A minissérie Justiça, escrita por Manuela Dias, autora que já mostrou a que veio
em Ligações
perigosas, tem nos surpreendido a cada capítulo com sua narrativa
sofisticada que sonda os limites da moral humana. Através de 4 histórias,
aparentemente independentes, a trama tem mexido com nossas emoções e piorado a
noite dos insones, já que cada caso continua conosco sem chances de fazer
calar. Eles ficam ecoando em nossa consciência e nos coloca em constante dúvida
sobre os dilemas dos protagonistas.
Cada história, cada uma a seu
modo, através de vidas interrompidas por fatos destruidores, se assemelha por cumprir um
ciclo temporal de 7 anos e confundir as relações binárias possíveis entre crime/castigo, justiça/injustiça,
vingança/perdão. É difícil, diria impossível, escolher qual é a mais
profunda. Ao lado dos dramas principais que vai do assassinato à eutanásia, do
tráfico ao estupro, temos infinitas tramas paralelas, como o preconceito racial,
os vídeos vazados, as campanhas políticas, a prostituição, as gritantes diferenças sociais (a cena do
cemitério com Rose procurando o túmulo da mãe foi sintomática desse abismo que
separa as classes na vida e na morte), a crueza dos presídios, as relações
trabalhistas, os meandros do direito, dentre tantos outros. Aliás, esse último
é explorado nos seus diversos sentidos. Houve uma cena que julgo ser o eixo da
série.
A personagem Elisa, vivida por
Débora Bloch, mãe da filha assassinada pelo dantes bad-boy Vicente (a cena da
morte foi talvez a mais forte até agora, uma releitura comovente da Pietá), é um professora de Filosofia do Direito e no
início de sua aula ela falava sobre o conceito de moral que sustenta essa
disciplina e narrava alguns casos para que os alunos opinassem de acordo com o
conceito de moral de cada um. Esse parece ser o mote da trama. A série nos
coloca na condição de jurados e para nos dar elementos para esse julgamento vai
narrando os casos através de diversos ângulos do social e do humano. E se as
histórias em si são pungentes e carregadas de dor, a forma de narrá-las é um
espetáculo extra.
Através de uma narrativa
prismática, somos convidados a mirar cada drama sob variados pontos de vista,
não cabe nessa trama opiniões absolutas sobre nada. Tudo é e não é a depender
do foco de luz lançado sobre o prisma. A estratégia narrativa cruza as
histórias de uma forma surpreendente, encaixando os fios e tecendo uma espécie
de tapeçaria na qual tudo acontece ali do nosso lado, mas só é realmente
importante o nosso problema, exatamente como na vida.
Destacam-se também a qualidade dos
diálogos, a trilha sonora, a caracterização das personagens (Adriana Esteves
espetacular), a cidade de Recife que também ocupa um lugar de personagem na
trama, como espaço tentacular, ora solar, ora sombrio, ora becos, ora avenidas,
ora biroscas, ora restaurantes finos. Eis uma série que marcará a nossa
dramaturgia e nossas memórias e alimentará nossa insônia com os fantasmas morais
que são deles e agora nossos também. Continuemos na nossa posição de júri e de
espectadores /expectadores ávidos por Justiça.