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segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Assédio: O médico é o monstro


O famoso romance inglês O médico e o monstro de Robert Louis Stevenson, conta a história do prestigiado médico Dr.Jekill que faz pesquisas sobre o comportamento humano, numa dessas experiências acaba criando uma droga que faz vir à tona seu lado animal adormecido, o Mr. Hyde (no inglês o verbo hide, esconder, ocultar; Mr. Hyde é a face oculta do bom Dr. Jekyll), tal livro representa um dos maiores clássicos do terror psicológico, bem típico do cientificismo da época vitoriana. É impossível assistir à série Assédio, exibida atualmente apenas no aplicativo Globoplay (só foi ao ar na TV aberta o primeiro episódio), e não associar ao livro publicado no século XIX e tantas vezes reencenado no cinema e nos desenhos infantis. Só que na série, ao contrário do protagonista ficcional, o médico é o monstro e infelizmente não é só um ser imaginário.
Baseado no livro A clínica: a farsa e os crimes de Roger Abdelmassih de Vicente Viladraga, adaptado para a televisão pelo texto preciso de Maria Camargo e direção de Amora Mautner, a série perscruta os corredores da clínica (laboratório do médico/monstro) com seus insondáveis segredos, a mente labiríntica de todos os envolvidos e, sobretudo, o sofrimento individual  das vítimas, mulheres que buscam naquele sombrio local o milagre da vida que a natureza lhes negou, mas aquele médico das estrelas poderia resolver.
Creio que muitos de nós já conhecíamos o perfil do Dr. Roger, antes dos seus crimes virem à luz, de algum programa da televisão ou revista semanal, nos quais ele expunha com toda pompa e circunstância os bebês por ele vindos ao mundo, algumas vezes filhos de celebridades que gostavam de repetir “foi Dr. Roger quem fez”. Auto apelidado de Dr. Vida tal sua prepotência (na série Roger Sadalla), esse psicopata é representado por Antonio Calloni com total competência, chegando a nos provocar o asco inevitável. Todavia, passamos a ver sua migração das colunas sociais e afins para as páginas policiais através da denúncia de mulheres vítimas de seus ataques. A série é muito mais que a representação ficcional da história de ascensão e queda de um monstro, ela é também a consagração da força das mulheres que se uniram em prol dessa dor inominável, serem violentadas num momento de total fragilidade.
Todas as vítimas tiveram suas vidas destruídas ao cruzarem o portão daquela bela clinica que escondia horrores em suas saletas de vidros baços onde à meia luz e, aproveitando-se algumas vezes do torpor do anestésico, o monstro agiu impune por anos, condenando essas mulheres ao sofrimento do silêncio, da dúvida, da escuridão e da solidão tão bem retratados na tela por cenas escuras e ambientes fechados.
Destaquemos a qualidade artística da produção tão rica em detalhes e potência simbólica (talento já mostrado por Maria Camargo na adaptação de Dois irmãos). A começar pela música de abertura, Silent Night, traduzida para o português por Noite Feliz, que simboliza a um só tempo a festa cristã, como também a silêncio e a solidão. As mulheres com desejo pelo nascimento (natal) de filhos com ajuda da ciência que lhe acenava, tinham seu sonho atravessado pela violência sexual que lhes impingia o silêncio e o medo. Signo irônico presente na letra e na condensação de sentimentos cristãos presentes na trama, que vão da culpa à falsa fé apregoada pelo Dr. Vida. Na abertura também temos, como numa espécie de caleidoscópio, diversas imagens aparentemente desconexas, mas que dão uma unidade  à história, a agulha, o sangue, as pílulas, as imagens sacras dentre outras.
Quanto aos índices simbólicos dos sentimentos vividos pelas personagens temos muitos exemplos. O cofre, onde a sofrida esposa de Dr. Roger, Glória, vivida com maestria por Mariana Lima (uma personagem de uma complexidade impar, na sua primeira aparição já é possível perceber sua carga emotiva) guarda as fotografias das traições do marido aponta para toda a sua agonia recolhida que acaba por se transformar num câncer que a mata lentamente assim como as imagens das câmeras, segundo a fala de uma personagem, ela tinhas duas doenças, a outra era ele. A relação edipiana do médico com sua mãe e a opressão com os filhos e netos nas cenas da mesa/casa são sinais de quem era o homem de verdade na intimidade. A xícara tão cheia que transborda inundando a casa da personagem de Adriana Esteves, vítima com papel chave na narrativa com seu vestido vermelho e seu isolamento, uma atriz completa que sabe ir da comédia rasgada ao drama absoluto capaz de nos assombrar na série com seu silêncio eloquente. A cena da lâmina de barbear interpretada pela baiana Maria José no banho, vivida por Hermila Guedes, outra personagem que junto com Odair (João Miguel), seu marido caminhoneiro desonrado, nos faz ter mais ódio ainda do criminoso. São inúmeros detalhes que compõem esse intricado mosaico de dor que vai lentamente sendo costurado como num triler psicológico de alta tensão.
Voltando para a força e união das mulheres que só vão ganhar voz e luz a partir das redes sociais e de ações investigativas encabeçadas na série pela jornalista Mira Simões que se doa por inteiro para solucionar essa série de atrocidades, inclusive negligenciando sua própria vida (a cena de Martim no carro é desesperadora) e se encarrega de costurar os fios soltos durante tantos anos. Tal corrente em busca de justiça vai ganhando corpo na abertura de cada episódio quando os nomes das mulheres vão se enfileirando em série e crescem a cada capítulo, representação alusiva da força que ganham quando se juntam e rompem o cerco de silencio, fruto de uma estrutura social repressora que criminaliza a mulher abusada e põe seu drama sob dúvida.
 É uma série muito forte, exige coragem para quem a fez, exige coragem para quem a assiste, exigiu coragem de quem teve coragem de denunciar e investigar, em muitas cenas fechei os olhos e senti repulsa, nada comparado ao drama real dessas mulheres, contado individualmente através de algumas delas. A justiça não foi perfeita, mas ao menos o ídolo foi destronado e já não poderá fazer mais vítimas. A vida pode ser muito pior que a arte e aqui muito além do entretenimento, a teledramaturgia presta um serviço para a sociedade. Quando a violência grita, grite. O silêncio pode criar outros monstros.


terça-feira, 16 de outubro de 2018

O Segundo Sol nasce para todos


A novela Segundo Sol encaminha-se para o final e segue aquecendo seus espectadores nessas últimas semanas. Como um dos elementos estruturantes do folhetim tradicional temos a transformação de personagens más em boas depois de passar por expiações ou também a famosa volta por cima, no melhor estilo “os humilhados serão exaltadados.” Na primeira categoria temos Rochelle e Roberval, na segunda Zefa e Nice.
Rochelle, a infante terrível da Bahia, retrato de uma educação permissiva feita de vontades, mimos e omissões, protagonizou cenas de caráter desprezível como as armações contra a irmã, o desprezo pelos pais e desrespeito por todos que ela julgava inferiores à herdeira do império Ataíde. Agora, vítima da Síndrome de Guillain-Barré (novela prestando papel informativo, merchandising social), começa seu aprendizado pela dor, quem antes ela maltratava são os únicos que lhe estendem à mão e cuidam dela com doação integral. Foi preciso chegar literalmente ao chão para chamar a mãe de mãe e sentar numa cadeira de rodas para ver o mundo de outra perspectiva. Já Roberval começa a se curar de tanto ódio e sede de vingança para novamente merecer o amor de Cacau e no fundo obter o que sempre quis, um lugar na casa dos Ataíde, mas para isso teve que suar a camisa de novo, voltar ás origens.
Zefa e Nice, minhas coadjuvantes preferidas, estão ganhando vez e, sobretudo, voz, tendo coragem para enfrentar seus homens opressores. A cena de Zefa intitulando-se como matriarca da família e esbofeteando Severo (símbolo da decadência burguesa) foi um espetáculo à parte. O seu micropoder antes silencioso, agora ecoa no casarão em franca dissolução, sobre o qual ela tenta manter de pé ao menos os laços afetivos. Nice, através de seu dom, está retemperando sua vida e construindo um novo cardápio de opções ao lado de suas filhas, enquanto Agenor se dissolve na solidão que provocou ao maltratar todos.
Mas nem só de redenção vive a trama, embora o Segundo Sol possa nascer para todos. O casamento de Clovinho e Gorete foi uma comédia musical para ninguém botar defeito, com direito ao Clown vestido apenas com uma bandeja, creio que ninguém resistiu no sofá e deu uma requebrada ao som do hit do verão 2019 Sal na pele, um perfeito clip do axé nos tempos áureos . Quanto ao núcleo principal, a quadrilha de JEC começa a acertar o compasso da justiça final: Valetim que era filho de Karola que agora é filho de Luzia que é mãe de Ícaro que é pai do filho de Rosa que era parceira de Laureta que era irmã de Remi que era filho de Nestor embora pensasse que fosse de Dodô que é casado com Naná que é mãe de Beto que é irmão de Yonan que é pai do filho de Maura, aliás doador (Ufa!), não é fácil acompanhar essa genealogia, mas nós estamos com os DNAs em dias.
Sigamos nos aquecendo com o Segundo Sol que já começa a se por, mas ainda briha com fulgor, ainda mais quando aqueles postais de Salvador nos faz crer que a depender do ângulo a Bahia é a terra de todos os cantos, encantos e axé. Salve, Pai Groa! Que bom seria se o Delegado Viana recebesse um caboclo em plena invasão do terreiro como num romance de Jorge Amado.