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sábado, 16 de dezembro de 2017

O extraordinário Extraordinário

                  Para Guel, Bá, Nanda e Bia



O filme Extraordinário, dirigido por Stephen Chbosky, é daqueles que nos fazem entrar em contato com uma gama de sentimentos e sair do cinema com aquela sensação reconfortante que viver vale a pena, ou as penas de viver valem, apesar de tudo.  Adaptação do livro homônimo escrito por R.J. Palacio, narra a história de Auggie Pullman, um menino que nasceu com uma anomalia na face e passou por dezenas de cirurgias, 27 exatamente. As pulseirinhas de cada internamento aparecem como se fossem um quadro de medalhas de feitos heroicos ou troféus de vitórias. Ele nunca foi à escola até entrar no Fundamental II (na nossa equivalência) sendo escolarizado por sua mãe, a brilhante Julia Roberts, numa atuação digna de Oscar. Sua mãe, seu pai e sua irmã, como é descrito no filme, são os planetas que giram em torno do sol que é Auggie.
Chega em fim o dia tão temido de Auggie ir à escola regular, o mote central da trama é sua adaptação a esse novo mundo inóspito para muitas crianças, imaginem para ele que tem sua diferença estampada na face. O que aparentemente seria mais uma história sobre bullying e superação, ganha contornos maravilhosos que cativam a plateia do início ao fim. Entre os pontos altos do filme está o modo narrativo que vai mostrando os pontos de vista de cada personagem envolvido na vida de Auggie, mostrando que cada um tem suas razões para agir como age, lição de alteridade: O pai, a mãe, a irmã, a amiga da irmã e os companheiros de escola. Detaca-se nessa estratégia o papel da irmã e a reflexão que é feita sobre o drama de quem tem irmãos especiais e tem que contentar-se com o papel de coadjuvante na vida da família, ela sofre por sua invisibilidade ante os olhos da mãe e tem amparo nas lembranças do afeto que sua avó (Sonia Braga rouba a cena em menos de 5 minutos de flashback) a devotava e na amiga Miranda, outra grande personagem, fiquem de olho nela.
Na escola, Auggie é recepcionado por alguns colegas que se tornam seu grupo e mais tarde descobrirá que foi tudo a pedido do diretor, outra personagem cativante. As sequências de rejeição e desrespeito são muitas e o menino vai sobrevivendo como pode, sempre apoiado pelo amor incondicional da família. É sintomático o fato dele ter no Halloween sua festa preferida, pois mascarado ele não é desprezado por ninguém e se sente parte do grupo.
 Sua inteligência e humor vai aos poucos conquistando algumas amizades verdadeiras e vai ganhando seu espaço na escola. São deliciosas as cenas da Feira de Ciências, ele é um geniozinho dessa área, e da briga entre os meninos. Nessa briga é selado, de fato, um pacto entre amigos e ele agora tem sua gangue! Sua emoção após a briga, abraçado aos meninos diante do lago, é daquelas cenas de derreter os corações mais duros.
Outro ponto digno de nota é o papel do professor com suas aulas cheias de ética e valores positivos, a partir de lemas edificantes que atuam na formação do caráter das crianças. Dentre esses lemas, há um em especial, que diz aproximadamente assim: Entre ter razão e ser gentil, seja gentil, você nunca sabe as batalhas que o outro está travando. Vale ressaltar também o papel das famílias na formação de seus filhos, temos modelos diversos de famílias na trama, das modelares às repulsivas e como isso afeta seus filhos.Ainda há um brinde especial no filme, a relação intertextual com o universo de Star Wars e Minecraft, cerejas de um bolo que em si já é um deleite.
O filme nos aproxima daqueles romances de formação que o protagonista tem que passar por expiações e aprendizagens múltiplas a fim de alcançar a felicidade. E Auggie a alcança, com direito a medalha e discurso, como aluno destaque do colégio para a alegria da plateia do auditório no filme e para nós na plateia do lado de fora da tela.
Vão assistir Auggie, Augusto, sagrado, levem suas crianças (a censura é dez, mas de uns 6 em diante estão aptos) e reflitam com elas sobre o que vimos ali. Extraordinário, aquilo que foge ao ordinário, ao comum, ao trivial e vai além...





domingo, 10 de dezembro de 2017

O outro lado do paraíso: Walcyr Carrasco e o profícuo diálogo com os clássicos

O outro lado do paraíso entrou no ar com a difícil missão de substituir o sucesso de A força do querer, tarefa sempre árdua em qualquer setor, substituir algo ou alguém que alçou altos níveis de aprovação. Chegou de mansinho sem muita novidade, com uma primeira fase meio morna para quem estava com a adrenalina alta ministrada pelas doses diárias de Glória Perez. A primeira fase funcionou como uma etapa bem didática com a função de preparar o terreno para a sua segunda fase que agora caminha muito bem. A princípio entramos em contato com os perfis psicológicos de cada personagem e com as motivações de vingança/justiça que animam a segunda fase, pois toda a trama é baseada na lei do retorno, haja vista sua música de abertura que não deixa dúvidas ( “Tudo que você faz, um dia volta pra você”).

Na fase de transição entre a primeira e a segunda fase, uma década, destaquemos os anos de formação de Clara ao lado de Beatriz (como a de Dante, a conduziu das trevas para a luz através do conhecimento). Assim como Clara, ela também foi vítima de uma cilada familiar motivada pela cupidez que culminou num destino comum para ambas: o sanatório. Não foi difícil reconhecer logo nos primeiros acordes da convivência das duas a relação intertextual com O conde de Monte Cristo, clássico incontornável da literatura ocidental de Alexandre Dumas, relação muito bem tecida já que também seu mote central é um plano de vingança/justiça. Beatriz preparou Clara emocionalmente  e culturalmente para poder trilhar seu retorno  e conduzir seu plano de reaver o que lhe foi usurpado, além de fazê-la herdeira de uma fortuna que facilitará a execução de seus objetivos.

Walcyr Carrasco, profundo leitor dos clássicos da literatura ocidental, adaptou vários deles para o público juvenil, e costuma trazer esse salutar diálogo para suas tramas na televisão. Em O cravo e a rosa relemos A megera domada de Shakespeare, em Chocolate com pimenta entramos em contato com A viúva alegre filme de 1934, em Sete Pecados com A divina Comédia, em Êta mundo bom revimos um misto de Cândido de Voltaire e Mazzaropi, para ficarmos aqui com as citações mais diretas, pois ele também faz menções mais sutis como na última cena de Amor à vida inspirada em Morte em Veneza.

Para Ítalo Calvino em Por que ler os clássicos, um clássico é aquela obra que nunca termina de dizer o que há para dizer, dessa forma considero extremamente bem-vindo esse trabalho de visitação ao nosso acervo cultural nas telenovelas, além de enriquecer o texto, nos põe em contato com os grandes dramas humanos que são em última instância  a matéria primordial das obras clássicas. Também lembrando Kristeva “todo texto é um mosaico de citações”, vamos nos alimentando do que lemos, do que vimos, do que ouvimos e assim costurando nossos fios através dessa rede interminável de diálogos.

Dito isto, passemos para alguns detalhes da trama. Um ponto me chama  atenção na novela, a complexa relação da maternidade. Há muitos tipos de mães na narrativa. A megera-mor Sophia, brilhante Marieta Severo (quem diria que Dona Nenê seria capaz?), manipula e maltrata seus 3 filhos ao sabor dos seus planos, com ênfase para sua não aceitação da filha anã, para ela uma aberração que não merecia e tenta esconder a todo custo. A personagem Stela está interessantíssima, Walcyr inova ao trazer o tema do nanismo para a discussão, além de termos com ela outra relação maternal não consanguínea, sua babá é sua mãe de fato e luta por sua felicidade.

Nadia, outra manipuladora, também conduz com mão de ferro o destino dos filhos. Esposa de um juiz corrupto, se refestela com seus “jeitinhos” e lucros auferidos, tida como grande dama da sociedade é a encarnação do preconceito e egoísmo, seu peso é aliviado na trama pela comédia que é sua alcova com suas peripécias sexuais. A mãe do médico gay, que não tem coragem de sair do armário para não decepcionar mamãe, é outra relação materna interessante, uma manipuladora também, ganha nossa simpatia pelos disparates que fala. Lívia, obsessiva pela maternidade, compactuou com o plano diabólico da mãe, para ficar com o filho de Clara. A personagem de Glória Pires, em nome de salvar o futuro de sua filha, aceita morrer em vida e mata Elizabeth para dar vida à Duda. E parece que mais mistérios envolvem sua relação com a maternidade. Tudo indica que a maternidade na trama é que é o padecer no outro lado do paraíso, e até então se insinua que o amor materno pleno só se realizará com Clara que moverá o mundo para reaver o filho roubado, sua verdadeira mina.

Outro ponto especial na trama é a atuação dos nossos atores octogenários. Um time estrelado: Lima Duarte, Fernanda Monte Negro, Nathalia Timberg, Laura Cardoso e Ana Lúcia Torre ( essa septuagenária). Todas as vezes que eles aparecem em cena temos momentos de fulgor na tela. Fernanda com sua personagem mística está mesmo alguns centímetros acima do chão, ganhou uma aura de santidade. Sua cena em que enfrentou a morte para salvar seu amigo/amor foi emocionante. Lima com seu homem cheio de brio e dignidade que não se rende às tiranias dos poderosos também o faz com maestria. Timberg roubou a cena e continua roubando com sua presença fantasmagórica, uma espécie de mentora de Clara, mesmo depois de morta. Ana Lúcia está cômica com seus gracejos sobre a macheza do filho e sua birra com a nora. Agora, Dona Laura Cardoso como a cafetina Caetana é um presente para nós, seu retorno ontem foi hilário, “quem nasceu para quenga, morre quenga”, completa o quinteto de ouro. Excelente escolha de elenco, reunir os cinco numa mesma trama.

Sobre os retornos da segunda fase, já temos na arena a volta triunfal de Raquel como juíza, nada mais simbólico para o projeto da novela. Ela que foi humilhada por sua cor e condição social, retorna como uma espécie de esperança para que a justiça social (e individual) seja mesmo feita sem as interferências do poder econômico. Agora aguardemos a chegada de Clara em Palmas, certamente não será de balão como Edmond Dantes, mas causará muitas surpresas agradáveis para uns e demolidoras para outros...