A novela Velho Chico, de
Benedito Ruy Barbosa e seu clã, nas suas duas
primeiras semanas de exibição já diz a que veio: emocionar o espectador afeito
aos dramas de nossa brava gente brasileira. Promete e tem cumprido a função de
nos levar ao encontro dos grotões do Brasil rural com todas as suas cores e
tintas, sons e sabores. No primeiro capítulo, cenas passadas numa Feira
Livre, (espaço por excelência de encontros e matrizes de tantas cidades
brasileiras) trazia num palco mambembe a encenação de um mito fundador do
Rio são Francisco. Teria ele brotado das lágrimas da índia Iati, habitante de
uma tribo da Serra da Canastra, que ao chorar pela morte do guerreiro amado,
dera vida ao protagonista que nomeia a trama. Mais adiante (e já em
muitas cenas) soa como música de fundo a belíssima oração de São Francisco de
Assis, explorando um dos eixos principais da trama, a fé católica de herança
portuguesa vista sob várias nuances. Em outra cena Doninha (Bárbara Reis),
brilhante no seu papel, representante da matriz africana, uma espécie de griot,
contadora e guardiã de histórias, narra para as crianças uma lenda da
serpente de fogo ligada à origem dos ancestrais da Casa Grande que ela
habita. A novela é portanto um pedaço do Brasil, um pedaço de nossa história,
escrita por tantas mãos, canetas e armas. Rio nacional caudaloso que atravessa
os espaços e as personagens da novela.
Afrânio de Sá Ribeiro (Rodrigo Santoro
volta às novelas com tudo), o novo Saruê, coronel à contragosto é o próprio
herói problemático, angustiado pelo destino que não era seu, mas foi chamado a
cumprir. Saltando das páginas de Jorge Amado, Adonias Filho, João Ubaldo, Ariano Suassuna, Lins
do Rego ou ainda Guimarães Rosa, vive num embate interno e externo,
representado pelo dentro e fora da Casa. Da relação doentia com a mãe, a
diabólica beata Dona Encarnação (Selma Egrei, um quê de Gabriel Garcia Marquez),
da influência perniciosa do capataz Clemente (Júlio Machado), do amor
interrompido naquele outro mundo da Tropicália, do conflito dos negócios, do
casamento na ponta da faca à viuvez prematura, emerge um drama em gente, que
não conseguimos rotular de bem ou mal. O que sabemos é que é pungente
assisti-lo e prazeroso acompanhar os demônios que lhe habitam. Talvez seja essa
a cabeceira do Rio, mas há outros afluentes dignos de nota.
A casa do Capitão Rosa (Rodrigo
Lombardi) e Dona Eulália (Fabíula Nascimento), espécie de voz socialista em
meio aquele capitalismo-coronelismo-voraz, é um espaço de afetos. Adoção,
fraternidade, generosidade, trabalho digno, amor verdadeiro que acolheu a
família de Belmiro (um Oscar para Chico Diaz e Cyria Coentro, casal de
retirantes espetacular) e na dor e no leite materno se irmanaram. Em
contraponto com a Casa dos saruê, aqui é um lar, com uma mesa sempre posta e
lume aceso.
Na figura do Padre Romão (Umberto
Magnani) temos um amálgama de várias faces do catolicismo que vai de Padre
Cicero (físico bem semelhante), passa pelas causas sociais (vide cena do soro
caseiro), à uma visão teológica panteísta (sua explicação lembrou um poema de
Alberto Caeiro), sem perder a função de conselheiro e
pastor daquele rebanho, gado difícil de conduzir.
Notemos ainda a
sofisticação de algumas estratégias narrativas presentes na trama. A presença
das cantorias dos violeiros, que como uma espécie de coro-grego-sertanejo vai
amarrando as pontas soltas da narrativa através de suas melodias. O ritmo
frenético do primeiro capítulo (sexo, drogas e Tropicália) para situar em que
mundo vivia Afrânio em Salvador e em que mundo ele passaria a ser Senhor, lugar
onde o tempo está estacionado e as relações são ainda coloniais/medievais, aqui
seu diploma de Dr. nada vale. Ou ainda as conversas no Bar/Armazem, único espaço de
socialização, simulação de um parlamento no qual os discursos emergem à
cada gole de pinga.
Outro aspecto digno de
nota é a qualidade da direção de arte, figurino e fotografia com a assinatura
inconfundível e autoral de Luiz Fernando Carvalho. Há muito a se elogiar
em todas as cenas. Escolho aqui a casa de Leonor (Marina Nery, versão cabocla
de Maria Fernanda Cândido/ Sophia Loren) com suas paredes sem reboco ou tintas
amareladas, santos esmaecidos, escassa mobília de madeira, potes de barro,
lençóis no “quarador”, retratos pintados, enfim uma casa sertaneja com certeza.
Os altares, tanto das igrejas e capelas quanto das casas, é outro espetáculo
pormenorizado em grande estilo.
Nesse rio e sob ele, nesse
pedaço de Brasil, cabem muitas histórias. Latifúndio versus minifúndio, ideais
cooperativistas, criança desaparecida, religiosidade mística e carnavalizada,
amores vibrantes, vinganças de família, ingredientes que nos prendem nesse
barco da ficção desde sempre. Que o Nego D’água e as Carrancas mantenham a
narrativa navegando nesse fluxo! Em breve as águas baixarão e veremos o que
ainda nos reserva os outros portos desse novelão!