O espelho
é um objeto que ocupa um lugar de fetiche na nossa cultura. É um espaço de
desejo e repulsa porque nos põe em contato com nós mesmos diante de nós mesmos.
Cercado de lendas e superstições, guarda um lugar especial na literatura. Arte que
busca, de algum modo, nos revelar. Ele está lá dizendo verdades inconvenientes à
madrasta má da Branca de Neve e a
tantas outras personagens ao longo dos tempos. Padre Vieira o chamou de Demônio
Mudo em dos seus sermões de mesmo título (1651), pois algumas freiras no
claustro ainda se recusavam a tirá-lo de suas celas, prova de que ainda estavam
ligadas ao mundo externo, ou a alma exterior, aquela imagem que queremos que os
outros vejam da gente.
A
expressão “alma exterior” é o cerne do conto O Espelho (1882) de Machado
de Assis. O Alferes Jacobina, após alcançar essa patente militar, molda sua “alma
exterior” de acordo com aquilo que a sociedade espera do seu cargo e, quando tem
seu poderio ameaçado, precisa vestir a farda e olhar-se no espelho para se
reconhecer. Todavia, há o conflito entre a imagem refletida e a “alma interior”.
O nosso brilhante escritor soube ler como poucos essa complexidade da alma
humana, essa dissonância entre o externo e o interno que nos habita. Vale
lembrar que outro grande escritor, Guimarães Rosa, também contribuiu com o tema
no seu homônimo conto.
O Coronel
Saruê, protagonista de Velho Chico,
também tem explorado largamente essa temática. Diante do espelho em várias
cenas, ele se questiona sobre sua real identidade e vê o seu reflexo dividido
entre o dantes jovem entusiasta Afrânio e o atual Coronel, alma externa que foi
obrigado a adotar por influência da família e do meio. Tal conflito tem rendido
sequências fortes e profundas sobre os outros que guardamos em nós, escondidos
sob as máscaras sociais.
Aquela
caricatura de coronel pintada com cores fortes e figurino esdrúxulo guarda
ainda alguma poesia daquele jovem tropicalista, que por vezes teima em aparecer
no seu reflexo. Em diálogo/duelo com seu filho, esse lhe impôs a presença do
espelho, algo que ele só faz em solidão, fazendo vir à tona, emergir para o
primeiro plano, a alma guardada em baixo de tanto rancor e amargura.
Tal
dilema também surge nos seus sonhos através da encruzilhada enfrentada no
passado, entre as setas onde sua escolha dolorida moldou seu destino de Saruê. Parece claro
que seus descendentes não atenderão ao chamado desse legado, fazendo suas próprias
escolhas e caminhos, talvez serão mais felizes diante do espelho.
E
como a ficção é também nosso espelho quebrado que reflete o real através de
estilhaços difusos, ali naquela Grotas temos um microcosmo do Brasil, um espelhamento do nosso país. Misto de
modernidade e atraso, com compras virtuais e brigas à bala, sintropia e
desordem caótica, idealismo e corrupção, e nós do outro lado da tela vamos juntando os caquinhos e
tentando montar a imagem completa, mesmo que escapem sempre alguns reflexos que
nós não queremos ou não podemos enxergar...
Alana, perfeito comentário. Também notei o duelo do Coronel com o jovem Afrânio, em diversas vezes, através do espelho. Como deve ser difícil conviver com tantas inquietações.
ResponderExcluirCara leitora, seguimos apurando nossas sensibilidades de leitoras que somos!
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ResponderExcluirParabéns Alana. Sigamos a acompanhar o dilema de Afrânio. Embora eu sinta vontade de gritar como Maria Tereza no capítulo de ontem... Beijos.
ResponderExcluirOlá, caríssima leitora. O grito de Tereza foi libertador, ela grita com o Coronel pata tentar acordar Afrânio...
ResponderExcluir"É que Narciso acha feio o que não é espelho." ... E assim sendo, se os espelhos não forem quebrados, "morremos nós... estamos sós."
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