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sábado, 10 de outubro de 2015

Como e porque sou noveleira


Como e porque sou noveleira
José de Alencar (1829-1877), um dos maiores intelectuais e ficcionistas desse país, em um texto autobiográfico de grande beleza Como e porque sou romancista[i] narra, entre outras tantas memórias, um episódio de sua infância que retomo aqui nesse preâmbulo:

Não havendo visitas de cerimônia sentava-se minha boa mãe e sua irmã D. Florinda com os amigos que pareciam, ao redor de uma mesa redonda de jacarandá, no centro da qual havia um candeeiro. Minha mãe e minha tia se ocupavam com trabalhos de costuras, e as amigas para não ficarem ociosas as ajudavam. Dados os primeiros momentos à conversação, passava à leitura e era eu chamado ao lugar de honra. Muitas vezes, confesso, essa honra me arrancava bem a contragosto de um sono começado ou de um folguedo querido; já naquela idade a reputação é um fardo e bem pesado. Lia-se até a hora do chá, e tópicos havia tão interessantes que eu era obrigado à repetição. Compensavam esse excesso, as pausas para dar lugar às expansões do auditório, o qual se desfazia em recriminações contra algum mau personagem, ou acompanhava de seus votos e simpatias o herói perseguido. Uma noite, daquelas em que eu estava mais possuído do livro, lia com expressão uma das páginas mais comoventes da nossa biblioteca. As senhoras, de cabeça baixa, levavam o lenço ao rosto, e poucos momentos depois não puderam conter os soluços que rompiam-lhes o seio. Com a voz afogada pela comoção e a vista empanada pelas lágrimas, eu também cerrando ao peito o livro aberto, disparei em pranto e respondia com palavras de consolo às lamentações de minha mãe e suas amigas. Nesse instante assomava à porta um parente nosso, o Revd.º Padre Carlos Peixoto de Alencar, já assustado com o choro que ouvira ao entrar – Vendo-nos a todos naquele estado de aflição, ainda mais perturbou-se: -Que aconteceu? Alguma desgraça? Perguntou arrebatadamente. As senhoras, escondendo o rosto no lenço para ocultar do Padre Carlos o pranto e evitar seus remoques, não proferiram palavra. Tomei eu a mim responder: -Foi o pai de Amanda que morreu! Disse, mostrando-lhe o livro aberto.

Tal cena, um serão de leitura bem aos moldes burgueses do século XIX, nos remete diretamente à relação do brasileiro com a telenovela. As reações da plateia descritas pelo autor de O Guarani ainda permanecem nas salas de nossas casas e estendem-se pelo dia seguinte onde baste que dois espectadores se juntem em seu nome, ali ela estará. É sabido que o gênero advém do folhetim romântico, romance em fatias, dividido em capítulos e saboreado aos poucos, sorvido em goles diários. Daí tantas semelhanças de heróis e mocinhas, romances proibidos, vinganças, segredos, sangue e lágrimas.
Talvez daí também a sua sobrevivência em tempos de tanta concorrência de outras telas. O drama humano sempre nos atrairá e conquistará nossa empatia, independentemente da história, sempre torceremos por uma personagem em detrimento de outra e reclamaremos um final feliz e, se possível, com casamento, flores e bebês. Para o vilão nada menos que loucura, morte, humilhação ou cadeia nele!
Para além das emoções catárticas do serão de Alencar e dos nossos, a literatura propriamente dita (aquela que é meu amor primeiro) e a teledramaturgia é também um veículo difusor de conhecimento. A sua  mathesis, como registrou Barthes, ou seja a sua força de transmitir saberes é um dos seus tripés(ao lado da  mimesis e semiosis) e concordamos que a novela brasileira tem desempenhado com força esse papel. Concordamos também que num país de índices mínimos de leitura de qualquer tipo, a novela tem nos ofertado algumas aulas sobre nossa história, possibilitado discussões sobre graves problemas e influenciado comportamentos e mudanças deles.

Se pensarmos em alguns temas como a escravidão, por exemplo, tivemos aulas inteiras sobre a barbárie que esse fato representou e continuou representando depois dele. Escrava Isaura(sucesso retumbante em todo mundo), Sinhá Moça, Força de um desejo, Lado a Lado e Além do Tempo(em exibição) mostraram para nós uma face maldita e mal dita da nossa nação. Com cenas memoráveis como os castigos de Isaura ou a abolição em Sinhá Moça (reescrita lindamente no seu remake para abarcar discussões contemporâneas). A imigração e seus desdobramentos nos renderam cenas antológicas em Terra Nostra ou O Rei do gado.

Sobre a ética ou a falta dela rememoro com prazer O Dono do Mundo (miserável Dr.Felipe Barreto, como as tias de Alencar, já te xinguei muito) ou a inesquecível Vale Tudo, que, como sugere o título escancarou o gênero ao premiar o vilão Marco Aurélio com um final feliz fugindo num helicóptero e nos dando uma simbólica banana, ou ainda o emblemático herói Sassá Mutema de O Salvador da Pátria. Temas ligados às questões de saúde estiveram presentes em diversas histórias, Câncer, Leucemia, Transplantes, Síndrome de Down, Autismo, Esquizofrenia, Deficiência visual entre tantos que, segundo dados oficiais, fazem o brasileiro correr atrás de informações, exames e consultas.

Os temas tabus, que são tantos por aqui, não fugiram das telas. Se tomarmos a questão homo afetiva como modelo teremos uma travessia dolorosa que foi da morte do casal lésbico na explosão do Shopping em Torre de Babel pela rejeição do público, a atores que apanharam na rua por insinuarem um par romântico (Jeferson e Sandrinho em A próxima vítima) para uma  aceitação, ainda que polêmica,  de casais como Félix e Nico em Amor à vida(com direito a beijo apaixonado) e de famílias como a das brilhantes damas Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg em Babilônia.  É como se as tramas fossem formando paulatinamente uma sociedade para a tolerância e aceitação.

Ainda no quesito comportamento, o inventário seria infinito, divórcios, adoções, famílias-mosaico, crises de meia idade, drogas, direitos femininos e feministas, violências diversas, enfim e sem fins, seria impossível elencar. E meus leitores, se é que alguém me acompanhou até aqui, devem ter percebido que estou tratando aqui só das novelas verossímeis, aquelas pautadas no real concreto, porque para ir para os reinos encantados da fantasia, onde outros tantos valores e saberes também são projetados, precisaríamos de rios de caracteres e pixels para encantar esse cordel.

Vou ficando por aqui e como os ouvintes de Alencar, continuo me emocionando com as tramas, da literatura e da tela, pois a arte nos dá o direito aos sonhos, mas também, uma overdose de realidade, ainda que ressignificada pelo espelho estilhaçado da ficção, como nas camisetas panfletárias de Romero Rômulo, o feijão e o sonho...

 

 

 




[i] Escrito em 1873 e publicado em 1893.

12 comentários:

  1. Que texto encantador. Professora, ele me trouxe algumas reflexões e vou citar duas entre várias. A primeira é o preconceito que muitas vezes encontramos dentro de setores ditos intelectuais, como a Academia, que coloca as novelas como algo simplório e fútil, e os próprios movimentos que, por tal novela passar na Globo, por exemplo, não deve ter credibilidade e atenção devida. Outro ponto, bem interessante é a força que as novelas vem perdendo ano a ano. Vejo como um problema não da ficção criativa, mas, talvez, das mudanças pela qual a sociedade vem passando. O fluxo acelerado, de sempre estarmos conectados, da correria, principalmente das grandes cidades, faz com que não tenhamos mais tempo ou tanta atenção para a Tv. Prova disso, é que nos interiores "assistir novela" é algo bem mais forte. Com a leitura aconteceu algo semelhante, as pessoas saem da leitura coletiva, para a individual; saem da leitura das salas para os quartos solitários, porém o livro é um recurso que possibilita esses lugares, a TV possibilita muito mais a coletividade... As séries fazem esse papel dos livros, porque permitem de forma mais fácil, de você acessá-la quando bem entender... Também sou noveleiro, e aqui em casa o momento em que mais me relaciono com minha família é para falar da "Regra do Jogo" rsrsrs. E ainda, adoro fazer comparações, nas aulas de Literatura, dos livros, obras e contextos históricos com as novelas... ^^

    Iago Gomes

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    1. Caríssimo, promover encontros no qual falamos com os nossos afetos sobre tantos assuntos já seria razão suficiente da permanência do gênero...as demais fazem a alegrai de gente como nós que não resiste em analisar todo e qualquer texto...

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  2. Amiga,
    A cultura precisa de interlocução e você prova isso o tempo todo.
    Com a admiração de sempre,
    Flávia

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  3. Mais um texto encantador da nossa querida Alana Freitas. Como não admirar essa escrita? Eu assino embaixo dessa declaração de amor às telas, que tanto me diz respeito. E eu sofro rejeição pelos estudos em teledramaturgia, isso é fato. Há quem diga ser desperdício de tempo e dinheiro manter alguém estudando telenovelas na academia. Mas para quem já sofreu por tantas outras coisas na vida, essa recusa ao meu trabalho só me dá mais força pra continuar. E continuo, só pra contrariar, afinal sou leonino. Digo mais uma coisa, o que me importa é estar bem e feliz, e sou um felizardo por ter me enveredado nos estudos em teleficção. Os retalhos da memória, na colcha que é a minha história, as telenovelas estão evidentes, compondo o mosaico da minha vida. E as entretelas? Essas, sem dúvidas, são a chave da minha felicidade. Obrigado por traduzir a alegria de ser noveleiro.

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    1. Que nossas colchas sempre nos aqueçam...muitas de minhas memórias são pontuadas cronologicamente pelas lembranças de cenas de novelas...naquela época que aconteceu aquilo, estava vendo isto..

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  4. Alana,

    você, como sempre, magnífica. Que bom que temos professores de seu gabarito que assistem e escrevem sobre novelas. Chega de preconceitos !
    Maria Zélia

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    1. Abaixo todos eles...Como nos versos de Caeiro que dizem mais ou menos assim: Belo é o nome que dou as cousas, de acordo com o agrado que elas me dão...

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