Ainda sou neófita nas séries. Recebo
recomendações diárias de amigos e alunos sobre várias delas. Eu, leitora
contumaz dos livros, filmes e novelas, tenho resistido um pouco a fazer essa
passagem sem volta para o lado de dentro delas. Digo sem volta porque já começo
a me sentir uma estranha em várias rodas de conversas, reportagens e postagens
diversas nas quais o assunto gira sempre em torno de personagens e temporadas. Parece
que a maioria das pessoas que gravitam em meu ciclo já foram abduzidas para
esses universos paralelos. Mas vamos ao que interessa.
Desculpem
todas as indicações e catequeses a mim dispensadas sobre outras séries, mas no
melhor estilo de Lady Grantham, personagem
irretocável vivida pela Dame Maggie Smith, acho que comecei pela melhor de
todas (antes tive um breve romance com Brothers
and Sisters e Parenthood) e acho difícil
que alguma outra me desperte um amor igual: Downton Abbey, escrita por Julian Fellowes, é
extraordinária no sentido mais pleno desse adjetivo.
Trata-se
antes de tudo de uma história de família com todas as tramas esperadas dentro
dessa instituição consanguínea e social: Nascimentos, romances, casamentos, segredos,
mortes, conflitos, heranças, comemorações e reconciliações. Esse mote já
bastaria para nos prender diante da tela. Todavia ela é muito mais que isso.
Através do clã dos Crawley, família de nobres ingleses, e de sua majestosa Casa
(assim mesmo com maiúscula, o sentido é muito mais amplo que um imóvel,
designou no passado a família senhorial e todas as suas propriedades e poderio),
Downton Abbey, temos verdadeiras aulas de História e estórias diversas que vão se
multiplicando a cada episódio. Sem deixar de mencionar cenário, figurino, fotografia
e roteiro de rara beleza.
A
série cobre as primeiras décadas do século XX e faz cruzar com o cotidiano da
família os principais acontecimentos e mudanças sofridas pela Europa, tais
como: O naufrágio do Titanic, A Grande Guerra, industrialização, doutrinas
variadas, papel crescente da imprensa e da ciência, conquistas femininas e
muitos outros eventos que teimam em sacudir as cortinas e tapetes da rotina
aristocrática da família e de seus empregados. Aproxima-nos dos grandes
romances do século XIX com os seus protagonistas fortes e densos e suas casas emblemáticas como o Ramalhete dos Maias.
Aliás,
um dos pontos altos da trama é a complexa convivência entre os patrões e
empregados pelos corredores, alas e andares da Casa. Downton Abbey é a grande protagonista
da narrativa, através dos espaços arquitetônicos, geográficos e sociais dessa
casa/palácio temos um microcosmo da sociedade inglesa e, por extensão, um
retrato de todas elas. Ela é a um só tempo metáfora e metonímia do social e do individual
da humanidade dividida em classes e todos as complicações que isso pode gerar
através dessa planta baixa que nos habita, salas, quartos, saletas, vestíbulos,
jardins, biblioteca e múltiplas e incontáveis gavetas.
A
Casa desdobra-se em dois mundos, os andares de cima, dos patrões e os andares
de baixo, dos empregados. É dever dos “de baixo” zelar devotadamente pelo funcionamento
impecável dos “de cima”. Aparentemente, esses dois mundos são separados, mas se
misturam e se unem em muitos momentos através do poder incontrolável dos
afetos. Destaquemos que uma das filhas do clã, Lady Sybil casa-se com o revolucionário chofer ou a bela amizade
entre Lady Mary e o fiel e afidalgado
mordomo, Mister Carson, que atravessa
os cômodos da casa. E o melhor é que não há maniqueísmo algum, o bem e o mal independem do status social e habitam as duas alas em uma sofisticada rede de intrigas e sussurros.
Há
uma espécie de espelhamento dos dramas vividos pelos dois extremos da mansão.
Mesmo com a distinção absoluta de classe e a distante mobilidade, os problemas
humanos igualam-se em sonhos, projetos, alegrias e sofrimentos diversos.
Durante a Guerra essa percepção se intensifica, as dores e os amores são para
todos, a nação estratificada se une contra as ameaças
externas. E o mundo começa a mudar até mesmo para aquele clã, mais antigo que a
própria Inglaterra, segundo a Condessa-mãe.
Fora
dos muros da Casa tudo que aparece na trama gira em torno dela num modelo ainda
quase feudal. A vila dos Crawley, as caçadas, os pequenos comerciantes, as idas
a Londres de trem ou nos recentes automóveis surgem quando os moradores saem
dos limites da propriedade. Visitantes que vão e vem, convidados e hóspedes
variados os visitam com propósitos diversos. Todos querem entrar naquele “reino”
e é muito difícil sair daquele universo.
Eu
também me rendi a ele e em vez de começar a assistir às outras séries, teimo em
rever os episódios e desfrutar da companhia dos Lordes e Ladies, Mordomos e Governantas, Condes e
Condessas, Valetes e Aias, e me deliciar com o humor inglês destilado
por Lady Grantham e com os belos
jantares feitos pela Sra. Patimore, ou
com os romances tumultuados de Lady Mary e o amor incondicional de Anna e Battes. Para mim é a série das
séries, mesmo que não conheça as outras!