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sábado, 26 de maio de 2018

Sob e sobre o Segundo Sol: A morte e a morte de Beto Falcão



A nova novela das 21:00h, Segundo Sol, de João Emanuel Carneiro, começou antes de começar. A polêmica sobre a ausência de atores negros numa trama que se passa num estado onde a maioria da população é negra surgiu com força nos dias que antecederam sua estreia, assim que as primeiras chamadas foram ao ar. Como professora de literatura e estudiosa das relações entre Literatura e Telenovela, declinarei dessa discussão, pois concordo em parte com a questão que certamente traria mais verossimilhança para a trama, mas por outro lado, como defensora da arte como uma manifestação humana que não tem como função exclusiva retratar somente o real, defendo a novela como veículo de entretenimento e reflexão e sem esquecer que, sobretudo, é um produto mercadológico, por sinal o mais rentável da Televisão. A Bahia é só a moldura. Lanço, portanto, meu olhar para o terreno que costumo pisar, a análise textual.


 O título da novela já sugere a ideia de recomeço, por isso a passagem de tempo de 18  anos para que nós telespectadores, conhecedores do embrião da trama mostrada nos primeiros dias na novela, possamos compreender seus desdobramentos no tempo atual. E esses são muitos e variados. O eixo central gira em torno de Beto Falcão, cantor de Axé já em decadência que é convencido por sua entourage vigarista, irmão/empresário/canalha e namorada/ambiciosa/mau-caráter que ele vale mais morto que vivo, pois sua falsa morte faz com que  volte a valer no mercado artístico e publicitário, até romaria houve em sua porta mostrando a hipocrisia dos fãs que já nem lembravam do cantor. Daí todos lucram com o falso mito que se forma. São claros os ecos de Roque Santeiro, obra-prima de Dias Gomes. Assim como Roque, Beto vira mito e passa a viver de sua mitificação, como na fictícia Asa Branca que passa a ter no falso heroísmo de Roque sua principal fonte de renda. Até uma sombra de Porcina temos, a personagem de Débora Secco assume a postura de viúva oficial e vive para alimentar seus direitos autorais e manter vivo o legado do marido.


Além desse intertexto com o grande dramaturgo, autor de sucessos como Saramandaia e Mandala, temos também o diálogo claro com Jorge Amado, como não poderia ser diferente numa novela que tem como cenário Salvador. Inclusive houve uma cena em que Miguel/Beto lê Tieta do Agreste (por sua vez inspirada em A visita da velha Senhora, as relações entre os textos são inesgotáveis), aquela que volta para se vingar, assim como Luzia Batista (Cansada de Guerra, quanto sofrimento em tão poucos dias). Os influxos amadianos são muitos, mas gostaria de focar o olho na Casa Grande do núcleo rico da novela. Inclusive, a expressão Casa Grande e Senzala (Gilberto Freyre ainda tem muito a dizer sobre nós) já foi citada diretamente por Roberval, Fabrício Boliveira, que protagonizou uma cena magistral ao descobrir sua paternidade.


Filho do patrão com a empregada, aquela famosa “como se fosse da família”, transbordou sua revolta justa com um brilhante texto e sua saída da Casa sob uma chuva copiosa  deu mais dramaticidade à cena (nos remete também ao filme Que horas ela volta?). O discurso de Roberval nos levou a uma passsagem de Jubiabá:



 “A vida no Morro do Capa Negro era difícil. Viviam das tarefas no cais, carregando cargas pesadas ou do trabalho em casas ricas. As crianças já sabiam seu destino; o trabalho no cais ou em fábricas enormes. Enquanto isso, os meninos ricos iam ser médicos, advogados, engenheiros, homens ricos. Também, podiam ser escravos desses ricos. Antonio Balduíno queria outro destino, desejava ser livre como Jubiabá e Zé Camarão. Tudo o que fez depois, veio das histórias de valentia ouvidas à porta da casa da tia Luísa. E elas falavam daqueles que se revoltaram contra o trabalho escravo, dedicado ao branco. Mas, Balduíno era também moleque travesso, líder das coisas malfeitas no morro. 


Roberval, assim como Antonio Balduíno, deseja outra vida. Por agora, trilha caminhos tortuosos, aguardemos o que virá, é uma personagem que promete. Até então acho essa Casa o melhor núcleo da novela, com seus segredos, relações familiares complexas e seu cruzamento com o eixo central através da adoção problemática de Manuela, que acaba por reproduzir,com seu irmão Icaro, o mesmo drama de Roberval e o seu patrãozinho Edgar.


Passados os 18 anos, todos vivem sob esse segundo sol posto no passado que selou a separação entre Luzia e seus três filhos por artimanhas das vilãs Carola e Laureta, que volta agora para tentar reparar as injustiças sofridas e as pontas da sua vida interrompida. Seus três filhos são todos rebeldes e sofrem dramas diversos, drogas, rejeição, desajustes emocionais e farsas identitárias dentre outros conflitos.


Ainda destaquemos, nesse raiar do Segundo sol, a amoralidade de Laureta, uma Carminha mais perversa porque não gosta de ninguém, só pensa em lucrar e para isso não mede esforços, até leilão virtual de mulheres faz em sua mansão-club Sodoma e Gomorra (já deu saudade de Dona Caetana  e sua boate raiz), a bela amizade entre o Gringo e Luzia, o sotaque bem acertado de alguns como Ícaro (Chay Suede) e Ionan  (Armando Babaioff,). Tudo leva a crer que investiram bastante na pesquisa das expressões do nosso baianês, confesso que está massa ouvir tanto “mainha”, “se saia”, “oxe oxe oxe” e  “osadia”. E o colorido e a trilha sonora da abertura também estão de lenhar, a mistura de Cassia Eller com Baiana System ficou de torar.


JEC é conhecido como autor de tramas fortes, nos deu o maior sucesso dos últimos anos com Avenida Brasil, além de bagunçar nossa cabeça com A Favorita. O situo na linhagem de Gilberto Braga, com seus conflitos de forte carga dramática, jogo social em torno do poder do dinheiro, relações familiares densas e seus famosos ganchos que nos deixam ligados até o dia seguinte. Acho que O segundo sol até começou meio morno, mas já começou a esquentar....Continuemos na cocó, se ligue aí..

P.S. Eu sou baiana de Feira de Santana e creiam:  Existem muitas Bahias...




quinta-feira, 10 de maio de 2018

O outro lado do paraíso, algumas considerações antes do fim



Essa semana estamos acompanhando o final de O outro lado do Paraíso de Walcyr Carrasco. Não creio que seja uma novela que entrará para a lista das favoritas do país marcando seu imaginário, não a considero uma grande novela como um todo, mas digamos que seja uma boa novela, que cumpre seu duplo papel de entretenimento e discussão de temas polêmicos, com grandes pequenos momentos. Walcyr já nos deu belos banquetes dramatúrgicos  como em O Cravo e A rosa ou Amor à vida, já faz parte do panteão dos melhores autores e segue firme a nos contar boas histórias.

Dentre esses grandes pequenos momentos destaquemos como ponta de lança a atuação marcante dos atores da terceira e já quarta idade. Fernanda Montenegro que estamos acostumados a ver, em sua maioria, em papeis de mulheres sofisticadas e urbanas, encarnou sua Dona Mercedes com uma maestria que nos faz lembrar uma sacerdotisa ou sibila mítica. Sua sábia rezadeira nos deu lances emocionantes durante a trama, que vão do enfrentamento e vitória sobre a morte duas vezes (uma no começo da trama outro agora no final quando botou Zé Vitor para correr e fez seu “mal” escorrer pelas veias) a momentos de grande graça quando, como uma mocinha romântica, amarelou diante do altar onde seu noivo Josafá a esperava. E que parceria desses dois! Lembrando O amor nos tempos do cólera (ela mesma atuou na adaptação do romance de Gabo para o cinema) ou O Casarão, esses especiais amantes, mais de alma que de corpo, esperaram décadas para enfim viverem seu amor/cumplicidade/amizade especial. Ele, aquele homem cheio de dignidade e valores morais, se rende à sua amada que não consegue controlar de jeito nenhum, respeitando, mesmo cheio de medos, sua missão guiada por  “Eles”.


 E Dona Caetana, a decana do time, nossa Laura Cardoso, brilhando como a experiente cafetina entre os paetês, neons e segredos da Love Chic, acho que será um dos seus grandes momentos na TV pela desenvoltura e humor que deu o tom à grande Dama da Noite. Uma espécie de Fada Madrinha controversa para as primas do Bordel que vivem seus sonhos de Gata Borralheira, mostrando que nem sempre  "fazer a vida" é uma escolha. Mas Ana Lúcia Torre, também roubou os holofotes como Dona Adneia, no seu microcosmo familiar, dentro do seu AP de onde saiu poucas vezes, refletiu tão bem as agruras de uma mãe entre o modelo ideal de família que ela acreditava ser o melhor para seu filho até aceitar a família  que o faria feliz de fato. Dentro do seu AP tivemos as cenas mais engraçadas da novela, capitaneadas por ela e na sua crença na cura gay. Sua cena essa semana de aceitação do amor entre Samuca e Cido foi muito emocionante, após muito relutar (a apneia não colou) ela os abraça formando a família possível, amor de mãe em estado bruto. E seu monólogo posterior foi golpe de mestre do autor, ela sozinha rearrumando o novo lar, ajeitando as almofadas, recolhendo os farelos do bolo e se reinventando para aceitar que a felicidade do seu Tigrão  é com Cido (Zulu também surpreendeu) e chegando a constatação óbvia que não há cura porque não há doença. Sua voz foi uma espécie de voz da consciência social para a aceitação e conciliação.


Voltando ao núcleo central da novela, a vingança de Clara, ela enfim chega ao final da novela concluindo seu plano, só falta Sofia. Já um pouco vingada pela vida e tendo que ser cuidada por Stela, a filha que sempre rejeitou. Na cadeira de rodas ela ficou da mesma altura da “aberração” e teve que olhá-la de frente. O papel de Stela também é digno de nota, suas aulas de alfabetização para adultos iluminaram sua atuação. Durante sua recuperação tem que conviver com o que sempre quis esconder, houve alguma comoção na cena em que sua filha massageava seu rosto, mas ela é má por excelência e não há redenção para a vilã serial killer. Diferentemente de Gael que vem conseguindo a regeneração porque era dual. Depois de marido agressor punido pela Lei Maria da Penha, volta a ocupar os pensamentos da mocinha nada romântica. Como bom folhetim, ficou para o final a famosa pergunta Com quem ela vai ficar? Acreditamos que com Patrick, aquele amor cavalheiresco que mudou toda a sua vida para servir Sua Senhora, mesmo sem muitas garantias do final feliz.


Vale ainda lembrar que um dos temas mais fortes da novela foi a questão materna, como já disse em texto anterior. Foram muitos os modelos de relações de mães e filhos explorados na novela. Do abuso sexual pelo padrasto, da Grande Mãe do Quilombo, da mãe Naja que quer manipular a vida dos filhos e se redime pelo amor ao neto, da mãe que rejeita, da mãe-coragem que doa um rim, da madrasta que renega a enteada, da mãe adotiva Lívia que na hora do sequestro, dor extrema,  une-se a Clara e chamam Tomaz de nosso filho, aceitando que ele tem duas mães.


A novela em alguns momentos se perdeu um pouco se arrastando no meio do caminho, mas do meio para o fim recuperou o fôlego e nos fez ficar com vontade de assistir no dia seguinte. Aliás, ela passou a adotar o modelo do resumo do capítulo anterior e chama para o novo dia no inicio de cada episódio, ops, capítulo, imprimindo o ritmo de série à trama, pois essa filha do folhetim, que já foi radionovela, fotonovela, vai se transformando com os anos e se adaptando aos novos tempos onde enfrenta a concorrência de tantas outras telas, mas continua a nos convidar a sentar e assistir, torcendo pela justiça no final, onde o Bem sobrepuja o Mal, pois tudo que você faz um dia volta pra você, ao menos na ficção a Lei do Retorno é certa, com raras exceções...