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segunda-feira, 27 de junho de 2016

Downton Abbey e o poder sedutor da Casa


Ainda sou neófita nas séries. Recebo recomendações diárias de amigos e alunos sobre várias delas. Eu, leitora contumaz dos livros, filmes e novelas, tenho resistido um pouco a fazer essa passagem sem volta para o lado de dentro delas. Digo sem volta porque já começo a me sentir uma estranha em várias rodas de conversas, reportagens e postagens diversas nas quais o assunto gira sempre em torno de personagens e temporadas. Parece que a maioria das pessoas que gravitam em meu ciclo já foram abduzidas para esses universos paralelos. Mas vamos ao que interessa.

Desculpem todas as indicações e catequeses a mim dispensadas sobre outras séries, mas no melhor estilo de Lady Grantham, personagem irretocável vivida pela Dame Maggie Smith, acho que comecei pela melhor de todas (antes tive um breve romance com Brothers and Sisters e Parenthood) e acho difícil que alguma outra me desperte um amor igual: Downton Abbey, escrita por Julian Fellowes, é extraordinária no sentido mais pleno desse adjetivo.

Trata-se antes de tudo de uma história de família com todas as tramas esperadas dentro dessa instituição consanguínea e social: Nascimentos, romances, casamentos, segredos, mortes, conflitos, heranças, comemorações e reconciliações. Esse mote já bastaria para nos prender diante da tela. Todavia ela é muito mais que isso. Através do clã dos Crawley, família de nobres ingleses, e de sua majestosa Casa (assim mesmo com maiúscula, o sentido é muito mais amplo que um imóvel, designou no passado a família senhorial e todas as suas propriedades e poderio), Downton Abbey, temos verdadeiras aulas de História e estórias diversas que vão se multiplicando a cada episódio. Sem deixar de mencionar cenário, figurino, fotografia e roteiro de rara beleza.

A série cobre as primeiras décadas do século XX e faz cruzar com o cotidiano da família os principais acontecimentos e mudanças sofridas pela Europa, tais como: O naufrágio do Titanic, A Grande Guerra, industrialização, doutrinas variadas, papel crescente da imprensa e da ciência, conquistas femininas e muitos outros eventos que teimam em sacudir as cortinas e tapetes da rotina aristocrática da família e de seus empregados. Aproxima-nos dos grandes romances do século XIX com os seus protagonistas fortes e densos e suas casas emblemáticas como o Ramalhete dos Maias.

Aliás, um dos pontos altos da trama é a complexa convivência entre os patrões e empregados pelos corredores, alas e andares da Casa. Downton Abbey é a grande protagonista da narrativa, através dos espaços arquitetônicos, geográficos e sociais dessa casa/palácio temos um microcosmo da sociedade inglesa e, por extensão, um retrato de todas elas. Ela é a um só tempo metáfora e metonímia do social e do individual da humanidade dividida em classes e todos as complicações que isso pode gerar através dessa planta baixa que nos habita, salas, quartos, saletas, vestíbulos, jardins, biblioteca e múltiplas e incontáveis gavetas.

A Casa desdobra-se em dois mundos, os andares de cima, dos patrões e os andares de baixo, dos empregados. É dever dos “de baixo” zelar devotadamente pelo funcionamento impecável dos “de cima”. Aparentemente, esses dois mundos são separados, mas se misturam e se unem em muitos momentos através do poder incontrolável dos afetos. Destaquemos que uma das filhas do clã, Lady Sybil casa-se com o revolucionário chofer ou a bela amizade entre Lady Mary e o fiel e afidalgado mordomo, Mister Carson, que atravessa os cômodos da casa. E o melhor é que não há maniqueísmo algum, o bem e o mal independem do status social e habitam as duas alas em uma sofisticada rede de intrigas e sussurros.

          Há uma espécie de espelhamento dos dramas vividos pelos dois extremos da mansão. Mesmo com a distinção absoluta de classe e a distante mobilidade, os problemas humanos igualam-se em sonhos, projetos, alegrias e sofrimentos diversos. Durante a Guerra essa percepção se intensifica, as dores e os amores são para todos,  a nação estratificada se une contra as ameaças externas. E o mundo começa a mudar até mesmo para aquele clã, mais antigo que a própria Inglaterra, segundo a Condessa-mãe.

Fora dos muros da Casa tudo que aparece na trama gira em torno dela num modelo ainda quase feudal. A vila dos Crawley, as caçadas, os pequenos comerciantes, as idas a Londres de trem ou nos recentes automóveis surgem quando os moradores saem dos limites da propriedade. Visitantes que vão e vem, convidados e hóspedes variados os visitam com propósitos diversos. Todos querem entrar naquele “reino” e é muito difícil sair daquele universo.

Eu também me rendi a ele e em vez de começar a assistir às outras séries, teimo em rever os episódios e desfrutar da companhia dos Lordes e Ladies, Mordomos e Governantas, Condes e Condessas, Valetes e Aias, e me deliciar com o humor inglês destilado por Lady Grantham e com os belos jantares feitos pela Sra. Patimore, ou com os romances tumultuados de Lady Mary e o amor incondicional de Anna e Battes. Para mim é a série das séries, mesmo que não conheça as outras!

 

 

 

sábado, 11 de junho de 2016

O Coronel Saruê e o espelho


O espelho é um objeto que ocupa um lugar de fetiche na nossa cultura. É um espaço de desejo e repulsa porque nos põe em contato com nós mesmos diante de nós mesmos. Cercado de lendas e superstições, guarda um lugar especial na literatura. Arte que busca, de algum modo, nos revelar. Ele está lá dizendo verdades inconvenientes à madrasta má da Branca de Neve e a tantas outras personagens ao longo dos tempos. Padre Vieira o chamou de Demônio Mudo em dos seus sermões de mesmo título (1651), pois algumas freiras no claustro ainda se recusavam a tirá-lo de suas celas, prova de que ainda estavam ligadas ao mundo externo, ou a alma exterior, aquela imagem que queremos que os outros vejam da gente.

A expressão “alma exterior” é o cerne do conto O Espelho (1882)  de Machado de Assis. O Alferes Jacobina, após alcançar essa patente militar, molda sua “alma exterior” de acordo com aquilo que a sociedade espera do seu cargo e, quando tem seu poderio ameaçado, precisa vestir a farda e olhar-se no espelho para se reconhecer. Todavia, há o conflito entre a imagem refletida e a “alma interior”. O nosso brilhante escritor soube ler como poucos essa complexidade da alma humana, essa dissonância entre o externo e o interno que nos habita. Vale lembrar que outro grande escritor, Guimarães Rosa, também contribuiu com o tema no seu homônimo conto.

O Coronel Saruê, protagonista de Velho Chico, também tem explorado largamente essa temática. Diante do espelho em várias cenas, ele se questiona sobre sua real identidade e vê o seu reflexo dividido entre o dantes jovem entusiasta Afrânio e o atual Coronel, alma externa que foi obrigado a adotar por influência da família e do meio. Tal conflito tem rendido sequências fortes e profundas sobre os outros que guardamos em nós, escondidos sob as máscaras sociais.

Aquela caricatura de coronel pintada com cores fortes e figurino esdrúxulo guarda ainda alguma poesia daquele jovem tropicalista, que por vezes teima em aparecer no seu reflexo. Em diálogo/duelo com seu filho, esse lhe impôs a presença do espelho, algo que ele só faz em solidão, fazendo vir à tona, emergir para o primeiro plano, a alma guardada em baixo de tanto rancor e amargura.

Tal dilema também surge nos seus sonhos através da encruzilhada enfrentada no passado, entre as setas onde sua escolha dolorida moldou seu destino de Saruê. Parece claro que seus descendentes não atenderão ao chamado desse legado, fazendo suas próprias escolhas e caminhos, talvez serão mais felizes diante do espelho.

E como a ficção é também nosso espelho quebrado que  reflete o real através de estilhaços difusos, ali naquela Grotas temos um microcosmo do Brasil, um espelhamento do nosso país. Misto de modernidade e atraso, com compras virtuais e brigas à bala, sintropia e desordem caótica, idealismo e corrupção, e nós do outro lado da tela vamos juntando os caquinhos e tentando montar a imagem completa, mesmo que escapem sempre alguns reflexos que nós não queremos ou não podemos enxergar...

domingo, 5 de junho de 2016

O quarto de Jack e outras dimensões do amor


O quarto de Jack (2015), do diretor Lenny Abrahamson, é um daqueles filmes que nos deixa em suspensão enquanto o assistimos e essa sensação ainda nos acompanha por um longo tempo. Adaptação do romance O quarto, de Emma Donoghue (2010), conta a história de uma mãe e seu filho presos em um cativeiro por sete anos. Jack, o menino de 5 anos que ali nascera e crescera, é filho do sequestrador/estuprador, o Velho Nick, que os visita periodicamente para trazer o “que eles precisam” e violentar mais uma vez Joy, a maravilhosa mãe de Jack. Baseado na história real que chocou o mundo em 2008, quando foi descoberto que um pai prendeu sua filha por mais vinte anos na Áustria, o filme explora ficcionalmente outros ângulos desse drama.
Joy cria para seu filho um outro mundo, O quarto de Jack. Ali, naquele minúsculo espaço de tanto sofrimento, ela consegue manter uma atmosfera de fantasia que os mantêm lúcidos e ativos diante de tanto terror (ecos de A vida é bela). O único contato com o mundo externo vem da televisão que assistem, mundo que, na primeira parte do filme, ela nega a existência para que seu filho não entenda a sua condição de prisioneiro. Nessa primeira parte, antes da fuga, tudo é claustrofóbico e reduzido. Aliás, esse clima é bem explorado pelas câmeras com seus closes angustiantes, vide as cenas em que Jack fica dentro do guarda-roupa quando Nick vem os “visitar”.

É interessante notar as duas histórias que a mãe "conta" para Jack, O Conde de Monte Cristo e Alice no país das maravilhas. Duas narrativas que dialogam diretamente com o drama deles. Através do primeiro, ela preparará a fuga do esperto menino, que se fingido de morto (seu treinamento para isso é fantástico) será levado para fora do cativeiro por seu próprio algoz. Com Alice, temos a idéia do mundo diminuto e paralelo à realidade vivida por eles, com pitadas de beleza providenciadas pela amorosa mãe.  A literatura usada como bálsamo e salvação.
A segunda parte narra a adaptação deles ao mundo real pós-cativeiro. Essa fase é pontuada por cenas emocionantes e tensas protagonizadas pela família de Joy. Aquela idéia de que a vida cá fora não parou para esperá-los ronda o filme. Sua mãe, já separada de seu pai, vive um segundo casamento e os acolhe amorosamente em seu novo lar. Já seu pai tem dificuldades para aceitar Jack, para ele o garoto é o resultado de um crime. Destaca-se como uma das forças do filme, o poder sem limites do amor materno em suas variadas dimensões, de 10m² ao infinito azul. O afeto incondicional de Joy por Jack e o de sua mãe por ela e pelo neto rendem grandes cenas, dentre elas o primeiro corte de cabelo do menino.

A partir de um drama inimaginável para qualquer um de nós, o filme opta por narrar uma história de rara beleza que nos põe em contato com diversas e confusas questões. Dentre elas, a eterna pergunta platônica sobre o que é mesmo o real. A cena em que Jack volta ao cativeiro e descobre como aquele quarto/mundo era pequeno é puro lirismo e relativização das verdades, pois tudo depende do ponto de vista e do tamanho do nosso mundo. Mundo que vai se ampliando com filmes como esse. Digno de Oscar de melhor atriz para a intérprete de Joy, Brie Larson,  e de ser revisto algumas vezes para que possamos também, pelas mãos de Alice, nos refugiar em outros mundinhos...