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domingo, 10 de dezembro de 2017

O outro lado do paraíso: Walcyr Carrasco e o profícuo diálogo com os clássicos

O outro lado do paraíso entrou no ar com a difícil missão de substituir o sucesso de A força do querer, tarefa sempre árdua em qualquer setor, substituir algo ou alguém que alçou altos níveis de aprovação. Chegou de mansinho sem muita novidade, com uma primeira fase meio morna para quem estava com a adrenalina alta ministrada pelas doses diárias de Glória Perez. A primeira fase funcionou como uma etapa bem didática com a função de preparar o terreno para a sua segunda fase que agora caminha muito bem. A princípio entramos em contato com os perfis psicológicos de cada personagem e com as motivações de vingança/justiça que animam a segunda fase, pois toda a trama é baseada na lei do retorno, haja vista sua música de abertura que não deixa dúvidas ( “Tudo que você faz, um dia volta pra você”).

Na fase de transição entre a primeira e a segunda fase, uma década, destaquemos os anos de formação de Clara ao lado de Beatriz (como a de Dante, a conduziu das trevas para a luz através do conhecimento). Assim como Clara, ela também foi vítima de uma cilada familiar motivada pela cupidez que culminou num destino comum para ambas: o sanatório. Não foi difícil reconhecer logo nos primeiros acordes da convivência das duas a relação intertextual com O conde de Monte Cristo, clássico incontornável da literatura ocidental de Alexandre Dumas, relação muito bem tecida já que também seu mote central é um plano de vingança/justiça. Beatriz preparou Clara emocionalmente  e culturalmente para poder trilhar seu retorno  e conduzir seu plano de reaver o que lhe foi usurpado, além de fazê-la herdeira de uma fortuna que facilitará a execução de seus objetivos.

Walcyr Carrasco, profundo leitor dos clássicos da literatura ocidental, adaptou vários deles para o público juvenil, e costuma trazer esse salutar diálogo para suas tramas na televisão. Em O cravo e a rosa relemos A megera domada de Shakespeare, em Chocolate com pimenta entramos em contato com A viúva alegre filme de 1934, em Sete Pecados com A divina Comédia, em Êta mundo bom revimos um misto de Cândido de Voltaire e Mazzaropi, para ficarmos aqui com as citações mais diretas, pois ele também faz menções mais sutis como na última cena de Amor à vida inspirada em Morte em Veneza.

Para Ítalo Calvino em Por que ler os clássicos, um clássico é aquela obra que nunca termina de dizer o que há para dizer, dessa forma considero extremamente bem-vindo esse trabalho de visitação ao nosso acervo cultural nas telenovelas, além de enriquecer o texto, nos põe em contato com os grandes dramas humanos que são em última instância  a matéria primordial das obras clássicas. Também lembrando Kristeva “todo texto é um mosaico de citações”, vamos nos alimentando do que lemos, do que vimos, do que ouvimos e assim costurando nossos fios através dessa rede interminável de diálogos.

Dito isto, passemos para alguns detalhes da trama. Um ponto me chama  atenção na novela, a complexa relação da maternidade. Há muitos tipos de mães na narrativa. A megera-mor Sophia, brilhante Marieta Severo (quem diria que Dona Nenê seria capaz?), manipula e maltrata seus 3 filhos ao sabor dos seus planos, com ênfase para sua não aceitação da filha anã, para ela uma aberração que não merecia e tenta esconder a todo custo. A personagem Stela está interessantíssima, Walcyr inova ao trazer o tema do nanismo para a discussão, além de termos com ela outra relação maternal não consanguínea, sua babá é sua mãe de fato e luta por sua felicidade.

Nadia, outra manipuladora, também conduz com mão de ferro o destino dos filhos. Esposa de um juiz corrupto, se refestela com seus “jeitinhos” e lucros auferidos, tida como grande dama da sociedade é a encarnação do preconceito e egoísmo, seu peso é aliviado na trama pela comédia que é sua alcova com suas peripécias sexuais. A mãe do médico gay, que não tem coragem de sair do armário para não decepcionar mamãe, é outra relação materna interessante, uma manipuladora também, ganha nossa simpatia pelos disparates que fala. Lívia, obsessiva pela maternidade, compactuou com o plano diabólico da mãe, para ficar com o filho de Clara. A personagem de Glória Pires, em nome de salvar o futuro de sua filha, aceita morrer em vida e mata Elizabeth para dar vida à Duda. E parece que mais mistérios envolvem sua relação com a maternidade. Tudo indica que a maternidade na trama é que é o padecer no outro lado do paraíso, e até então se insinua que o amor materno pleno só se realizará com Clara que moverá o mundo para reaver o filho roubado, sua verdadeira mina.

Outro ponto especial na trama é a atuação dos nossos atores octogenários. Um time estrelado: Lima Duarte, Fernanda Monte Negro, Nathalia Timberg, Laura Cardoso e Ana Lúcia Torre ( essa septuagenária). Todas as vezes que eles aparecem em cena temos momentos de fulgor na tela. Fernanda com sua personagem mística está mesmo alguns centímetros acima do chão, ganhou uma aura de santidade. Sua cena em que enfrentou a morte para salvar seu amigo/amor foi emocionante. Lima com seu homem cheio de brio e dignidade que não se rende às tiranias dos poderosos também o faz com maestria. Timberg roubou a cena e continua roubando com sua presença fantasmagórica, uma espécie de mentora de Clara, mesmo depois de morta. Ana Lúcia está cômica com seus gracejos sobre a macheza do filho e sua birra com a nora. Agora, Dona Laura Cardoso como a cafetina Caetana é um presente para nós, seu retorno ontem foi hilário, “quem nasceu para quenga, morre quenga”, completa o quinteto de ouro. Excelente escolha de elenco, reunir os cinco numa mesma trama.

Sobre os retornos da segunda fase, já temos na arena a volta triunfal de Raquel como juíza, nada mais simbólico para o projeto da novela. Ela que foi humilhada por sua cor e condição social, retorna como uma espécie de esperança para que a justiça social (e individual) seja mesmo feita sem as interferências do poder econômico. Agora aguardemos a chegada de Clara em Palmas, certamente não será de balão como Edmond Dantes, mas causará muitas surpresas agradáveis para uns e demolidoras para outros...



16 comentários:

  1. Alana, aguardava sua análise. Perfeita. Parabéns !!

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  2. Se eu tiver que escolher o texto que mais gostei no blog (até agora) seria esse. Um show. Assisti somente dois capítulos completos da novela, mas tenho ouvido bons comentários e parece que será mais um sucesso do horário. Fiquei curiosa para acompanhar. Parabéns, pró.

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    1. *se eu tivesse...

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    2. Obrigada, pessoalmente não acho esse um dos melhores...mas já que dizes aceito o elogio! Continuemos em diálogo nos textos e na vida

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  3. Minha amiga continua demonstrando sua leitura arguta dos textos da tela. Longa vida ao EntreTelas!

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    1. E longa vida para nossos múltiplos olhares sobre os textos, as telas e a vida!

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  4. Das possibilidades de escrever um bom texto, o conhecimento é mister para a construção de algo digno de atenção e posteriores aplausos. Alana, me assusto (susto aqui como deleite) sempre que venho aqui e leio tuas crônicas folhetinescas sobre as novelas da Vênus Platinada. É um assombro de letramentos a leitura de teus textos... Um misto de aprender significativo, orgulho em ser um leitor próximo, e alegria em ter outros tantos textos em mim que me fazem entender o seu. Gosto desta tua sacada sobre as mães; talvez Valcy esteja autobiografando a sua própria, multifacetada nas outras espalhadas no enredo e descritas por ti. Acredito que sendo o cenário de belezas extremas, o outro lado do paraíso seja exatamente o homem que tudo destrói. No mais, que Clara, mesmo não chegando em um balão, volte ao som de uma bela música francesa a la Edith Piaf.

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    1. Ter um leitor como vc, que entende do risco do bordado, do papel da entretela na costura dos tecidos/textos me lisongeia muito...Sabe aquele conceito que estudamos sobre quando vc escreve tem em mente um leitor ideal, vc sempre é um deles...Obrigada, continuemos nos textos e na vida!

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    2. Gutho, tu arrasa!

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    3. Juli, quem arrasa mesmo é a nossa blogueira novelística com seus olhos de Thundercats. Nós ficamos a esperar pela "sobre(@)mesa" pós as refeições do horário nobre. Que essa nossa glicose-elfahliana esteja sempre alta.

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  5. Eu estava achando a novela bem pesada e concordo sobre a atuação do pessoal da melhor idade (para mim eram sempre as melhores cenas). Sentia falta de uns alívios cômicos e isso está melhorando aos poucos. Coincidiu ler seu texto só agora, depois do retorno da mocinha. Um acerto (ainda jogaram Blaze of glory, do Bon Jovi como música de fundo - boa demais). Deu impressão que a novela vai começar agora.

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    1. É chef, a novela começou...E todos gostamos de uma boa vingança!Chama de Glória!

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  6. ����������

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  7. Alana fale por favor sobre "DEUS SALVE O REI" que amo de paixão!!

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