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sábado, 21 de janeiro de 2017

Dois irmãos: As mil e uma noites de Nael...


A série Dois irmãos nos apresentou ontem seu último capítulo com a maestria dos grandes espetáculos. Um filme de arte exibido na televisão. As páginas do romance homônimo de Milton Hatoum ganharam vida pelas mãos hábeis de Maria Camargo, pela regência inconfundível de Luiz Fernando Carvalho, por uma produção de arte minuciosa e por um elenco que nos fez perder o fôlego em vários momentos. Os gêmeos rivais levaram às últimas consequências seu desamor desmedido para desespero e ruína da família, protagonizando a cena bíblica já antevista no mote da temática (pobre Zana,  ela era sim mãe de Caim e  Abel).

Havemos de destacar na série, ontem especialmente, a grande força dos símbolos. A casa desmoronando, as paredes nuas de lembranças, as águas sujas tudo devastando, as folhas secas, os móveis sendo arrastados ou encobertos (amortalhados), os sobreviventes da casa lembrando náufragos que tentam salvar alguns poucos objetos em meio aos destroços. Um conjunto de imagens que corroboram a ideia de decadência do clã. A casa, dantes fortaleza, sucumbe também, assim como seus membros.

Dentre os símbolos explorados ontem, não podemos esquecer o sangue que escorre da rede após a cena violenta entre os irmãos (um é calculista, fere sem sujar as mãos. O outro, força bruta, age agressivamente). Um elemento importante na simbologia familiar – o laço de sangue – foi utilizado para dar ênfase ao horror do quase fratricídio cometido por Omar. Domingas tenta lavar as marcas, esconder sempre as nódoas com sua servidão, mas o sangue persiste e suja as mãos da matriarca. Para Felipe Sellier[1], a história de Caim e Abel ecoa fortemente no imaginário dos escritores como fonte de inspiração: “o ódio de um irmão, o derramamento de sangue, a agonia e as andanças do culpado, a proliferação da violência constituíram uma surpreendente parábola, sempre presente nas literaturas ocidentais.”

 A rivalidade bíblica ambientada em Manaus no seio de uma família libanesa retomou tão bem esse tema universal e fez a pequena história cruzar-se com a História do país, nos emocionando verdadeiramente com a o capítulo sobre a ditadura e o AI5. Naquele dia tivemos muita pena de Omar, em Laval ele perdeu muito mais que um mestre, perdeu sua filiação a algo que o fez mais humano.

A atuação de Zana no seu grand finale é digna de aplausos. Giardini brilhou como num solo de ópera, ópera dos mortos, ao rever seus ancestrais, ao expor sua senilidade, ao apego à casa e às lembranças, ao ecoar sua eterna pergunta sobre a paz entre os irmãos. É interessante perceber em toda a trama a recorrência às fotografias e espelhos, rejeição da ideia de que os dois eram um só...Omar tratava sempre de destruir o que lhe lembrava a imagem do outro ...

E o que dizer de Nael, Irandhir Santos, personagem que considero um dos melhores narradores da contemporaneidade. Sherazade que também narrou para não morrer, sempre à espreita, sempre a observar por ângulos especiais e em closes únicos (os enquadramentos da câmera destacaram bem seu foco narrativo de soslaio) os segredos ditos e não ditos daquela casa. O herdeiro dos despojos, os ouvidos de Halim, o filho bastardo da casa, o que recolheu as histórias e as costurou. Ele sobreviveu para contar, saiu dos fundos da casa para frente de uma sala de aula, apesar de tudo sorriu ao final, singrando o rio da vida. Ele a tudo assistiu, ouviu e procurou sentido através da escrita. Vale ressaltar, o poema de Drummond que apareceu no início e no final, atando as pontas da história através da casa (Liquidação, ver postagem anterior).

Como o Rio Negro e o Solimões, imagem final da série, que não se misturam em razão de suas diferenças, os dois irmãos jamais se uniram, causa da ruína da família, metaforizada pela casa. Mas, causa também de podermos ler e ver uma das mais belas produções de nossa literatura e teledramaturgia. Maktub! Ainda bem que estava escrito....



[1] Verbete Caim do Dicionário de Mitos Literários organizado por Pierre Brunel


sábado, 14 de janeiro de 2017

Dois irmãos: A escolha de Zana


 A série Dois Irmãos, adaptação do romance homônimo (2000, Prêmio Jabuti em 2001) de Milton Hatoum pelas mãos de Maria Camargo, apresenta-se como mais uma produção de altíssima qualidade de uma obra literária vertida para as telas da televisão. Sabemos que não é tarefa fácil transmutar a linguagem da literatura com suas peculiaridades múltiplas para outro veículo tão diferente e ao alcance do grande público, todavia considero que toda a produção cumpriu muito bem sua empreitada (a série já estava pronta há algum tempo, esperando hora oportuna para exibição).
Em sua primeira semana tivemos grandes momentos dramáticos de profunda reflexão sobre os melindres das relações familiares sob uma iluminação difusa que nos convida a olhar com mais vagar para aquela casa e seus mistérios. Aliás, destaque-se como um dos pontos altos o belíssimo poema Liquidação de Drummond (Boitempo, 1968) usado como epígrafe na abertura da série:

       A casa foi vendida com todas as lembranças
       Todos os móveis todos os pesadelos
       Todos os pecados cometidos ou em via de cometer
       A casa  foi vendida com seu bater de portas
      Com seu vento encanado sua vista do mundo
                  Seus imponderáveis
                   Por vinte, vinte contos.


O tema do poema dialoga diretamente com um dos assuntos discutidos no livro e bem recortados pela adaptação: A casa como portadora de memórias, espaço guardião de bens intangíveis e sua herança imponderável. A direção de Luiz Fernando Carvalho (como já disse antes sobre Velho Chico) é inconfundível, ele possui uma assinatura autoral que confere tintas rebuscadas e sensíveis em seus trabalhos, optando por soluções narrativas sofisticadas e respeitando bastante o texto original. A narração simultânea em três tempos através da voz de Nael (Irandhir Santos nos conduzindo brilhantemente), o filho da casa na fala resignada de Halim (sabemos a razão ou a repudiamos), confere à trama um tom de segredo sussurrado que nos faz lembrar o ditado popular que as paredes têm ouvidos, ou olhos...
A narrativa se insere na tradição do tema bíblico da rivalidade fraterna presente em Abel e Caim e Esaú e Jacó, páginas já divinamente reescritas por Saramago (Caim), Machado de Assis (Esaú e Jacó) e Hélder Macedo (Pedro e Paula). Hatoum atualiza o assunto e coloca os gêmeos numa família de libaneses que migraram para Manaus em um contexto histórico que cobre momentos emblemáticos do Brasil no século XX. A razão da intriga entre os irmãos se dá desde o nascimento, quando Zana faz sua escolha por Omar, por considerá-lo mais frágil. Seu caçula cresce sob sua proteção desmedida (Édipo forte) para desespero do pai, do seu outro gêmeo, Yakub, que teve que contar com o colo servil de Domingas (aula sobre nossa colonização) e da irmã caçula de fato, quase invisível na casa. Na cena do parto, a alegoria do vaso se quebrando (o duplo partido) indica essa instabilidade ou rompimento da unidade que Omar traria para aquela casa. Eles eram muito diferentes em tudo, mas a mãe sempre reafirmava que eram um mesmo corpo...Já o pai sempre soube...
Não importa o que de bom Yakub fizesse, o caçula queria sempre lhe roubar o protagonismo (ou primogenitura) à força. Vários outros sinais colaboram com essa ideia, o pássaro rasga-mortalha, o rolar da escada a baixo,  a posição fetal, o pesadelo do pai, a falta de comunicação, o ódio do professor, e por fim a mais forte, a disputa por Lívia, desencadeadora da cena crucial da trama, a razão da cicatriz que acabou por separar de vez os dois irmãos.
Em linhas gerais a série é digna de elogios, a representação das famílias árabes, a mistura de culturas, os closes bem fechados, o amor-eros de Halim e Zana, o figurino, os cenários, os atores (Mateus Abreu, interpretando os gêmeos adolescentes é uma grata revelação e o Michel Melamed, parece talhado para o Professor Laval e seus poemas malditos ), as técnicas cinematográficas, os diálogos do "avô com o neto" no curso do rio, retardar de algumas ações simulando o vai e vem das memórias ( ver  a lição machadiana no capítulo LXXI de Memórias Póstumas) e a inserção de cartuchos históricos entremeados na ficção, dentre outros elementos, fazem da narrativa um deleite, mas não um deleite fácil, é preciso atenção e concentração para os detalhes insuspeitáveis daquela casa...

E quem não leu o livro ainda, recomendo que o faça com urgência, é um dos melhores romances da Literatura brasileira, tive a sorte de conhecê-lo nas aulas fascinantes de Teoria da narrativa no Doutorado na UFBA, sob a regência de minha orientadora Mirella Márcia Longo Vieira Lima que, assim como Nael, nos soprou que aqueles segredos valiam a pena e agora valem a tela...Continuemos olhando aquela casa, muitas emoções ainda nos esberam, brimos!