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quarta-feira, 29 de julho de 2015

Sete Vidas ou a arte de contar boas histórias

A novela das seis geralmente é caracterizada por trazer à cena narrativas leves que vão preparando o telespectador gradativamente para os horários posteriores das  19, das 21 e, mais recentemente, das 23. A sequência seria mais ou menos assim 18/19/21/23, leveza/humor/peso/peso-pesado, gradação baseada na densidade das tramas e complexidade das personagens.

A atual trama das 18:00 da Rede Globo, Sete Vidas, de Lícia Manzo (já havia mostrado seu talento em A vida da gente) experimenta um doce sucesso, mesclando dosadamente essa gradação. A um só tempo ela retempera o quarteto leveza/humor/peso/peso-pesado, a partir de uma história muito bem construída através das Sete Vidas anunciadas no título. Essas Sete Vidas, na verdade oito contando com Júlia(Isabelle Drummond), jovens que têm por ligação serem filhos de um mesmo doador, funciona como um catalizador para as outras tramas paralelas que, de alguma forma, se interligam com essa árvore genealógica de vanguarda. Note-se que não se trata de um mesmo pai e sim de um mesmo material genético, o que já é por si inovador, pois o tema é muito novo e suscita muitas dúvidas quanto à legitimidade desses laços.

A novela tem sido uma grata surpresa ao trazer para nossa sala temas como psicanálise, crianças especiais, dislexia, novas composições familiares, ecologia, vocações e etc., sem ser panfletária ou moralizante. Mas, de fato, no que ela é melhor é no tratamento que dá as diversas relações humanas, explorando com muita delicadeza os meandros dos relacionamentos. Sejam eles fraternos, maternos, paternos, conjugais, profissionais e entre amigos, a vida vai seguindo através de diálogos impecáveis que nos prende no sofá por uma hora, torcendo para ouvir de novo a bela música e imagens da abertura assim que acabam os comerciais. Nessas relações há um destaque especial para os amores maduros, para as mulheres fortes ao lado de homens vacilantes e para os amigos à toda prova.

Outro aspecto que chama a atenção e traz frescor para a história é a ausência de vilões. Aqui não há o velho maniqueísmo que sustenta a literatura há milênios, o inimigo somos nós mesmos, nossos desejos e nossas escolhas. Não há um mal a combater e sim nossas fraquezas e angústias cotidianas na busca da felicidade. Some-se a isso a presença de grandes atores de diversas gerações e formações diversas (Regina Duarte, Domingos Montagner, Cyria Coentro, Débora Bloch e o jovem Guilherme Lobo, brilhando como Bernardo), trilha sonora refinada e uma pujança de referências culturais (ópera, literatura, pintura).


Eis uma belo mosaico do humano. Leve, sem deixar de tratar dos temas pesados da vida, bem-humorada, mesmo quando o assunto é peso-pesado. Assim como a vida, a dos outros e a da gente, sejam de sete pessoas ou de todos os seu múltiplos. E a fórmula é muito simples: Todo mundo gosta de ouvir boas histórias e, como o sultão de Sherazade, vamos  acompanhando e esquecendo dos nossos próprios enredos...É a magia da ficção que continua a nos encantar a despeito do peso-pesado da vida...

Vixe Maria, Deus e o Diabo na Bahia ou - Machado de Assis no tacho do dendê

Machado de Assis, escritor renomado pela qualidade literária dos seus romances, entre eles os inesquecíveis Memórias Póstumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro, também se destacou na produção de contos imperdíveis que já se consagraram pela presença constante nas mais diversas antologias do gênero, textos como O Alienista, Missa do Galo ou A Cartomante povoam a memória dos leitores brasileiros que já se aventuraram por suas páginas.

Mas, a propósito da ocasião da visita em nossa cidade do espetáculo Vixe Maria Deus e o Diabo na Bahia, de Claudio Simões, nos remetemos de imediato a um conto não muito conhecido do nosso bruxo do Cosme Velho, mas sem dúvida um dos melhores, A Igreja do Diabo, que faz parte do volume de contos Histórias sem Data.

O argumento do espetáculo, espetáculo com todas as letras pela qualidade inegável da produção, é o mesmo do conto machadiano: Eis que cansado da monotonia do inferno, o Diabo resolve fundar sua própria igreja para competir com a igreja de Deus, e por ser um concorrente honesto, avisa ao Todo Poderoso do seu intento.

Daí em diante começa o processo de criação/reinvenção da peça baiana,  pois é justamente em Salvador que o Demo vem fundar sua Infernal Sé, obviamente no período que antecede o Carnaval e há uma festa todo dia na Bahia, ou seja, Salvador está do jeito que o Diabo gosta. E Deus, diante de tal ameaça, é obrigado a aterrissar por aqui também.

Conflito estabelecido, o tacho do dendê começa a ferver, numa deliciosa mariscada onde tem de tudo: Festa de Santa Bárbara/Iansã, procissão do Senhor do Bomfim com direito a citação do Senador como membro do cortejo, outro patrimônio cultural baiano, Festa de Iemanjá, Feira de São Joaquim, com todas as suas cores e sabores, do cesto de umbu a taboca, dos vendedores de ervas ao picolé Capelinha (nada foi esquecido!) nessa formidável mistura, temperada pelo legítimo baianês.

E por falar em baianês, na moral e sem exagero, meu rei, um dos pontos altos do espetáculo é justamente, a linguagem, a inserção da “língua baiana” com todo seu charme e gingado das ruas, é hilário ver Deus e Diabo falando baianês, é um tal de “Tome”, “Se lascou”, “Receba”, entre outras pérolas da língua gostosa do povo como dizia Manuel Bandeira.

Voltando ao conflito principal da trama, Deus e Diabo, na sua eterna peleja, visitam os supostos lugares onde estariam seus fiéis, entre eles um terreiro de candomblé e uma igreja evangélica, passagens que despertam risos soltos no expectador mais casmurro que por ali estivesse. O cotidiano das duas religiões é mostrado em forma de galhofa (para usar um termo machadiano), mas a profundidade da reflexão que dali podemos extrair é uma espetada nas mentes adormecidas. É o velho Ridendo Castigat Morus, por ali disfarçado de canga e protetor solar.

Outro elemento notável é a musicalidade do espetáculo, sem nem uma nota a mais ou  acorde a menos, a música baiana imprime um ritmo forte e sedutor durante as duas horas de palco, aliás, ornado por um belíssimo cenário e adequado figurino. Os hits dos carnavais baianos vão se enfileirando numa harmonia de arranjos de dar inveja a qualquer Escola de Samba do primeiro grupo.

Enfim o público de Feira de Santana que prestigiou em massa o evento, avis raras em nossa cidade, saiu com a alma lavada, gratificado por tão nobre diversão.

Ah!...Sobre o conflito eterno entre Deus e o Diabo, vai continuar ad infinitum, como forças que se retroalimentam. O bem só existe porque sua face oposta o completa e vice-versa e versa-vice. É o eterno dualismo humano, trabalhado na peça na perspectiva regional, que como nas grandes obras, leva ao universal.

Terminemos como o próprio Machado de Assis termina seu conto: Que queres tu? É a eterna contradição humana. De fato uma história sem data.

Ah! Que loucura essa mistura, Deus no coração e o Diabo no quadril.

Sete vidas: um lírico mosaico da alma humana

A novela que se findou essa semana suscitou em seus assíduos e apaixonados telespectadores contato com emoções diversas e questões sociais de várias escalas. Como numa paleta de um hábil pintor, a trama fez emergir um belo painel da nossa existência contemporânea, mas também eterna. A partir de um mote inovador, a paternidade de um doador, a trama foi se costurando e nos encantando dia após dia.

O tão esperado capítulo final ( gostaríamos que ainda não o fosse) foi fiel à trajetória de toda trama. Sem finais apoteóticos prezou pela sinceridade das emoções verdadeiras. Cenas no aeroporto, chegadas e partidas, simbolizando o fluxo da vida na qual nada está estático e tudo flui num eterno devir. Relações terminando, outras começando, famílias se formando, rótulos sendo revistos, com trilhas sonoras diversas que marcam o ritmo do coração, mas também com a dose de silêncio do cinema mudo, onde as palavras são impotentes e os gestos falam mais alto.Lígia, dividida ente o amor-brisa e o amor-vendaval, escolheu o segundo, mas certa de que o seu marujo agora já sabe atracar na segurança de um porto. Júlia, a restauradora, teve papel seminal na trama, colando os cacos para que o mosaico final ganhasse vida.

Outro aspecto que fez a narrativa ser tão especial e que percebêssemos a profundidade do texto através de muitas cenas de diálogo, foi o tempo para escutar. Quase todas as personagens tinha um amigo/confidente com quem podia partilhar suas angústias, tomando um café, uma taça de vinho ou de sorvete, algo tão raro em nossos tempos modernos. Daí surgiram os melhores momentos da novela, numa conversa sincera na qual nem sempre se ouvia o que se desejava.

Além disso, como já dissemos antes, o texto refinado era salpicado de citações de vários campos do conhecimento. Nesse último dia, Fernando Pessoa para coroar a navegação dessa família, tão única e tão múltipla a um só tempo, através do filho que se fez presente na ausência, aquele que recebeu do pai duas vidas e herdou seu destino errante.Final feliz e casamentos? Sim... Os dois. Não a felicidade definitiva do foram felizes para sempre, mas a provisória, feita de momentos únicos. Casamento, sim, à moda das sutilezas típicas da trama, os dois casais de branco singrando os mares com as promessas do sol por testemunha. Que venham novas histórias bem contadas como essa para saciar nossa fome inata de ficção, afinal Navegar é preciso e viver é impreciso!