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quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Quem tem medo de Glória Perez?

Em 1995, portanto no século passado, Glória Perez em Explode Coração já sacudiu/confundiu o Brasil com Sarita Vitti, personagem Travesti ou Drag Queen (talvez nessa época os nomes não eram  tão importantes ou definidos ainda nesses termos), interpretada pelo ator Floriano Peixoto, em primeiro papel na televisão. Numa época na qual ainda não havia as redes sociais e seus megafones, o assunto  foi bastante polêmico e de vanguarda. Já naquele tempo, Glória desenhava essa personagem de difícil contorno para os padrões da época com as tintas da humanidade, focando no drama humano de ser diferente do que se espera e como lidar com isso numa sociedade hostil e que rejeita, assim como Narciso, o que não é espelho. E assim ela continua com seus pinceis e teares encantados...

Passados 22 anos, em outro século, o tema volta em sua trama A força do querer com vigor e complexidade e ainda gera polêmica. Temos em cena Nonato (Silvero Pereira), de dia vestido no seu paletó e gravata que parecem sempre apertados e de noite se traveste de Elis Miranda, cantora performática que irradia alegria assim caracterizada. Se  define como um travesti e  se aceita com seu corpo assim como ele é. Em justaposição (porque não se trata de outro lado), temos Ivana até ontem, agora Ivan (Carol Duarte), que depois de um longo processo de crise existencial se descobre Transexual. O processo de descoberta e transição de Ivana foi lento e doloroso (continuará sendo), acredito na intenção pedagógica da autora em exibir todo o entorno da complexa questão, pois houve um investimento em muitas cenas didáticas sobre o assunto.

Ao por Elis e Ivan em diálogo, a primeira passou a ser uma espécie de fada madrinha e anjo da guarda vigilante de toda família Garcia (seu desempenho vem crescendo e ocupando vários espaços, quando Eurico o descobrir, o coitado que acha que sabe de tudo, não poderá mais viver sem sua amizade!), foi no pequeno apartamento de Elis que Ivana conseguiu decidir sua dolorosa metamorfose e enfim tomar a decisão de comunicar a família sua condição. O colo e as almofadas acolhedoras de Elis funcionaram como uma espécie de útero para gestar o Ivan que nasceria em breve. Mas para nascer Ivan, há de morrer Ivana, daí a cena dramática de ontem, vivida mais intensamente por Joyce, mãe que desejou uma filha à sua imagem e semelhança com todos os códigos femininos que ela acredita ser fundamental para ser uma mulher feliz.

A cena, ritual sacrifical de morte de Ivana representado pelo corte dos cabelos, marca feminina por excelência (ecos de Camila em Laços de Família) foi realizada com uma forte carga emocional. Joyce em posição de Pietá, chorava a morte de Ivana, e Ivan nascia chorando como um bebê que vê o  mundo pela primeira vez. A mater dolorosa, enlutada, agarrada aos fios do cabelo de sua menina, fez o Brasil se emocionar.

O espelho, antes motivo de tortura para Ivana, começou a dar sinais positivos para Ivan, que começa a se encontrar. Não posso avaliar como deve ser dolorida essa travessia, essa transformação, mas acho que a trama acertou em mostrar primeiro que é no seio (bendita metáfora!) da família que devemos ser compreendidos e aceitos primordialmente, para depois partir para o desafio inóspito das ruas (outras tantas cenas já foram mostradas com Ivan e com Elis sobre a barbárie das ruas contra os “diferentes”). A autora é famosa por introduzir questões sociais e reais em suas novelas, acho que está acertando em cheio em nos esclarecer sobre uma questão tão pulsante e necessária. O conhecimento liberta, gera a empatia, promove a compaixão, que significa etimologicamente sentir com o outro, e podemos sonhar por alguns minutos com um mundo mais acolhedor como são os braços de Elis Miranda... But I see your true colors, Continue Glória!

P.S. A autora não criou o tráfico no Rio de Janeiro.




domingo, 20 de agosto de 2017

Mulher Maravilha: Uma heroína grega na Primeira Guerra

A imagem da Mulher Maravilha com seu collant (naquele tempo não se dizia body) baseado na bandeira dos Estados Unidos, sua tiara, seu laço da verdade e seus voos e saltos povoaram toda a minha infância e acredito que todas as meninas da minha idade. Afinal, era uma mulher dentre tantos super-heróis. Eis que tive um maravilhoso reencontro com ela essa semana na nova versão do filme Mullher Maravilha (2017) sob a direção de Patty Jemkins, com roteiro de Allan Heinberg. 
Agora, Diana Prince (Deusa da caça e princesa) representada pela talentosa e lindíssima Gal Gadot, é construída com a força de suas origens míticas, e essa parte inicial conduz toda a diferença nessa narrativa. Ela é a Princesa das Amazonas, lendária tribo de mulheres guerreiras, treinadas desde a infância para combater o Mal, representado pelo mito grego de Hades (Deus dos infernos), no filme  Ares, vilão da DC. Vivem isoladas numa Ilha paradisíaca quando, numa espécie de portal do tempo, o piloto Steve Trevor (Chris Pine) vem ferido parar nessa ilha (tal cena nos remete á Odisseia, quando Ulisses aporta na Ilha de Ogígia e é aprisionado pela deusa Calipso), na verdade um espião (revelado pelo laço da verdade) soldado da Primeira Guerra (naquele tempo ainda A Guerra, pois não sabia-se que viria a Segunda).
A partir desse inusitado encontro de tempos históricos, filosóficos e ideológicos tão distintos nasce a raiz dessa arrebatadora trama. Diana Prince segue com Steve para os “Tempos modernos” e vai combater nas trincheiras da Guerra usando suas armas, seus super poderes e, sobretudo, seu código de ética heroico pautado nos valores do mundo grego. Ela o acompanha acreditando estar em busca de Ares e que ao derrotá-lo o mundo estaria salvo do Mal. É simbólico o fato de ela se apresentar, dizer seu nome, sua origem e de onde vem, sempre que vai combater um inimigo (era o usual nas guerras antigas). O choque entre esses dois mundos se dá em vários momentos e suscita diálogos hilários. Para ela é incompreensível os motivos de uma guerra, os modus operandis e as estratégias usadas pelas tropas modernas que lutam por riquezas e poder. A passagem dos mercenários negociando com eles é bastante significativa ( e a redenção deles no final muito emocionante).
Em sua Teoria do Romance, G. Lukács[1] situa o mundo grego, berço da epopéia homérica, como um sistema cultural fechado. Nesse sistema, os fatos narrados mantinham consonância com o conjunto de crenças e valores que conferiam coesão à sociedade grega. Na Grécia homérica, a mesma de Diana Prince, não há abismo entre imanência e transcendência, que formam um todo coeso; de modo que as verdades contidas na mitologia clássica estão presentes na trajetória de vida das personagens. Em contrapartida, por serem ilustrativas de um mundo marcado pela instabilidade, as formas modernas, representadas no filme pelo absurdo da Guerra, trazem em seu bojo existências marcadas pela desorientação e nostálgicas de um sistema mais estável. Nessas formas, se delineiam aventuras de busca de valores estáveis que pudessem superar os abismos intransponíveis entre existência e transcendência.
Eis a grande sacada do filme, a oposição entre esses dois mundos. O grego orientado, representado pela nossa Mulher Maravilha, e o moderno desorientado, representado por Steven e demais envolvidos na Guerra. Mas ao longo do filme, Diana vai imprimindo em Steven e em seu pequeno e inusitado exército seus valores e eles vão se moldando aos ideais guerreiros do mundo helênico e é claro que surge uma linda história de amor, doação e heroísmo (não conto mais para não dar spoiler).
Eis também um grande filme... Diana, de fato, encontra o Ares que buscava (excelente surpresa de quem ele é realmente), e a batalha épica entre eles é colossal com belíssimos efeitos especiais e aquela emoção que nos faz pular da poltrona ou do sofá (no meu caso da cama)! Apesar dos horrores da Guerra e da distópica ideia de que o mal vige no homem como cunhou o Riobaldo de Guimarães Rosa, o final é glorioso e vivificante, vence a ideia de que apesar da coexistência do Bem e do Mal, nossas ações e decisões podem mudar o rumo da História e das nossas histórias e que como não somos super-heróis não pudemos salvar o mundo, mas podemos salvar o dia de algumas pessoas...Vale a pena ver e rever essa venturosa heroina....De collant ou de Body...





[1] LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Ed. 34, 2000.