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sábado, 1 de outubro de 2016

Velho Chico, penúltimas palavras


Entre 14 de março ( Dia da poesia) e a noite de ontem ( Vésperas das eleições municipais) o Brasil acompanhou Velho Chico, casamento feliz entre poesia e realidade. Novela que dividiu opiniões, não foi líder de audiência, desagradou muitos, mas na minha visão e na de tantos outros telespectadores entrará para a história da teledramaturgia brasileira como uma de suas melhores produções. Usando um trocadilho inevitável, será lembrada como um divisor de águas de nossa televisão. Esse texto final que ora escrevo, será o nono sobre a trama, por absoluta falta de tempo de escrever mais, pois cada capítulo suscitava em mim o desejo de correr à pena.

Creio que o principal já disse ao longo desses 6 meses, mas para louvar o final é necessário atar algumas pontas da arte e da vida. Guerra entre famílias  e dentro de famílias, amores proibidos, coronéis déspotas, cidadezinhas perdidas no sertão, padres conciliadores, heróis idealistas, tudo isso já foi contado e recontado ao longo dos 50 anos da novela brasileira, motes igualmente cantados em prosa e verso na nossa literatura. Então o que fez de Velho Chico algo especial? Um amálgama de temas, cores, formas, mitos, fotografia, lendas, arte, música, mistérios, texto, real e fantasia, planos paralelos, misturados em dose especial. Afinal se não houvesse magia nas receitas todos nós podíamos fazer os mesmos pratos com os mesmos ingredientes, mas sabemos que isso não é possível... Há segredos insondáveis que geram resultados inusitados...

Primeiro destacaria a direção de arte, com sua riqueza de detalhes, olhar de míope para as miudezas desse sertão. Podemos nos extasiar de beleza com os detalhes presentes nas festas religiosas, nos altares dos santos, nas fotografias das paredes, no fogão de lenha, nas rezas, nos velórios, dentre tantos outros pormenores que fizeram a diferença.

A trilha sonora foi um espetáculo à parte. De Tom Zé (a música parecia sob medida para o Saruê)  a Ednardo, de Geraldo Azevedo a Xangai, da sanfona de Luzia ao forró do Bar de Chico Criatura, de Legião Urbana às ladainhas e aboios, dos boleros de Iolanda à belíssima Margem (“Há um rio afogando em mim”) e uma menção honrosa para Maria Bethania que nos acalentou com seu dom divinal em vários momentos da trama. A narrativa nos brindou com um concerto variado de vozes e ritmos que por si só já valia acompanhá-la, a musicalidade  foi uma protagonista paralela. Vale lembrar ainda do canto doloroso  da “Rasga mortalha” para anunciar cada morte iminente...

Outro aspecto digno de nota foi a possibilidade generosa dos autores de dar espaço, vez, voz e cenas arrebatadoras não só para os protagonistas, mas para todas as personagens secundárias. Todas tinham uma história e tiveram oportunidade de nos contar. Como num rio principal que é alimentado pelos seus afluentes, todos tiveram seus momentos de glória. Destaquemos nesse final:  Dona Ceci e Dalva (meus aplausos para Mariene de Castro, grata revelação) como personagens simbólicas de questões identitárias que ganharam solos dignos de ópera nessa última semana. A rezadeira chorando a morte de seu Deus e a doméstica rompendo seus grilhões e ainda estapeando o coronel genérico. Ciço também merece nosso olhar, personagem que saiu das trevas para a luz através do amor e da arte. Seu final ao lado de sua “Darva” foi apoteótico, saíram das coxias para os palcos como uma trupe mambembe que vai disseminando alegria por onde passa, mas antes disso tomou a benção do Seu Painho (revivendo Renascer) que pode retomar com ele resíduos da paternidade negada a Martim.

A intertextualidade gritou tão alto nessa novela que poderia me ocupar disso por dias (e devo agradecer a vários amigos-colaboradores que sempre estavam me apontando mais alguma citação), lembraremos de alguns. Romance de 30 com destaque para Jorge Amado e Graciliano Ramos. Guimarães Rosa em tantos momentos com seu sertão mítico, físico e metafísico (Terceira margem do rio reinou). Os amores proibidos de Shakespeare, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós. Nesse final tivemos a citação direta de Dom Quixote e seus moinhos de Vento, Ecos de Rei Lear, releitura da tentação de Cristo com o Demônio Saruê x o Cristo Afrânio, e  este venceu despindo-se do coronel grotesco que  aprisionou sua alma. Retomou-se o galo do início da trama, páginas de Gabriel Garcia Marquez (todo épico volta ao princípio). No primeiro capítulo o galo era do pai de Afrânio e ontem esse o passou a Miguel. Um símbolo de “macheza” que deveria ficar com o homem da casa doravante. Aliás, o belo diálogo entre avô e neto circulou entre os mistérios da existência...Quem nos explica?...Natureza, Deus, destino, perguntas que nos acompanharão eternamente...

No quesito “social” a novela navegou muito bem, singrando as margens e barrancos das injustiças sociais, corrupção, jogos de poder, delações e tantas outras pautas que poderiam nos confundir com o noticiário que nos rodeia. Deixando uma mensagem de esperança através da participação popular e de novas pessoas propondo uma política diferente do que temos. Bento e Beatriz, vocês deveriam existir fora da tela e os coronéis perecerem de sede como Carlos Eduardo...

O capítulo final, apesar da melancolia incômoda pela ausência bruta do seu protagonista, apresentou um tom também esperançoso. Com nascimento, casamento, frutas, chuva, broto, flores e vinho nos sinalizando que a vida segue em frente e mais uma vez todos reunidos à mesa, espaço sagrado de conciliação (mitos primaveris). E como não podemos terminar sem lembrar da fatalidade que cruzou esse rio... A homenagem ao nosso Santo, colhido pelo Gaiola dos Encantados para nosso espanto e tristeza, o trouxe de volta à vida pelos fios da ficção...E ele segue navegando no Velho Chico e na nossa memória afetiva...Essa história não acaba aqui, segue conosco, por isso minhas penúltimas palavras, haverá sempre um rio afogando em nós...Nunca houve uma novela como Velho Chico...