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terça-feira, 27 de setembro de 2016

Velho Chico, um parêntesis para a arte antes do final


“A literatura existe porque a vida não basta” Fernando Pessoa

 

 

Pela proximidade de tempo que falta para o fim de Velho Chico iria escrever novamente sobre ela só depois que o seu final fosse ao ar, para fazer uma avaliação geral dessa estupenda trama, mas a força do capítulo de ontem me impôs que viesse aqui fazer esse texto, uma espécie de parêntesis antes da conclusão.

Os expectadores dessa excepcional novela devem ter sentido as mesmas emoções que eu senti ontem ao assistirem à solução ficcional escolhida pelos autores/diretores para driblar a ausência do seu protagonista. Ele teve que  sair bruscamente antes da festa acabar, num roteiro canhestro escrito pela dramaturgia irônica da vida. Roteirista cruel e mal assessorado pelos contrarregras e continuistas que nos deixarão sem respostas para tão malvado desfecho. De forma bela e sensível, sim também há beleza nas coisas tristes, eles transformaram a ausência em presença através dos recursos técnicos proporcionados pelos fios mágicos da arte.

Santo foi ontem um espectro de olhar panóptico que acompanhava todos ao seu redor e por eles era também acompanhado. Ele foi a câmara clara que tudo vê e é separada dos outros por uma espécie de neblina que embaçava sua percepção e a nossa também, divina metáfora de um muro invisível que separa o mundo dos vivos e dos mortos. Depois de sua partida toda novela passou a articular sentidos dobrados, jogos de linguagem, alegorias variadas que parecem incessantemente remeter à sua morte e a de todos nós. É como se todas as cenas posteriores ao seu desenlace, de alguma forma, portassem um sentido duplicado que aponta para a “indesejada das gentes” que o colheu na terceira margem do rio e o pôs como passageiro da Gaiola dos Encantados. Tudo parece deixar no ar notas de incenso, cheiro de velas e todas as músicas soam como um longo réquiem.

Duas cenas ontem exigiam a presença de um pai, o jantar de noivado e o casamento de “seus filhos”. A cena da mesa, amplamente explorada pela literatura como lugar de comunhão, pôs Santo na cabeceira, lugar onde devia estar e cada olhar das outras personagens indicava sua presença. A fartura da mesa, a reconciliação com Luzia, o anúncio da gravidez, o brinde com vinho formaram um buquê de imagens vivificantes que apontam para a continuidade da vida, apesar dos dissabores, apesar dessa exigência bruta de seguir adiante sem nossos afetos. Todos que já viveram suas perdas, já sentiram o que os atores sentiram e transmitiram ontem, essa ausência-presença daqueles que se foram para o undiscovered country, sobretudo, nas datas festivas como eternizaram os versos da canção popular “naquela mesa está faltando ele e  a saudade dele está doendo em mim”.

A ficção também pôs Santo no altar na condição de pai emocionado que leva os filhos ao enlace. E o padre em seu eloquente discurso cruzou a ficção de novo com a vida ao falar daqueles que não se fazem presente em corpo, mas em espírito. A vida passou uma rasteira na arte, mas a arte com seu poder incalculável driblou a vida e manteve vivo Santo dos Anjos, pena que só pelo breve instante da ficção. E deixo aqui minha eterna admiração para os atores das cenas de ontem, a vida e arte exigiram muito deles, muito mesmo. E todos eles captaram a lição de Drummond no poema:

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

 

sábado, 17 de setembro de 2016

A morte e a morte de Santo dos Anjos ou a vida como representação


Nessas últimas 48 horas o Brasil está vivendo um luto com a morte prematura e enigmática do ator Domingos Montagner. Guardada às proporções, tal comoção nos remete às mortes de Airton Senna, Tancredo Neves ou Princesa Diana. Escolho esses três justamente pelo caráter simbólico que representavam suas imagens. Não morreram apenas uma pessoa em si, mas os mitos que elas representavam. O atleta bom moço que nos trazia alegrias com as bandeiradas do domingo, o político símbolo da democracia e a linda princesa dos contos de fadas em forma de gente normal.

Parece-me que junto com a morte de Santo dos Anjos (optarei por chamá-lo pelo personagem e não pelo ator, quero me iludir que foi ele que morreu), perdemos mais um mito e aquilo que seu personagem encarnava:  o homem decente, justo, generoso e de beleza viril que nos fazia acompanhar a novela com aquela empatia e sensação de intimidade com o ator. Não foi a morte em si que nos espreita em cada segundo que nos chocou, mas a forma assumida pela “Indesejada das gentes” para abreviar uma história de vida tão interessante que começou nos humildes picadeiros e com muita estrada e poeira  alcançou o papel de principal no horário nobre.

Para nós estudiosos da Teoria literária romperam-se as barreiras entre realidade e ficção de forma tão abrupta que nos deixou atônitos e perturbados com tamanha estranheza. Na terceira margem do rio, ficou a mocinha de um lado, o redemoinho no meio e o herói morto ao fundo do rio, com algum suspense e esperança curta de ter sobrevivido para adensar a crueza da narrativa. Mas não foi invenção do autor, foi o imponderável da vida que escreveu essa triste cena. É sabido que nas grandes histórias os heróis não morrem, eles atravessam todas as expiações e chegam ao fim da trama nos brindando com finais felizes. Ulisses passa cerca de 20 anos na estrada e volta para sua Penélope.

Esse nosso herói contemporâneo, encarnado visceralmente pelo ator, não voltará para sua esposa e seus três pequenos Telêmacos. A res factae atravessou a res ficta com uma força tão bruta que instalou em nós uma agonia semelhante à perda de um amigo. A morte veloz e furiosa nos fez perder o chão e o prumo e ficamos por longas horas em silêncio, sensação própria dos lutos.

A duplicação do drama vivido pela personagem ( um dos motivos que fizeram a morte do ator em iguais circunstancias ser tão insólita), morte e ressurreição pelas mãos da mocinha e das várias místicas presentes na novela, infelizmente não se repetirá com o homem. Ele não voltará para o emocionante abraço de Bento, nem para o colo de sua mainha Piedade, e mais triste ainda, não voltará para o abrigo dos seus afetos verdadeiros. Todavia, como toda a novela é construída de forma simbólica, a ressurreição se dará pela via alegórica também. Essa personagem e sua morte tão cercada de mistérios marcarão para sempre a história da teledramaturgia brasileira e a morte e a morte de Santo dos Anjos permanecerá no nosso imaginário para sempre.

Para encerramos essas incelências para Santo dos Anjos quero lembrar de Fernando Pessoa. Nas horas brutas da vida, precisamos recorrer aos nossos mitos internos, a religião ou arte. Em uma cena da novela passada há alguns meses, Maria Tereza recitou um poema de Álvaro de Campos chamado Adiamento que agora mais força ganha. Não, não adiemos nada. A vida é hoje e como diz outros versos de Pessoa, através de Ricardo Reis: Não procures nem creias: tudo é oculto.

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

                      Requiescat in pace, Santo dos Anjos.

 

 

 

 

 

domingo, 4 de setembro de 2016

Justiça: Crimes, castigos e narrativa prismática


A minissérie Justiça, escrita por Manuela Dias, autora que já mostrou a que veio em  Ligações perigosas, tem nos surpreendido a cada capítulo com sua narrativa sofisticada que sonda os limites da moral humana. Através de 4 histórias, aparentemente independentes, a trama tem mexido com nossas emoções e piorado a noite dos insones, já que cada caso continua conosco sem chances de fazer calar. Eles ficam ecoando em nossa consciência e nos coloca em constante dúvida sobre os dilemas dos protagonistas.
 
Cada história, cada uma a seu modo, através de vidas interrompidas por fatos destruidores, se assemelha por cumprir um ciclo temporal de 7 anos e confundir as relações binárias possíveis entre  crime/castigo, justiça/injustiça, vingança/perdão. É difícil, diria impossível, escolher qual é a  mais profunda. Ao lado dos dramas principais que vai do assassinato à eutanásia, do tráfico ao estupro, temos infinitas tramas paralelas, como o preconceito racial, os vídeos vazados, as campanhas políticas, a prostituição, as gritantes diferenças sociais (a cena do cemitério com Rose procurando o túmulo da mãe foi sintomática desse abismo que separa as classes na vida e na morte), a crueza dos presídios, as relações trabalhistas, os meandros do direito, dentre tantos outros. Aliás, esse último é explorado nos seus diversos sentidos. Houve uma cena que julgo ser o eixo da série.

A personagem Elisa, vivida por Débora Bloch, mãe da filha assassinada pelo dantes bad-boy Vicente (a cena da morte foi talvez a mais forte até agora, uma releitura comovente da Pietá),  é um professora de Filosofia do Direito e no início de sua aula ela falava sobre o conceito de moral que sustenta essa disciplina e narrava alguns casos para que os alunos opinassem de acordo com o conceito de moral de cada um. Esse parece ser o mote da trama. A série nos coloca na condição de jurados e para nos dar elementos para esse julgamento vai narrando os casos através de diversos ângulos do social e do humano. E se as histórias em si são pungentes e carregadas de dor, a forma de narrá-las é um espetáculo extra.

Através de uma narrativa prismática, somos convidados a mirar cada drama sob variados pontos de vista, não cabe nessa trama opiniões absolutas sobre nada. Tudo é e não é a depender do foco de luz lançado sobre o prisma. A estratégia narrativa cruza as histórias de uma forma surpreendente, encaixando os fios e tecendo uma espécie de tapeçaria na qual tudo acontece ali do nosso lado, mas só é realmente importante o nosso problema, exatamente como na vida.

Destacam-se também a qualidade dos diálogos, a trilha sonora, a caracterização das personagens (Adriana Esteves espetacular), a cidade de Recife que também ocupa um lugar de personagem na trama, como espaço tentacular, ora solar, ora sombrio, ora becos, ora avenidas, ora biroscas, ora restaurantes finos. Eis uma série que marcará a nossa dramaturgia e nossas memórias e alimentará nossa insônia com os fantasmas morais que são deles e agora nossos também. Continuemos na nossa posição de júri e de espectadores /expectadores ávidos por Justiça.