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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

O Outro Lado do Paraíso: Entre a Hybris e a Mershandising Social

O tema da vingança atravessa a história da Literatura. Na mitologia grega temos como um dos grandes exemplos a personagem da tragédia de Euripedes, Medeia, que para vingar-se da traição do marido, Jasão, mata os filhos que tivera com ele. Em Hamlet, o herói vacilante vê-se obrigado a vingar o assassinato do seu pai que fora morto por seu tio para usurpar o trono, ainda casando-se com sua mãe. Em O Conde de Monte Cristo, o protagonista volta para cobrar vingança contra todos que o traíram. Esse último serve de inspiração direta para O Outro Lado do Paraíso. As personagens que encarnam esses planos de vingança geralmente são marcados pelo que os gregos chamavam de Hybris, a desmesura ou desmedida, ou seja, para executarem seu plano de vingança nada os detém, são capazes de tudo, até memso desafiarem os deuses e os códigos morais e sociais.
Clara se aproxima dessa característica, movida pela sede de vingança, ou justiça, dependendo do ponto de vista, ela voltou disposta a reparar o mal que lhe fizeram, para só depois cuidar de ser feliz. Começou seu plano vingando-se do médico que lhe diagnosticou como louca, facilitando sua internação. Para esse ela trouxe à tona sua orientação sexual escondida sob as sombras das cortinas sociais. Refeitos do escândalo que revelou que o Tigrão era Tigrete, o drama tornou-se núcleo cômico da novela. Agora era a vez do delegado, pois seu plano é urdido em ordem crescente relacionado à proporção do mal que lhe causaram. O delegado Vinicius (Flávio Tolezani) engavetou suas várias queixas de agressão contra Gael, sonegando-lhe a justiça a que tinha direito e também reforçou sua falsa insanidade. A vingança contra essa personagem teve seu ponto alto no capítulo de ontem: A falha moral do delegado eclodiu, ele é um pedófilo com requintes de psicopatia.
Para chegar a Vinicius foi preciso enxergar com lentes microscópicas o drama de Laura, vítima de abuso sexual infantil cometido pelo seu padrasto. A jovem e talentosa atriz Bella Piero, vem desenvolvendo muito bem sua personagem marcada pelas cicatrizes no corpo e na alma (Sempre com roupas escuras que lhe cobriam todo corpo, sempre cabisbaixa, olhar assustado, com dificuldade de comunicação, ela encarnou bem o tom de seu papel). Não foi fácil chegar a ele, toda uma teia de indícios foi construída até a cena catártica do julgamento de ontem. A polêmica sessão de hipnose (deixo essa discussão de mérito profissional para quem entende, eu fico com a ficção) realizada por Adriana fez emergir de sua memória os abusos sexuais que sofreu.
Essa cena foi construída com muita sutileza, repleta de alegorias e símbolos (confesso que fiquei com medo de como seria mostrado). A casa de bonecas, num mundo em miniatura com cores solares (ecos de Alice no país das maravilhas), foi invadida pelas botas escuras e pesadas do criminoso com suas muitas mãos gigantes como uma criatura monstruosa que toda criança associaria ao perigo. A cena ficou num limite elegante entre o dito e o não-dito.
Voltemos ao capítulo de ontem. O julgamento do delegado me parece que irá figurar entre as cenas antológicas da telenovela brasileira. Todas as provas levantadas pareciam ser em vão para punir o criminoso, destaque para a atuação do advogado de defesa, com retórica irretocável conseguia desfazer e refutar todas as acusações. Até que surge a testemunha-chave, como nos grandes filmes de tribunal nos quais tudo acontece nos 45 minutos do segundo tempo quando o jogo parece perdido, a diarista que trabalhou na casa de Laura na época em que sofreu as sucessivas violações de sua infância.
Tiana, Ilva Niño (nossa eterna Mina, que acaba de se recuperar de um câncer, borrando as fronteiras entre realidade e ficção mais uma vez), numa entrada triunfal, revela todos os segredos que assistiu silenciosamente naquela casa com tanquinho de tartarugas. Num monólogo comovente pede perdão a Laura, que lhe perdoa em um balbucio eloquente. Diante do depoimento cabal, só coube ao delegado confessar tudo e revelar seus crimes hediondos, num discurso cínico típico dos psicopatas (humilhou a esposa-mãe ao extremo, outra grande atuação, sua face foi se transmutando ao longo do júri entre a segurança dúbia e o desespero comovente ao cair em si) e ainda apontando seu fel para o juiz e Sofia como as próximas vítimas do plano de Clara.
 Daí em diante acho que foi o clímax de ontem, a reação da plateia, mostrada em cada face, em cada olhar, em cada gesto, tudo isso em silêncio, semelhante aos coros do teatro grego, eles iam com seus gritos silenciosos mostrando a indignação diante daquela máscara que caia e revelava a verdadeira face de um monstro. Quem assistiu ao julgamento, boa parte das personagens da novela, representou metonimicamente um júri popular que não perdoa o abusador infantil, era a personificação da opinião pública.
A chegada de Vinicius à cadeia, sua descida aos infernos, foi também significativa. Ao se despir de suas roupas lentamente para vestir o uniforme de presidiário, a câmera deu um close em suas botas, símbolo de seu poder sobre as vítimas e foi logo avisado pelo diretor do presídio o que costuma acontecer com criminosos como ele na cadeia, de acordo com o código dos presidiários, certamente um spoiler do que ocorrerá.
Ao final do capítulo novamente surgiu a campanha contra o abuso infantil, dando álibis de verossimilhança para a trama, bem ao modelo Glória Perez, pioneira nessa estratégia de mershanndising social, trazendo campanhas reais para o centro da narrativa. É a ficção trabalhando a serviço da sociedade, esclarecendo, discutindo e informando sobre um tema tão complexo e necessário. Creio que cenas como as de ontem fazem muitas pessoas abrirem os olhos para essa questão grotesca e reafirmam os dados  estatísticos que sempre apontam que a maioria dos abusos sexuais são cometidos por alguém muito próximo e de “confiança”, gente acima de qualquer suspeita.
 Voltemos à Clara e sua Hybris, agora faltam 2, o Juiz e sua grande algoz, Sofia, mas há indícios de que há um outro vilão se anunciando, Renato (e em paralelo Gael vai se redimindo) e ela terá que reelaborar seus planos. O mal da vingança é que ela te cega, assim como a cobiça pelas esmeraldas também, e talvez o preço a pagar por ela, seja uma Vitória de Pirro, na qual os ganhos da guerra não valem tantas perdas no caminho. Mas no caso de Vinicius a justiça se cumpriu para nossa felicidade e emoção profunda durante o capítulo de ontem....Continuemos na plateia desse espetáculo...Fechem as cortinas para o monstro....Esse já foi expulso do Paraíso...


terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O Outro e A outra forma da água


                                                                               Para Chico Lima e sua cintilação do olhar

Assisti ontem nesse feriadão de Carnaval (esse é o meu bloco) ao novo filme de Del Toro, A forma da água, com mais de uma dezena de indicações para o Oscar. Curiosa a princípio pelo título enigmático, guiada pelo prazer que tive com O labirinto do Fauno, ansiosa para saber o motivo de tantas indicações e motivada pelas recomendações especiais de 3 amigos cinéfilos (João Evangelista, Gleidson Ramos e Juliana Salles), devo dizer que todos estavam certos, é mesmo um grande filme, daqueles que causam o tal estranhamento sistematizado pelos formalistas russos.
O argumento principal da trama é insólito (aquilo que não soe acontecer), uma faxineira muda apaixona-se por uma Criatura aquática estranha(meio anfíbio, meio peixe, meio homem) capturada nas águas da América do Sul pelos americanos em plena Guerra Fria, plano de fundo político do filme (em O labirinto o cenário de fundo é a ditadura de Franco). Ela trabalha em uma espécie de laboratório secreto bem aos moldes do clima de espionagem e sabotagem entre essas duas potências bélicas nos anos 60. Sua rotina maçante e quase robótica é despertada pela chegada da Criatura aquática.
Em um dos diálogos ficamos sabendo que para os nativos da região, a criatura era considerada um Deus, fato que se confirmará no final. Ancorado em excelente fotografia, cenários, trilha sonora, figurinos e jogo de luz, o filme nos remete  todo tempo à uma atmosfera onírica aos moldes dos contos de fadas (há ecos de Amelie Poulain). Vale ressaltar, que há muitos outros contos de fadas e lendas construídos através de laços afetivos entre criaturas de mundos diferentes ou espécies diferentes tais como A Pequena Sereia, A Bela e  a Fera ou King Kong dentre vários exemplos, inclusive nas diversas mitologias.
            O caráter fabular da narrativa é confirmado no início e no final pela voz de um narrador que nos introduz na trama, que mais tarde ficamos sabendo que se trata de Giles, o melhor amigo de Elisa, é esse o nome da protagonista. É interessante notar que para todos os seus superiores ela é a faxineira muda, mas seus dois amigos, Giles e Zelda (brilhantes coadjuvantes, Octavia Spencer arrebata como sempre, ele o gay artista velho e solitário, ela a faxineira negra e mal casada) seu nome é sempre pronunciado com muita força, pois um dos motes principais do filme é a comunicação com o outro, esse estranho.
Daí chegamos na tal alteridade (alter= outro), creio que a pedra de toque do filme. A Criatura, esse outro estranho, desperta sentimentos e interesses diversos a todos ao seu redor. Os interesses políticos das duas nações, o interesse científico do cientista russo, que tocado pelo seu lado de pesquisador acaba por arrepender-se de sua sabotagem e se aliará aos “sem voz” do filme para realizar a retirada da Criatura do laboratório e tentar salvar sua existência,  o interesse amoroso de Elisa e generoso de Giles que depois de mais uma decepção profissional e afetiva resolve ajudar no plano mirabolante da fuga, também entra aí Zelda que por sua amizade por Elisa completa a tropa da salvação. Todos esses motivados em dar um sentido às suas vidas vazias e a seus papéis subalternos, posição social ratificada sempre pelo Chefe do lugar, antagonista por excelência, tão prepotente que acha que Deus se parece com ele, jamais com a Criatura ou com Zelda.
A riqueza metafórica e alegórica do filme é composta de infinitas camadas que creio não conseguir alcançar em sua profundidade, daí tantos parêntesis nesse texto. Comecemos pela água, a grande imagem do filme, explícita no título. Se a água é amorfa e toma a forma do seu recipiente, ela terá um sentido único para cada um. E ela surge sob diversas formas, no ferver dos ovos, no banho, na chuva, no rio, e é claro na sobrevivência da Criatura. Símbolo de vida e erotismo, essa carga semântica literalmente extravasa e transborda na tela, como na gloriosa cena do encontro erótico-amoroso no banheiro ente Elisa e Ele (agora não mais a Criatura) que respinga por todo prédio, não gratuitamente construído sobre o cinema Orpheum.
O ovo, outra metáfora da vida, é alimento para Elisa e para Ele, que também lhe nutre com música e carinho. Os dedos apodrecidos do Chefe exalam o mal cheiro de sua essência (cena boa quando Giles amassa o seu Cadilac verde-azulado, modelo de sua arrogância). Os cabelos renascidos e a cura dos ferimentos de Guiles por Ele mostra o seu vigor voltando depois de tantas frustações e a sua TV sempre passando romances e musicais alimentam os sonhos de Elisa, que em uma das cenas protagoniza um filme, onde finalmente solta sua voz.
Semelhante aos heróis míticos, a origem de Elisa é desconhecida, uma criança encontrada à beira de um rio e criada em um orfanato. O Chefe sugere que a sua mudez seja fruto de suas cicatrizes no pescoço, alguém pode ter cortado suas cordas vocais, fato que fica em aberto no filme. Há uma cena em que esse déspota a assedia e a humilha, pois na sua fala destaca a sua mudez e cicatrizes como uma espécie de argumento que ninguém mais se interessaria por ela.
Como uma história sempre puxa outras e outras, A forma da água me lembrou o olhar dos cronistas viajantes sobre O Novo Mundo, esse novo inapreensível pelos moldes de olhos velhos. Francisco Ferreira de Lima pesquisador do tema e hábil navegador dessas águas no seu livro O Brasil de Gabriel Soares de Sousa & outras viagens (2009, 7 Letras/UEFS), versando sobre esse espanto sobre o novo que nos seduz e apavora, resume a tríade que rege o espírito dessa  literatura: “Susto, espanto e maravilha. Com essas três palavras atingimos o ser profundo da literatura de viagem: Antes que qualquer coisa possa ser dita ou escrita, o viajante experimenta desconcertante sensação intima, uma espécie de cintilação do real, como a bem denominou Francis Affergan(1987). Nenhum código, qualquer que seja, será capaz de domá-la porque elas a todos eles resiste. É só através  dessa cintilação que a alteridade pode ser vivida em sua inteireza”(p.106-107)
Se na Literatura de Viagem o Outro eram os mistérios do Movo mundo, em A forma da água o Outro era a Criatura, Ele, o sem nome, já em nossas relações O Outro também nos seduz e apavora e nessas diferenças conhecemos mais sobre nós mesmos, nem que para isso tenhamos que mergulhar nos mistérios das águas pronfundas....Como nos versos islâmicos citados no final do filme:
“Impossibilitado de perceber Sua forma, encontro você à minha volta. Sua presença me enche os olhos com Seu amor, acalma meu coração, porque Você está em todos os lugares.”