sábado, 11 de junho de 2016

O Coronel Saruê e o espelho


O espelho é um objeto que ocupa um lugar de fetiche na nossa cultura. É um espaço de desejo e repulsa porque nos põe em contato com nós mesmos diante de nós mesmos. Cercado de lendas e superstições, guarda um lugar especial na literatura. Arte que busca, de algum modo, nos revelar. Ele está lá dizendo verdades inconvenientes à madrasta má da Branca de Neve e a tantas outras personagens ao longo dos tempos. Padre Vieira o chamou de Demônio Mudo em dos seus sermões de mesmo título (1651), pois algumas freiras no claustro ainda se recusavam a tirá-lo de suas celas, prova de que ainda estavam ligadas ao mundo externo, ou a alma exterior, aquela imagem que queremos que os outros vejam da gente.

A expressão “alma exterior” é o cerne do conto O Espelho (1882)  de Machado de Assis. O Alferes Jacobina, após alcançar essa patente militar, molda sua “alma exterior” de acordo com aquilo que a sociedade espera do seu cargo e, quando tem seu poderio ameaçado, precisa vestir a farda e olhar-se no espelho para se reconhecer. Todavia, há o conflito entre a imagem refletida e a “alma interior”. O nosso brilhante escritor soube ler como poucos essa complexidade da alma humana, essa dissonância entre o externo e o interno que nos habita. Vale lembrar que outro grande escritor, Guimarães Rosa, também contribuiu com o tema no seu homônimo conto.

O Coronel Saruê, protagonista de Velho Chico, também tem explorado largamente essa temática. Diante do espelho em várias cenas, ele se questiona sobre sua real identidade e vê o seu reflexo dividido entre o dantes jovem entusiasta Afrânio e o atual Coronel, alma externa que foi obrigado a adotar por influência da família e do meio. Tal conflito tem rendido sequências fortes e profundas sobre os outros que guardamos em nós, escondidos sob as máscaras sociais.

Aquela caricatura de coronel pintada com cores fortes e figurino esdrúxulo guarda ainda alguma poesia daquele jovem tropicalista, que por vezes teima em aparecer no seu reflexo. Em diálogo/duelo com seu filho, esse lhe impôs a presença do espelho, algo que ele só faz em solidão, fazendo vir à tona, emergir para o primeiro plano, a alma guardada em baixo de tanto rancor e amargura.

Tal dilema também surge nos seus sonhos através da encruzilhada enfrentada no passado, entre as setas onde sua escolha dolorida moldou seu destino de Saruê. Parece claro que seus descendentes não atenderão ao chamado desse legado, fazendo suas próprias escolhas e caminhos, talvez serão mais felizes diante do espelho.

E como a ficção é também nosso espelho quebrado que  reflete o real através de estilhaços difusos, ali naquela Grotas temos um microcosmo do Brasil, um espelhamento do nosso país. Misto de modernidade e atraso, com compras virtuais e brigas à bala, sintropia e desordem caótica, idealismo e corrupção, e nós do outro lado da tela vamos juntando os caquinhos e tentando montar a imagem completa, mesmo que escapem sempre alguns reflexos que nós não queremos ou não podemos enxergar...

6 comentários:

  1. Alana, perfeito comentário. Também notei o duelo do Coronel com o jovem Afrânio, em diversas vezes, através do espelho. Como deve ser difícil conviver com tantas inquietações.

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    1. Cara leitora, seguimos apurando nossas sensibilidades de leitoras que somos!

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  2. Parabéns Alana. Sigamos a acompanhar o dilema de Afrânio. Embora eu sinta vontade de gritar como Maria Tereza no capítulo de ontem... Beijos.

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  3. Olá, caríssima leitora. O grito de Tereza foi libertador, ela grita com o Coronel pata tentar acordar Afrânio...

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  4. Gutho dos Anjos de Sá Ribeiro11 de julho de 2016 às 03:18

    "É que Narciso acha feio o que não é espelho." ... E assim sendo, se os espelhos não forem quebrados, "morremos nós... estamos sós."

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