegar no quintal da casa de sua nova mãe, o filho reencontrado e tentando matar Telma dentro dele, pergunta para Lurdes sobre o ninho do passarinho, outra imagem do aconchego que teria naquela casa e sobre o que fazer com aquele sentimento que lhe esmagava o peito. Dentre uma das falas de Lurdes nesse reencontro ela disse: “O tempo é rei, o tempo cura tudo, não existe família perfeita, existe família unida”. Aliás, as frases sábias de Lurdes mereciam um compêndio, filosofia condensada dessa mãe tão brasileira que nos faz rir e chorar!

Ainda vale destacar outras simbologias interessantes nessa retomada da trama. A psicopatia revelada em Telma foi acompanhada das imagens internas de sua casa, corredores, portas, gavetas, pastas, papeis guardados, que aludem aos seus labirintos internos. Adriana Esteves brilha em qualquer personagem na comédia ou no drama ela reina soberana.

 A morte de Álvaro, o gigante Irandhir Santos, de tão boa atuação que a gente ainda sente empatia por ele, como ele mesmo disse "sem arqui-inimigo não tem herói", também foi rica em imagens. Se arrastou até a cadeira da presidência, marca de sua ambição, e morreu porque foi buscar mais dinheiro que como já fora dito era o móvel de sua vida, poço de seus vícios e no amor por Verena sua única virtude. Ele era a marca da corrupção predadora na trama. Sua construção nos remete à máfia italiana com seus ternos elegantes e gostos refinados, inclusive sua trilha sonora é a ópera Mio Babbino Caro de Puccini. Através dele, tivemos Davi, o quixotesco ativista ambiental, que teve um belo fim, discursando na ONU, gotas de esperança que a ficção nos dá.

Pela própria economia narrativa e penso que pela necessidade de tratar de diversos temas em pouco tempo, houve algumas passagens que julgo desnecessárias, mal resolvidas ou que traíram a verossimilhança buscada.  A luta corporal e o discurso de Vitória com o agressor da esposa no meio do mato, a morte de Lucas, a saída dos pacientes da UTI em aparência tão saudável, a inserção da mãe biológica de Tiago, mas paro aqui, porque os acertos foram bem maiores e não abalaram em nada o brilho do final.

Sem esquecer de personagens que cresceram muito e se modificaram durante a trama como Penha e Leilinha Pé na cova Gratiluz que foram se destacando até formar o casal de contraventoras simpáticas que acabamos perdoando ou Lídia, que encontrou no verdadeiro amor por um homem simples, uma razão para recomeçar sem perder o charme o esnobismo dos herdeiros. Aliás, Magno merecia a menção honrosa Amor de Pai, de filho e de irmão. Sandro, outro exemplo de força interpretativa e caráter ambíguo, oscilando entre seus dois mundos, opta pelo segundo, sem deixar para trás os amigos antigos.

O final... As três protagonistas juntas no leito de morte de Telma, discutindo suas culpas e seus perdões e a consciência da mão do destino que age impiedosamente sobre nós surgiu em diversos diálogos (se Domênico não fosse vendido, não existiria Camila, se Sandro não fosse o primeiro a ser vendido... E  aí por diante na estrada sinuosa da vida). E o perdão de Danilo que foi ministrar a extrema-unção, o perdão para que Telma pudesse partir. Como em sua fala que bom seria se as mães não errassem nunca e fossem perfeitas, mas como isso não é possível, ficamos com Lurdes marcando os copos com esmalte para seus filhos e todos juntos se sacaneando com todo respeito, como ocorre nos encontros das famílias imperfeitas e que se amam...


Teria muito mais a dizer tão grande era o meu desejo de voltar às Entretelas em um ano que só tivemos reprises em meio à barbárie lá fora. Não posso terminar sem falar do discurso esperançoso de Camila, Jéssica Ellen excelente em seu carrossel de emoções e provas, se Lurdes é nossa Mãe arquetípica, ela é a nossa Professora arquetípica. A que luta todos os dias por uma educação melhor e crê no seu poder de transformação mesmo em contextos tão adversos... Sim! A ficção também pode nos ensinar muita coisa e nos salvar por alguns momentos da brutalidade do cotidiano... Pena que foi tão rápido, mas o suficiente para ser inesquecível. E, assim como na novela, terminemos com Guimarães Rosa, pela boca do nosso Riobaldo, porque a vida é travessia e exige da gente coragem:

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.

 

Sigamos segunda-feira com Império. Na falta do novo, redescobriremos a magia do já visto...

 

 

 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Amor e sorte, primeiro episódio: Outro “doce” de mãe!

 

                                                                         Para minha amiga Zélia Martins

 

Umas das palavras de ordem, já gastas pelos seis meses de uso que vem perdurando a pandemia, e que nos condenou, dentre outros sofrimentos, ao isolamento social, é o verbo Reiventar.  Mudanças de hábitos, de regime de trabalho, de consumo, de lazer e de formas de se produzir novos produtos culturais enquanto vemos gráficos e reportagens que nos deixam tensos todos os dias e noites. Assim, a teledramaturgia, pão poético diário da maioria dos brasileiros, também precisou pensar em outras formas para continuar levando os fios da ficção para nossas casas.  

Juntando todos esses elementos, uma forma de contornar essa sombra foi a genial ideia de Jorge Furtado de fazer uma série sobre confinados reais e seus sabores e dissabores, com tramas muito semelhantes ao que muita gente está experimentando. Famílias reais de atores fizeram de suas casas palco para essa novidade deliciosa que nos traz um sopro de alegria, mostrando que a arte é uma danada e que dá seu jeito sempre que possível.

Assim, fomos presenteados ontem, com um episódio belíssimo que retrata as agruras da convivência forçada entre mãe e filha, com naturezas e pontos de vista completamente diferentes sobre a vida, “esquerda carnívora” e “liberalzinha vegetariana”, segundo elas mesmas em meio a uma discussão acalorada sobre matar um frango e demitir funcionários. Briga que nos rendeu uma das aventuras mais cômicas do episódio, a captura da penosa que não se entregou facilmente ao abate, teimosa assim como as duas protagonistas.

É sabido que todas as famílias têm conflitos, mas espera-se de uma mãe de 90 anos e uma única filha de meia idade, executiva bem sucedida, uma relação pacífica ou ao menos cordial, ledo engano. Gilda e Lúcia são boas representantes da bipolarização do nosso país que ficou nas entrelinhas desse programa de estreia. Como também da condição dos nossos aposentados que não podem pagar um plano de saúde e outras despesas e precisam que sua renda seja completada pelos filhos. Questões nem sempre simples ou que também resultam em papéis invertidos, quando a aposentadoria dos velhos é a fonte de sustento. No plano da frente, uma deliciosa comédia familiar, no plano do fundo, um painel do país.

Um dos topos mais presentes na Literatura Ocidental, para utilizar a terminologia de Ernest Curtius no seu clássico Literatura europeia e idade média latina, é o da velhice tranquila e sábia, tema já presente em Sêneca e Cicero, sábios da antiguidade. Dona Gilda contraria toda essa representação. Ativa, impulsiva, hedonista, ranzinza, boemia, dentre outras qualidades ou defeitos a depender da medida, deu muito trabalho para sua filha Lúcia, disciplinada, focada, responsável, séria, saudável (com a ajuda de um ansioliticozinho, é claro), também qualidades ou defeitos a depender da medida. E a convivência das duas isoladas em um sítio onde, de fato, Fernandona e Fernandinha, cada vez mais parecida com a mãe, estavam ilhadas com a família, não foi nada fácil.

Mas, de volta à convivência, vem de volta o amor que as unia, as lembranças, as fotos, os risos, as estrelas, a boa mesa com o frango assado e uma boa taça de vinho (pode ser em copo de requeijão também, o que vale mesmo é a companhia), elementos que aproximam quem se quer bem e aparam arestas das diferenças. E elas já não queriam que aqueles dias acabassem, era preciso prolongar o prazer e a presença de ambas. Gilda toma suas providências cortando, literalmente, a conexão com  o mundo lá fora, outra cena incrível e muito simbólica. E como uma boa obra de arte pode ser vivificante como aquela taça de vinho, ela nos brindou com a esperança da notícia que todos esperam em todos os lares, a vacina chegará, e a receberemos de braços e abraços abertos, mas sem esquecer daqueles que se foram, porque assim é a vida, agridoce como as relações humanas em qualquer tempo... Que venham os casais nessa nova Comédia da Vida Privada... Amor é Sorte!

quinta-feira, 21 de maio de 2020

This is us: Sim, esses somos nós também



Para Denison Monteiro que me indicou e para minhas sobrinhas Maria Victória e Renata que também  se apaixonaram  por essa história




A série This is us, em exibição na Amazon prime, tem todos os ingredientes de uma boa história. História daquelas que te prendem do começo ao fim e deixam ao final de cada episódio o desejo incontrolável de continuar acompanhando a trama. As boas narrativas não são boas só pelo que nos contam, mas, sobretudo, como elas nos contam. O famoso casamento feliz entre forma e conteúdo que nem todos os livros ou filmes alcançam. E essa comunhão entre forma e conteúdo é alcançada com maestria por essa belíssima série dirigida por Dan Fogelman que acompanha o cotidiano de uma família americana por 04 décadas mostrando como o passado interfere no presente. Aí está um dos seus pontos mais altos, a narração simultânea dos dois tempos.
As histórias das famílias com todos os seus momentos de drama e comédia é um pouco a história de todos nós. Umas famílias pendendo mais para a dor outras para o riso, equilibrando o amargo do limão e o doce da limonada como ensina Dr. K.  É claro que todas elas têm boas histórias para contar, segredos a esconder, fatos para lembrar e outros tantos para esquecer nas gavetas, nas cartas, nos retratos esquecidos. Assim são os Pearson, uma família de Pittsburgh, formada pelo casal Jack (Milo Ventimiglia) e Rebecca (Mandy Moore) e pelos trigêmeos Kevin (Justin Hartley), Kate (Chrissy Metze), Randall ( Sterling k. Brown).
O fato desencadeador da trama é o nascimento dos trigêmeos. Nesse dia um dos bebês morre (Kily) e nesse mesmo instante um recém-nascido é abandonado no Corpo de Bombeiros e levado ao hospital. Tal acaso, ou não, determinará a formação daquela família que adota o bebê em substituição ao que morreu (temos vários acasos na série que mudam radicalmente os destinos das personagens). Assim temos os trigêmeos iguais e diferentes, aceitos e rejeitados, some-se o detalhe que será um dos motores da história, que o menino adotado é negro.
É notável o esforço dos pais para criá-los com igual amor e oportunidades e o esforço hercúleo para dar tratamento individualizado a cada um deles, atentos para intervir ao menor problema. O casal Jack e Bec, vivem uma das mais belas histórias de amor que já vi, ambos vem de lares problemáticos e desejam dar aos filhos uma infância perfeita e parecem chegar bem perto disto, não fossem os pontos de vista e percepção de cada um dos filhos sobre os mesmos fatos vivenciados. E chega uma hora em que cada personalidade começa a se mostrar e exigir suas diferenças, como na festa de dez anos deles quando as crianças pedem festas individuais com os temas da sua escolha. E na adolescência então, as diferenças e os conflitos afloram. Teremos o estudioso/inseguro Randall, o galã/fútil Kevin e a carente Kate, sofrendo com a sua luta constante contra a obesidade.
No presente, temos um Randall casado com Beth, outra bela história de amor, pai de duas filhas, um executivo bem sucedido morando numa bela casa, só ele ficou em Pittsburgh. Kevin, um ator frustrado de um seriado de TV em busca de um lugar ao sol no cinema e Katy, como empresária/babá do irmão e lutando com seus fantasmas, mas que encontrará seu grande amor nos braços e nos sorrisos do incrível Toby, outra grande figura. Sabemos que o pai já faleceu há anos, mas só saberemos bem depois como foi a sua morte, não darei spoiler, vale ver  a cena.
Outro fato marcante da trama é a busca de Randall por seu pai biológico e ele o encontra para nossa felicidade.  William será uma das melhores personagens de toda a série. Aquele senhor, poeta, músico, maltrapilho, ex-viciado, em estado terminal, tem tanto a nos ensinar que nos surpreende em cada fala e gesto e você vai se apaixonar por ele também, assim como por seu filho e toda a sua família. Aliás, outro ponto alto da trama é a chance que foi dada para que cada personagem, principal ou secundária, se desenvolva plenamente e tenha seus próprios conflitos a elaborar diante de nossos olhos, tais como Tio Nick, Doutor K, Shauna, Malic e tantos outros.
Não seria capaz de elencar  quais cenas gosto mais, de tantas que chorei muito e de outras que ri demais...Há cenas de rara beleza como naquela em que Kevin larga o seu lançamento para socorrer o irmão em uma crise de pânico, quando Kevin vai ao Vietnã em busca da memória do pai e quando larga tudo para resgatar seu Tio Nick, o Alzheimer de Rebecca, as festas do Dia de Ação de Graças, os telefonemas a três, o casamento e formatura de Kate,  adoção de Deja, outra personagem de muita força.  Kevin que era considerado o mais frívolo dos três vai amadurecendo  e se transformando durante as décadas.
 Os Pearson e todos aqueles que têm a sorte de viver com eles  vão reelaborando seu passado para enfrentar o presente em meio a tantos temas importantes como racismo, música, cinema, guerra, sonhos, adoção, deficiências, drogas, alcoolismo, orientação sexual, amizade e fraternidade e muito, muito amor, pois essa família é  intensa e quente como são as grandes histórias de amor. Esses são eles, esses podemos ser nós também...This is us entra na lista de melhores narrativas da minha vida...E por falar em boas histórias de afetos já viram Modern Love?


sábado, 4 de abril de 2020

Anne com E: Amor aos livros e à vida


                                                            Para Fabíola Vilas Boas e seu amor à leitura

Há um ditado africano que diz que é preciso toda uma aldeia para educar uma criança. Na série Anne com E, a protagonista inverte essa lição ancestral, ela é uma criança que educa toda uma aldeia. Anne with an E é uma série de televisão canadense baseada no livro de 1908, Anne de Green Gables, de Lucy Maud Montgomery e adaptada pela escritora e produtora vencedora do Emmy, Moira Walley-Beckett, que agora é exibida pela Netflix com grande sucesso de público.
Eu, ainda resistente ao tempo das séries, dediquei algumas ávidas horas para assistir a essa genial história da menina ruiva e sardenta que se ainda não roubou, roubará seu coração. O drama das órfãs é um tema comum na literatura e no cinema quem não se lembra de Poliana, de Heide ou de outra Annie, filme  de sucesso  nos anos 80? Despertando sempre nossa compaixão, o sofrimento delas é mitigado por doses de fofura e sabedoria, sabedoria que vai transformando a todos à sua volta.
Com nossa Anne Shirley não é diferente, mas então o que ela tem de tão especial? A história muito bem construída em três temporadas (até então, tomara venham outras) aproxima-se dos romances de formação, cobre um período da vida de Anne que vai do final da infância, inicio da adolescência e começo da vida adulta. Além disso, mistura muitos gêneros narrativos tais como aventura, romance, suspense e filme de época ao contar as várias fases de Anne, eixo absolutamente central da trama. Infância sofrida entre um orfanato sombrio e passagens por algumas famílias que exploravam seus serviços sem piedade. Começo da adolescência já com sua nova família, onde enfim depois de muitas provas tem um lar e um nome ao lado de dois velhos irmãos taciturnos que vão se colorindo com a sua radiante presença e o nascer de uma jovem adulta, universitária e amada por seu cavalheiro Gilbert (com ares de Huckleberry Finn).
O aprendizado doloroso da infância talvez seja um dos pontos altos da série e que dá notas de drama a algumas partes da narrativa. Narrado em flashbacks, ficamos sabendo de todo sofrimento da menina até os 12 anos, entre rejeições múltiplas no orfanato e maus-tratos nas famílias “adotivas”. O único aspecto luminoso dessa fase são os livros que lê. Como uma náufraga ela se agarra às histórias e passa a habitá-las e nutre um sentimento afetivo pelas palavras. Tal prática leitora será o diferencial de toda sua vida posterior. Muito além de uma leitura meramente decodificadora (alfabetização), ela alcança aquilo que chamamos de letramento, ao dar significado a tudo que lê (ter lido um manual de incêndio faz com que ela salve uma família das chamas) e, o mais importante, traz a fantasia para dar brilho para sua vida sofrida, preenche os espaços da falta com a magia da imaginação.
Outro ponto alto da trama é o desenvolvimento das personagens, todas têm espaço na série. Do seu núcleo familiar formado pelos irmãos solteirões e reservados, à vizinha bisbilhoteira, aos vizinhos ricos, todos carregam complexidade e ambiguidade. Todavia é na escola que o palco da galeria humana melhor se apresenta, ali todos os tipos sociais sentam naquelas cadeiras, como numa espécie de microcosmo da sociedade. Há um desfile de meninos e meninas com todas as nuances possíveis de comportamento que vai do abjeto ao sublime. Além dos dois professores que passam pela classe. Um puro vício,  outra pura virtude. Um que estagna e persegue,  outra que educa e transforma.
Não podemos deixar de mencionar os aspectos sociais presentes na trama que se passa no interior do Canadá no século XIX. Destaquemos aí o preconceito racial na figura de Bash (personagem gigante), o sócio de Gilbert, a colonização dos índios muito bem representada pelo drama da escolarização da pequena indígena e do sofrimento de sua família. Além de muitos outros temas que povoam a tela como a homoafetividade de Tia Josephine e do jovem Cole, almas que se encontram através da amizade de Anne. A ambição que faz com todos fiquem cegos pelo ouro de tolo e mais uma vez salvos pelas astúcias de nossa menina que não aprendeu só com os livros, mas muito também com as experiências da vida, absorvendo cada lição.
Além disso, a série nos reserva cenas belas e fortes como a da amizade de Anne e Diana (o chá delas é um espetáculo), a despedida da esposa de Bash, a descoberta das origens de Anne, o amor de Mathew, as festas na casa de Josephine, as mudanças na vida dos alunos, o jornal da escola, as reuniões das senhoras dentre tantas outras passagens que merecem nossa atenção.
Segundo Anne, com E, e a repetição do seu nome é uma forma de afirmar sua identidade sempre em perigo, “Grandes palavras são necessárias para expressar grandes ideias”, vou parando por aqui porque acho que não há palavras para descrever essa série incontornável, antes de tudo uma história de amor aos livros, uma história de amor à vida...Uma bela pedida para esses tempos de quarentena...




sexta-feira, 27 de março de 2020

Éramos Seis: Um sopro novo na casa da Avenida Angélica

                                                                        Para Aleilton Fonseca e seu amor à boa ficção...

O romance Éramos Seis, de Maria José Dupré, entra para a história da literatura e teledramaturgia brasileira (incluindo uma radionovela) como o livro que sofreu mais adaptações para a televisão. A vida de Dona Lola e sua família foi novamente reescrita para essa nova versão que hoje se findou poeticamente no horário das 18:00h. O romance publicado pela primeira  vez em 1942 conta a história de uma família e sua casa na capital paulista durante 28 anos, entre 1914 e 1942, período compreendido entre as duas Grandes Guerras e suas mudanças sociais vertiginosas. Meu primeiro contato com o livro foi através de sua publicação pela Série Vaga-Lume nos anos 80. Hoje acho que foi uma erro sua inclusão nessa coleção, pois não se trata de um livro juvenil, mas que bom que muitos jovens o leram...
No romance vale destacar o protagonismo da casa, que ganha estatuto de personagem, elemento ressaltado na abertura da novela. Durante anos a família de Júlio e Lola luta para quitar aquela casa, sonho alimentado por anos e objeto de muita discussão e desavença entre o casal. Sacrifícios imensos foram feitos para o pagamento da mesma, só concretizado após a morte do pai e de Carlos, o sangue desse foi parte do pagamento final.
O remake atual, escrito por Ângela Chaves, trouxe muitas novidades para os habitantes da casa da Avenida Angélica, para seus vizinhos, agregados e todos os núcleos da trama. A autora ampliou vários núcleos, costurou temas novos como feminismo, racismo, arte-terapia e desenvolveu com densidade personagens que apenas foram citados no livro ou criou mais figuras e histórias paralelas que enriqueceram a narrativa. A exemplo de Zeca,  marido de Olga, que é construído de leve no livro e foi ampliando de forma incrível na tela com o talento de Eduardo Sterblitch e sua amada, a excelente Maria Eduarda de Carvalho, rendendo belas cenas de humor e amor em Piratininga. Aliás o sítio cresceu bastante nessa versão com  as peraltices das crianças,  a passagem de Justina e as graças de Tia Candoca (maravilhosa Camila Amado) que ganhou ao final dois prêmios: um namorado  e um batom vermelho.
Creio que o mais interessante nessa versão foi a possibilidade de reescrever outros finais, inclusive com a presença de três Lolas em cena (Glória Pires, Irene Ravache e Nicete Bruno) levando em consideração a potência do nosso tempo. O final feliz de Lola ao lado de Afonso foi tecido com as tintas da delicadeza de um amor maduro que teve a paciência da espera e da compreensão como ingredientes, simbolizada pela Carta de São Paulo aos Corintos na cerimônia do casamento.  Foi bonito ver os dois juntos, pensando por um momento na felicidade deles antes das dos filhos. Outro final reescrito com belas tintas foi o de Clotilde, tão sofrida no romance, teve sua felicidade reescrita ao lado do Sr. Almeida.. Além do sucesso de Durvalina como Cantora do Rádio e o encontro com seu filho.
A novela ainda foi muito feliz em trazer para trama novos olhares para as discussões políticas e sociais que permearam a novela através de vários fatos históricos que atravessam a vida dos personagens. Tivemos nessa última semana a prisão de Lúcio (Jhona Burjack, revelação de jovem ator num papel de muita dignidade) numa manifestação que homenageava Rosa de Luxemburgo, tal cena foi motivo para trazer à tona termos como Liberdade de Expressão, Comunismo, Fascismo, palavras que voltaram ao nosso palco, infelizmente em arenas  de bipolaridade feroz, dentre outros momentos que o texto sutilmente dialogava com o calor da hora de hoje.
O capítulo final foi de uma beleza ímpar, todos irmanados na Ceia de Natal na casa de Dona Lola, que novamente voltou às suas mãos. Em lugar da solidão do romance onde Éramos Seis e só restava ela e suas lembranças melancólicas, a novela nos brindou com um Éramos Muitos em torno da mesa, alimentando nossa esperança por dias melhores junto aos nossos afetos nos deliciando com as rabanadas douradas...



domingo, 1 de março de 2020

Por Amor de mãe: para além do maniqueísmo


                              

A novela Amor de mãe tem arrebatado um público ainda fiel ao gênero folhetinesco e alavancado a audiência do horário já não tão nobre assim, mas ainda muito respeitado pelos telespectadores. Com as mudanças ocasionadas pelas redes sociais, já não precisamos esperar o dia seguinte para nas rodas de conversa no trabalho, nas filas do supermercado ou no transporte público  ouvir o que se comenta sobre o capítulo do dia anterior. Agora em tempo real, através da chamada “segunda tela” ou da “social tv” já sabemos o termômetro do capítulo no calor da hora, sejam nos grupos de watts app, sejam nos memes que inundam as redes dentre outros mecanismos do nosso tempo “esquizosimultâneo”, no qual nunca fazemos uma coisa só.

Todavia, para além das formas de partilha da contemporaneidade, o que gostamos mesmo, desde tempos imemoriais, é de uma boa história, com personagens instigantes e cenas que nos emocionam e nesse quesito Amor de mãe tem se destacado positivamente. O sucesso de uma personagem, faz com que ela vire metonímia da novela, assim foi um dia com a novela de Catarina, a novela de Carminha, a novela de Félix e agora com a novela de Lurdes. Lurdes, uma espécie de mãe de todos nós, tem roubado todas as cenas da trama e transitado em praticamente todos os núcleos. A sua força é incrível. Seu texto, caracterização e gestual nos faz morrer de amor por ela, aliás a direção de arte da novela merece prêmio, creio que nunca uma casa de pobre foi tão bem detalhada como a de Lurdes (em eterna obra e feita de remendos com seus objetos que são a cara de um Brasil que muitos conhecem bem).

Voltando ao tema central da novela, o amor incondicional das mães, temos muitas nuances em cena. Há limites para esse amor que beira o maquiavelismo como o de Telma com seus segredos inconfessáveis? Lurdes para ser uma boa mãe para seus filhos deixou para traz a sua mãe, aceitamos? Abandonar um bebê por não poder criá-lo imaginando que terá melhor sorte como a mãe de Camila é compreensível?

Não devemos julgar moralmente a literatura, sim novela é literatura em outro suporte, nos cabe compreender que aquilo é plausível na trama (necessidade de verossimilhança) e a trama é muito bem costurada, aliás todos fios se cruzam na vida das três protagonistas e o tapete é tão bem tecido que dá espaço para todas as personagens secundárias também crescerem e figurarem no grande painel. Penha (que virada) é um grande exemplo disso, ela mesma essa semana em conversa com Magno disse que todos têm seus erros, sem falar do vilão ambíguo e carismático, Álvaro da Nóbrega, que manda matar, chora de amor e ouve ópera.

Nessa semana o epicentro das emoções ficou em torno da volta de Lurdes à Malaquitas para reencontrar sua mãe. Cenas com misto de riso e lágrimas nos brindaram com belas sequências que nos remetem ao estilo da direção de Luiz Fernando Carvalho e das tramas de Benedito Rui Barbosa. A escolha de Zezita Matos como mãe de Regina Casé foi muito feliz (Lurdes podia mesmo ter sido personagem de Velho Chico e irmã de Bento e Santo dos Anjos) e o abraço  das três, avó, mãe e filha foi um quadro de puro lirismo, assim como a morte da matriarca carregada de poesia.

 As três passeando por aqueles caminhos que deram inÍcio à trama, metáfora da origem, só podia dar em outro segredo, a mãe biológica de Camila, que brotou daquele cenário portando revelações que darão continuidade à história. Dona Maria Santos Silva, que outro nome podia ser, falou nessa sequência ao ar livre uma frase lapidar: O impossível acontece todos os dias... Justamente quando a mãe de Camila passava numa carroça, volta ao principio, mais mítico impossível...

Já que nos lembramos de Benedito Rui Barbosa, creio que Manuela Dias também prestou um tributo a Manoel Carlos, o segredo vive nas gavetas, nas cartas e nos diários... Danilo ao arrumar o quarto do seu futuro filho, esbarra com o mistério que rege sua vida e mudará o rumo da novela...para não dizer que não falei de Vitória, personagem que adoro, mãe leoa daquelas com três maternidades em processo, tenho uma queixa  a fazer, ela ficou pobre demais, demais mesmo, não tinha nem uma reservinha, só a casa linda e o closet de sex and city? Uma advogada daquelas ia cair nas mãos de Penha a 25%? Bem botamos na conta do desespero...

São muitas as faces dos amores de mãe, esse sentimento prismático, mas os amores de pai também tem de revelado em Magno,  em Raul, em Davi, em Seu Nuno e no grande Durval, só não conte a ele que não sabe guardar nada....Sigamos! Muitos outros segredos ainda virão à tona nessas  outras páginas da vida...

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Bom Sucesso: Um brinde à literatura e à vida


                                                                                                 Para Lícia Soares de Souza


A relação da telenovela com a literatura é simbiótica desde seu surgimento. A sua origem remonta aos folhetins publicados nos rodapés dos jornais no século XIX. As primeiras tramas exibidas foram adaptações dos clássicos brasileiros (Senhora, A moreninha, A Sucessora dentre outros). Depois passamos para algumas livres inspirações, a exemplo de Fera Ferida, pautada na obra de Lima Barreto, as muitas tramas ligadas aos romances de Jorge Amado (Tieta, Porto dos milagres) ou inspiradas no Romance de 30 (Renascer, Velho Chico). Nos últimos anos, algumas obras têm adotado cada vez mais o processo de citação direta ou indireta, trabalhando a intertextualidade (“todo texto é um mosaico de citações” Kristeva, 1974) em todas as suas infinitas possibilidades. Estratégia criativa elevada à máxima potência em Bom Sucesso, que se finda, infelizmente como todo livro, essa semana, mas continuará ecoando em seus leitores.
Os autores, Paulo Halm e Rosane Svartman, e seus roteiristas igualmente talentosos e certamente bons leitores, investiram com força nesse profícuo diálogo entre os textos de todas as cores, gêneros, nacionalidades e épocas. A novela acolheu inúmeros repertórios culturais, do rap a Cyrano de Bergerac, de Vinicius de Moraes a Fernando Pessoa, da Letra Escarlate a Drummond, do Carnaval à Ópera, dando ênfase a algumas obras-chaves que funcionavam como molas propulsoras da trama, Dom Quixote, Alice no país das maravilhas e Peter Pan, espécies de alter egos dos protagonistas.
A literatura costurou toda a trama, cujo um dos protagonistas, Alberto Prado Monteiro, é um bibliófilo, vivido com toda a maestria por Antônio Fagundes, dono de uma editora em crise financeira, retrato do nosso mercado editorial invadido por celebridades e youtubers. A presença dos textos se corporifica na trama e se enreda na vida das personagens, seja nos devaneios de Paloma a cada nova leitura, seja na tropa de funcionários do Capitão (Captain, my captain) em suas investigações e peripécias a la Sherlock Holmes ou no Satanás Burlesco que se transformou o vilão Diogo.
Nesses últimos capítulos, os diálogos se intensificaram e se tornaram ainda mais sofisticados e belos. O incêndio na editora foi antecipado pela leitura dramática de Farenheit 451 de Ray Bradbury, obra distópica e utópica a um só tempo, que ganhou vida na voz de Fagundes ao passo que as chamas consumiam os livros. Após o fogo, um momento de rara sensibilidade foi encenado sobre as cinzas. Assim como no conto americano, cada personagem escolheu uma obra (com ligação especial com cada papel interpretado) para guardar na memória, espaço no qual estaria protegida para sempre de qualquer tirania, fogo, guerra ou ditadores, e tal como fênix ressurgiram dos escombros. Vale ressaltar nessa sequência, a morte de Gisele e o réquiem cantado para ela por seu amigo William, a emblemática Geni, de Chico Buarque.
A história construída sobre o lastro forte dos livros é também uma ode à vida com suas grandezas e pequenezas, sobretudo, uma acurada reflexão sobre a morte e o tempo através da doença terminal do Seu Alberto. Estamos aguardando o seu grand finale com ansiedade, pois já podemos imaginar a beleza que virá em seu último ato, epílogo de todos nós. A trama revigorou com beleza ímpar o horário das 19, não só pela presença da literatura e do estímulo ao letramento literário dos telespectadores, mas pela vida que pulsa no riso e choro humano, seja nas ruas de Bonsucesso, seja nos corredores das mansões solitárias. Avante, Quixotes de todos os lugares! A novela e a vida nos mostra que a literatura e a arte não cura nossas dores, mas ajuda a suportá-las! Contar e ouvir boas histórias continuará fascinando os homens de todos os tempos, era uma vez, e outra e outra...

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Dois Papas, Dois Homens: Confissões sem gelosia


                                                                         Para Mirella Márcia Lima




O filme Dois Papas estreou dia 20-12-2019 como um presente de Natal para os amantes das boas histórias. Dirigido pelo nosso talentoso Fernando Meirelles, com roteiro de Anthony McCarten e atuações impecáveis de Anthony Hopkins e Jonathan Pryce nos papéis que nomeiam a trama e protagonizam toda a narrativa, Papa Bento XVI e Papa Francisco.
Em 2012, na Argentina, o então cardial Jorge Bergoglio está decidido a se aposentar das suas funções e solicita um encontro com o Papa Bento no Vaticano para concretizar seu desejo. Já de passagem comprada sem saber se seria recebido ou não, ele recebe um convite do Sumo Pontífice, que depois será interpretado com um sinal divino. Ao chegar ao Vaticano, seu pedido é rejeitado pelo seu superior sem uma explicação plausível, nem sequer imaginaria ele a razão do chamado. Após longas conversas, Bento lhe revela o seu plano de renunciar ao papado e sua intenção de deixá-lo em seu lugar.
São exatamente essas longas conversas e os muitos silêncios que constituem toda a estrutura e beleza do filme. Esses dois homens tão diferentes vão travar longos diálogos (ora monólogos) que faz com que nos adentremos no íntimo de cada um deles, conhecendo seus vícios e virtudes, seus anjos e demônios, dois homens de carne  e osso e dúvidas. Sim, a trama tem um quê de maniqueísmo, pendendo a princípio o pêndulo do bem para Francisco. Todavia, na medida em que a trama se desenvolve, veremos que os dois andaram pelas sombras do vale da morte e que temos em cena duas figuras humanas densas que vão aprendendo um com o outro, pois assim como nas confissões, um dos eixos da história é o exercício da escuta.
As conversas e os silêncios vão ganhando o tom de confissões, de segredos sussurrados, e em alguns momentos um irá absolver o outro de seus pecados, pois ambos são atormentados por palavras, ações e omissões. Bento, a questão problemática da pedofilia. Francisco, os fantasmas da ditadura argentina. Aliás, as cenas em flashback cinzentos desse período são um dos pontos mais altos do filme juntamente com a fala amargurada do ainda Cardial que ousa questionar: “-Onde Deus estava durante a Ditadura da Argentina?”, eco da mesma frase proferida pelo Papa Bento quando visitou o Museu do Holocausto, ambas falas ecos de "Pai, por que me abandonaste?"...
Destaque-se também no filme, os bastidores políticos das eleições dos Papas (Habemus Papam!), o papel da imprensa, a trilha sonora, o futebol de um, a série do outro, as imagens imponentes do Vaticano em contraste com a realidade vivida por Jorge Bergoglio que fez a opção de viver entre os humildes e ser igualmente humilde, enquanto o outro prefere a distância e a solidão ao convívio com seus subalternos e fiéis.. A cena das malas, dos sapatos e dos trajes em sua posse é simbólica de sua opção, bem como a refeição solitária e a introspecção apontam para a natureza de Bento. Metáforas de duas linhagens de poder em jogo, jogo simbólico entre Alemanha e Argentina, jogo entre um Cristo no altar e um Cristo nas ruas junto aos povo. Parece haver um tabuleiro invisível entre esses dois homens que disputam entre si os rumos do catolicismo e de suas vidas. Vale também notar, que esse drama histórico bibliográfico reserva algumas cenas de rara beleza que tocam de leve o humor, a exemplo do momento da pizza com Fanta, da final da Copa do Mundo ou do glorioso Tango na despedida.
Nós vivemos um momento histórico único, vimos um Papa renunciar, para outro Papa assumir, portanto, assistimos a Dois Papas vivos. E agora temos a chance de ver essa história real ser retratada pelas tintas da ficção com tamanho cuidado estético e vigoroso diálogo com o real que nos põe contritos diante da magia da arte. Bem como estamos vendo, sob a égide de Francisco, a Igreja ganhar sopro novo. 
Habemus Papam Pop e por mim também Habemus Oscar! Amém!


domingo, 1 de dezembro de 2019

Amor de mãe ou o Rio de Janeiro para além dos cartões postais




Amor de Mãe estreou essa semana como grande promessa de restabelecer a qualidade narrativa do horário das 21:00h, depois de duas tramas que deixaram  a desejar (o gato miou e o bolo solou). Esse é o horário nobre da telenovela por excelência,  aquele que reúne milhões de pessoas em torno da tela para apreciar sua dose diária de ficção. Da autoria de Manuela Dias, inaugurando sua primeira novela depois de séries excepcionais como Justiça e Ligações Perigosas, aliás, o tom da primeira se faz presente com força na novela. Os primeiros capítulos cumpriram a expectativa e foram arrebatadores!

O tema escolhido, Amor de mãe, é universal e atemporal, atinge a todos de variadas formas. Será trabalhado a partir de três protagonistas, Lurdes, Telma e Vitória. Mulheres de classes sociais diferentes, mundos diferentes, mas que se unem no drama individual e coletivo do amor incondicional aos seus filhos. É interessante notar o cruzamento da tríade, como a trama conduz a ligação entre elas. Todas Mães-coragem (Brecht, a carroça) lutando pela felicidade de seus filhos, todas personagens ambíguas que borram o maniqueísmo tradicional. Embora sejam 3 protagonistas, Lurdes parece ser o fio condutor para a história. Regina Casé está brilhante no papel que alude a outras personagens já interpretadas por ela no cinema (Darlene de Eu, tu e eles e Val de Que horas ela volta?), traz consigo a força do drama, mas com aquelas notas precisas de comédia ( a cena do dinheiro na praia, a desconfiança à primeira vista de Raul) que nos fazem chorar e rir e torcer por ela, mesmo quando a linha da ética oscila em nome da proteção das crias.

Em pouco tempo já tivemos contato com cenas magistrais, como a reação de Lurdes ao descobrir  a venda do seu filho, a perda do bebê de Vitória e o discurso de formatura de Camila, professora de História, personagem simbólica pelo papel que ocupa e pelo momento atribulado que vivemos, e suas primeiras aulas em uma escola pública tendo que enfrentar a realidade dura de estrutura precária,  de alunos desmotivados e  de uma rajada de tiros, mas mesmo assim ela cantou e segue em frente e segura o rojão, podia perfeitamente ser uma cena de Segunda Chamada.

Vale destacar que a novela, na minha leitura, não tem três protagonistas, mas sim quatro. A quarta é a cidade do Rio de Janeiro com toda sua rede intricada de espaços e paisagens que os cartões-postais não mostram. Observem como há cenas externas, nas quais as ruas e suas figuras ganham vida sejam nos becos, sejam nos ônibus, sejam nas avenidas da Zona Sul. A trama traz uma geografia social externa e interna, mostra espaços abertos e o interior das casas, sejam nas mansões e ilhas ou nas casas inacabadas e apartamentos populares. E esses lugares determinam muito do tom de cada núcleo (a solidão de Lídia em sua mesa gigante e  corredores de sua mansão, a união da família de Lurdes em sua cozinha apertada onde todos se encontram todo tempo, o velho restaurante e a velha casa de Telma e seu apego ao passado). O espaço adquire feição de personagem e dialoga com a narrativa.

Muitos pontos altos merecem nota, a escalação de atores, o texto, os flashbacks sofisticados, o ritmo rápido,  a película de cinema, a tensão constante,  a trilha sonora diversa e escolhida com primor (de Fábio Junior a Aznavour passando por Bethânia e Gonzaguinha e cia, É foi também trilha de Vale Tudo!), os cenários, os intertextos (Gabriela contemporânea tira drone do telhado). Como foi já veiculado em entrevistas, na trama não há grandes vilões, a vilania está na própria vida com suas agruras diárias, há algumas personagens que encarnam o mal em algumas ações como Sinézio, Vera, ou o empresário ambicioso (Irandhir surpreendendo em um papel que nunca fez) mas que não chegam a serem os grandes opositores, essa estratégia traz um sopro novo para a teledramaturgia, assim como o fato de não termos um par romântico no centro do enredo.  É a vida, o destino e as condições sociais que costuram o bem  e o mal e as dores e delícias...De ser mãe e de ser humano... Sigamos com fé que  a gente não pode deixar de sonhar !!!




segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Segunda chamada: As veias abertas da educação noturna


A série Segunda chamada, de Carla Faour e Julia Spadaccini, com direção de Joana Jabace, tem roubado nosso sono nas noites de terça-feira na Rede Globo de Televisão. Considerada pela crítica como a Sob Pressão da educação, por abordar de forma semelhante as mazelas da escola pública assim como aquela o faz com a rotina de um hospital igualmente feito para o povo. Comparação deveras pertinente, pois ambas são pautadas no realismo crítico e contundente do cotidiano do nosso país através das problemáticas dessas instituições tão fundamentais quanto maltratadas ao longo dos anos.

A grande força da série fundamenta-se na construção dramática de suas personagens, aliás, uma refinada construção de criaturas complexas. Cada professor e cada aluno lutam com seus demônios individuais antes de cruzar o portão da escola e os levam para dentro dela, onde duelam com outros tantos demônios coletivos. Em cada face, um drama em chaga aberta e um sorriso tímido, com um desejo único de fazer com que aquele espaço funcione. Apesar de tudo, todos depositam alguma nota de esperança naquele prédio em decomposição, mas com sonhos pulsando. Lúcia, a professora de português, personagem de Débora Bloch, é um exemplo desse tumulto entre o individual e o coletivo. A atriz está excelente nesse papel que parece ser talhado para ela, desde Justiça e Onde nascem os fortes vem se destacado no drama.

A classe noturna é composta por uma gama de alunos variados, adultos de todas as idades que pelos espinhos do caminho não seguiram a cronologia esperada e voltam para essa escola com todas as marcas da vida e os sonhos contornados pelo mundo que lhes é possível (posso atestar de cátedra a verossimilhança dessa série, já fui professora desse turno). Creio que toda sala de aula é um microcosmo da sociedade e aqui não é diferente. Dentre tantos rostos cansados, temos a jovem mãe com um bebê e o desespero nos braços, o motoboy correria, a garota de programa, a senhorinha católica (Teca Pereira, ainda quero te ver em grande papel), a transexual, o catador de lixo (José Dumont, hors concours, nosso eterno Severino), o filho do diretor que leva bomba na escola particular, o pequeno traficante, dentre outros tipos tão bem representados nessa caderneta viva.

Na sala dos professores, os dramas humanos também se impõem com força. Temos a professora muambeira buscando driblar os baixos salários (Thalita Carauta, mostra que pode ir muito além da comédia), uma figura muito conhecida nas salas dos professores, a mal casada (Hermila Guedes, brilha desde O céu de Suely) que traz seu rancor para a escola, o jovem professor de artes testando seus limites (Sílvio Guindane, também rompendo o humor) e o diretor dividido (Paulo Gorgulho, seja bem-vindo de novo) entre a aplicação da lei e o bom-senso dentro desse caldeirão multicultural que ameaça explodir toda semana.
É interessante notar como os conteúdos das aulas são cuidadosamente trabalhados em consonância com os acontecimentos extraclasse (os roteiristas tirando dez!). Na aula de matemática, a professora ensina divisão mostrando o valor do salário mínimo e acentuando quanto custa um dia de trabalho do assalariado. Na aula de História, a lição é sobre as Capitanias Hereditárias, justamente numa noite na qual a escola estava alagada pela chuva e os professores e os alunos lutando para conseguir um mínimo de espaço para as aulas acontecerem, excelente metáfora da luta cotidiana de todos ali buscando driblar as intempéries e o pouco espaço que lhes sobra. Na aula de artes, o professor que luta para ter suas aulas “inúteis” preservadas, discute O Pagador de Promessas, lição literária sobre a intolerância religiosa que vigora na escola onde uma imagem sacra fora quebrada minutos antes.
Mas para além do currículo oficial, há o currículo oculto no qual aprendemos aquelas lições que valem para toda vida dentro e fora dos muros da escola Carolina Maria de Jesus, nome emblemático por sua obra que deu visibilidade aos excluídos, sendo ela mesma um autora improvável, assim como os alunos dessa escola são cidadãos improváveis em meio a tanta precariedade. Dona Jurema aprendeu a respeitar Natasha (Linn da Quebrada arrasando) e permitir que essa garanta seu espaço e dignidade como mulher trans. O casal evangélico fundamentalista foi socorrido na hora do parto pela jovem prostituta que ainda carrega sonhos (Mariana Nunes) e foram tocados pelo afeto dessa mão antes desprezada, dentre tantos preconceitos que se podem ser revistos nas “salas de aula” dessa escola. As lições estão postas, quem tiver olhos para ver que vejam...
Antes de concluir esse nosso dever de casa, não podemos deixar de mencionar a trilha sonora de alta qualidade e com letras completamente espelhadas na trama através de compositores e intérpretes variados (Emicida, Projota, Elza Soares, Gonzaguinha, Belchior...). Quem tiver ouvidos para ouvir que ouça, afinal esse ano eu morri, mas para o ano eu não morro e Você merece, Vocês merecem assistir à Segunda Chamada...Viva a arte, ela não cura nossas dores, mas ajuda a suportá-las...Educação pública, presente!