“Existem
poucas histórias, é a maneira de contá-las que faz a diferença” Daniel Filho
A epígrafe que abre este
texto, da autoria do ator diretor Daniel Filho, um dos grandes nomes da
televisão do Brasil, expressa as minhas primeiras impressões sobre A dona do
Pedaço, novela de Walcyr Carrasco com direção acurada de Amora Mautner, que estreou trazendo sabor novo ao horário
nobre. Ele que é um chef em misturas exitosas como Chocolate com pimenta,
parece que nos brindará com outro cardápio saboroso.
Estruturada nos elementos
centrais do folhetim e do melodrama, a novela trata de amores impossíveis, famílias rivais, crianças
perdidas, mocinha virtuosa, vale de lágrimas, segredos guardados, dentre outros
fios tradicionais da telenovela. Temas que já vimos em tantas outras tramas nas
telas e nos livros, mas ainda são capazes de nos comover e nos por diante da televisão
(ou do smartphone, em tempos de segunda tela) a torcer pela felicidade de Maria
da Paz. Como na frase de Daniel Filho, é a forma de contar que nos põe
entusiasmados a assistir a mesma história contada de outra maneira. Os ingredientes
do bolo parecem conhecidos, mas a forma de misturá-los e a apresentação da
receita faz o já visto parecer novo diante de nós. E lá estamos a degustar
nossa fatia diária...
A novela iniciou com muita
força e repleta de simbologias. Numa espécie de lugar perdido no Brasil
profundo, Rio Vermelho, duas famílias de pistoleiros rivais vivem em eterna disputa,
onde cada morte é vingada seguindo a Lei de Talião. De um lado, os Mateus, do
outro, os Ramires (remete aos Badarós e aos Silveira de Terras do Sem Fim de
Jorge Amado), e para desequilibrar essa eterna guerra de sangue, brota o amor
de Maria da Paz e Amadeu (nomes motivados, trazem a aliança em seus
significados).
Um amor que nasce na natureza, longe da cultura
e das convenções, ele a salva do galope do cavalo, lhe dá água, ela lhe dá seu
corpo e sua alma. Vale destacar, no campo dos símbolos, tendo no centro o
sangue, a cena na qual a matriarca (Fernanda Montenegro, não há adjetivos para
te louvar) treina as crianças atirando nas chamas das velas, metáfora da vida.
Só Maria da Paz não acerta, indicando ali que a sua chama continuaria acesa e
que ela não nascera para aquele destino. A sua chegada na Rodoviária de São Paulo rezando o salmo 23 foi uma cena forte e bem realizada, mostrando sua singularidade em meio à multidão que por ali chega todos os dias.
O capítulo de sexta-feira
(24-05) foi icônico, enquanto Maria da Paz começava a dar seus passos que a
tornará A dona do pedaço, ao lado de um núcleo cômico cativante, bem ao gosto
dos clowns de Shakespeare, formado por atores de excelência (só não foi uma boa
escolha Beth Farias como mãe de Nanini, a diferença de idade é inconcebível, literalmente, até brincaram com o seu biquini),
sua avó cobrava a dívida familiar com mãos de ferro e força mítica. Matou seus
inimigos e ateou fogo na casa rival, mais simbólico impossível, numa sequência
de ação e emoção notáveis. Antes de morrer, a mãe coragem em sua carroça,
arrancou o segredo que ali fora buscar, é preciso encontrar as crianças, a
continuação do clã, juramento que moverá os Ramires. Destaque para o papel do
padre, um veículo constante de apaziguamento.
Do outro lado do Brasil
profundo, em São Paulo, outro país pulsa. Com suas personagens de um Brasil
real, a professora aposentada com seus proventos minguados e coração gigante, o
drama dos sem-teto amainados pela comicidade, o esnobismo da alta burguesia
(Nathália Timberg divina), universo outro que atravessa o destino da
protagonista, que como ela afirmou, se veste de esperança. Em suas costas,
outro acordo será selado pelas mães sobreviventes, a morte dos amantes, para
elas essa união é impossível, só gera tragédia. Como em O Seminarista de Bernardo Guimarães, a família sustentará essa falsa morte para enterrar o amor
impossível, mas é claro que ele voltará com força...
Destaquemos ainda a beleza
estética da trama com fotografia belíssima, cenas campais, sol que nos
incandesce, interpretações viscerais, com menção honrosa para Luiz Carlos
Vasconcelos, trilha musical bem brasileira e vivificante, abertura saborosa que
deixa a gente com aquele gostinho de quero mais...Ao final, é isso que toda boa
história nos provoca, o desejo de querer mais um pedaço...De bolo e de ficção...