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quarta-feira, 29 de julho de 2015

Vixe Maria, Deus e o Diabo na Bahia ou - Machado de Assis no tacho do dendê

Machado de Assis, escritor renomado pela qualidade literária dos seus romances, entre eles os inesquecíveis Memórias Póstumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro, também se destacou na produção de contos imperdíveis que já se consagraram pela presença constante nas mais diversas antologias do gênero, textos como O Alienista, Missa do Galo ou A Cartomante povoam a memória dos leitores brasileiros que já se aventuraram por suas páginas.

Mas, a propósito da ocasião da visita em nossa cidade do espetáculo Vixe Maria Deus e o Diabo na Bahia, de Claudio Simões, nos remetemos de imediato a um conto não muito conhecido do nosso bruxo do Cosme Velho, mas sem dúvida um dos melhores, A Igreja do Diabo, que faz parte do volume de contos Histórias sem Data.

O argumento do espetáculo, espetáculo com todas as letras pela qualidade inegável da produção, é o mesmo do conto machadiano: Eis que cansado da monotonia do inferno, o Diabo resolve fundar sua própria igreja para competir com a igreja de Deus, e por ser um concorrente honesto, avisa ao Todo Poderoso do seu intento.

Daí em diante começa o processo de criação/reinvenção da peça baiana,  pois é justamente em Salvador que o Demo vem fundar sua Infernal Sé, obviamente no período que antecede o Carnaval e há uma festa todo dia na Bahia, ou seja, Salvador está do jeito que o Diabo gosta. E Deus, diante de tal ameaça, é obrigado a aterrissar por aqui também.

Conflito estabelecido, o tacho do dendê começa a ferver, numa deliciosa mariscada onde tem de tudo: Festa de Santa Bárbara/Iansã, procissão do Senhor do Bomfim com direito a citação do Senador como membro do cortejo, outro patrimônio cultural baiano, Festa de Iemanjá, Feira de São Joaquim, com todas as suas cores e sabores, do cesto de umbu a taboca, dos vendedores de ervas ao picolé Capelinha (nada foi esquecido!) nessa formidável mistura, temperada pelo legítimo baianês.

E por falar em baianês, na moral e sem exagero, meu rei, um dos pontos altos do espetáculo é justamente, a linguagem, a inserção da “língua baiana” com todo seu charme e gingado das ruas, é hilário ver Deus e Diabo falando baianês, é um tal de “Tome”, “Se lascou”, “Receba”, entre outras pérolas da língua gostosa do povo como dizia Manuel Bandeira.

Voltando ao conflito principal da trama, Deus e Diabo, na sua eterna peleja, visitam os supostos lugares onde estariam seus fiéis, entre eles um terreiro de candomblé e uma igreja evangélica, passagens que despertam risos soltos no expectador mais casmurro que por ali estivesse. O cotidiano das duas religiões é mostrado em forma de galhofa (para usar um termo machadiano), mas a profundidade da reflexão que dali podemos extrair é uma espetada nas mentes adormecidas. É o velho Ridendo Castigat Morus, por ali disfarçado de canga e protetor solar.

Outro elemento notável é a musicalidade do espetáculo, sem nem uma nota a mais ou  acorde a menos, a música baiana imprime um ritmo forte e sedutor durante as duas horas de palco, aliás, ornado por um belíssimo cenário e adequado figurino. Os hits dos carnavais baianos vão se enfileirando numa harmonia de arranjos de dar inveja a qualquer Escola de Samba do primeiro grupo.

Enfim o público de Feira de Santana que prestigiou em massa o evento, avis raras em nossa cidade, saiu com a alma lavada, gratificado por tão nobre diversão.

Ah!...Sobre o conflito eterno entre Deus e o Diabo, vai continuar ad infinitum, como forças que se retroalimentam. O bem só existe porque sua face oposta o completa e vice-versa e versa-vice. É o eterno dualismo humano, trabalhado na peça na perspectiva regional, que como nas grandes obras, leva ao universal.

Terminemos como o próprio Machado de Assis termina seu conto: Que queres tu? É a eterna contradição humana. De fato uma história sem data.

Ah! Que loucura essa mistura, Deus no coração e o Diabo no quadril.

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