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domingo, 1 de dezembro de 2019

Amor de mãe ou o Rio de Janeiro para além dos cartões postais




Amor de Mãe estreou essa semana como grande promessa de restabelecer a qualidade narrativa do horário das 21:00h, depois de duas tramas que deixaram  a desejar (o gato miou e o bolo solou). Esse é o horário nobre da telenovela por excelência,  aquele que reúne milhões de pessoas em torno da tela para apreciar sua dose diária de ficção. Da autoria de Manuela Dias, inaugurando sua primeira novela depois de séries excepcionais como Justiça e Ligações Perigosas, aliás, o tom da primeira se faz presente com força na novela. Os primeiros capítulos cumpriram a expectativa e foram arrebatadores!

O tema escolhido, Amor de mãe, é universal e atemporal, atinge a todos de variadas formas. Será trabalhado a partir de três protagonistas, Lurdes, Telma e Vitória. Mulheres de classes sociais diferentes, mundos diferentes, mas que se unem no drama individual e coletivo do amor incondicional aos seus filhos. É interessante notar o cruzamento da tríade, como a trama conduz a ligação entre elas. Todas Mães-coragem (Brecht, a carroça) lutando pela felicidade de seus filhos, todas personagens ambíguas que borram o maniqueísmo tradicional. Embora sejam 3 protagonistas, Lurdes parece ser o fio condutor para a história. Regina Casé está brilhante no papel que alude a outras personagens já interpretadas por ela no cinema (Darlene de Eu, tu e eles e Val de Que horas ela volta?), traz consigo a força do drama, mas com aquelas notas precisas de comédia ( a cena do dinheiro na praia, a desconfiança à primeira vista de Raul) que nos fazem chorar e rir e torcer por ela, mesmo quando a linha da ética oscila em nome da proteção das crias.

Em pouco tempo já tivemos contato com cenas magistrais, como a reação de Lurdes ao descobrir  a venda do seu filho, a perda do bebê de Vitória e o discurso de formatura de Camila, professora de História, personagem simbólica pelo papel que ocupa e pelo momento atribulado que vivemos, e suas primeiras aulas em uma escola pública tendo que enfrentar a realidade dura de estrutura precária,  de alunos desmotivados e  de uma rajada de tiros, mas mesmo assim ela cantou e segue em frente e segura o rojão, podia perfeitamente ser uma cena de Segunda Chamada.

Vale destacar que a novela, na minha leitura, não tem três protagonistas, mas sim quatro. A quarta é a cidade do Rio de Janeiro com toda sua rede intricada de espaços e paisagens que os cartões-postais não mostram. Observem como há cenas externas, nas quais as ruas e suas figuras ganham vida sejam nos becos, sejam nos ônibus, sejam nas avenidas da Zona Sul. A trama traz uma geografia social externa e interna, mostra espaços abertos e o interior das casas, sejam nas mansões e ilhas ou nas casas inacabadas e apartamentos populares. E esses lugares determinam muito do tom de cada núcleo (a solidão de Lídia em sua mesa gigante e  corredores de sua mansão, a união da família de Lurdes em sua cozinha apertada onde todos se encontram todo tempo, o velho restaurante e a velha casa de Telma e seu apego ao passado). O espaço adquire feição de personagem e dialoga com a narrativa.

Muitos pontos altos merecem nota, a escalação de atores, o texto, os flashbacks sofisticados, o ritmo rápido,  a película de cinema, a tensão constante,  a trilha sonora diversa e escolhida com primor (de Fábio Junior a Aznavour passando por Bethânia e Gonzaguinha e cia, É foi também trilha de Vale Tudo!), os cenários, os intertextos (Gabriela contemporânea tira drone do telhado). Como foi já veiculado em entrevistas, na trama não há grandes vilões, a vilania está na própria vida com suas agruras diárias, há algumas personagens que encarnam o mal em algumas ações como Sinézio, Vera, ou o empresário ambicioso (Irandhir surpreendendo em um papel que nunca fez) mas que não chegam a serem os grandes opositores, essa estratégia traz um sopro novo para a teledramaturgia, assim como o fato de não termos um par romântico no centro do enredo.  É a vida, o destino e as condições sociais que costuram o bem  e o mal e as dores e delícias...De ser mãe e de ser humano... Sigamos com fé que  a gente não pode deixar de sonhar !!!




9 comentários:

  1. Não costumo acompanhar as novelas, mas sempre dou uma olhada quando alguém está assistindo. Ai aproveito para saber o que está acontecendo de real pelo país das maras maravilhas.
    O que me desperta interesse, mesmo, Alana, é o excelente nível das suas intervenções; essas capazes de fazer o público noveleiro perceber mais e melhor o mundo em nossa volta.
    Ainda bem que existem entretelas, título já rico e polissêmico.

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  2. Obrigada, caríssimo Cid. Um elogio seu vale ouro com diamante! Lembro que no começo você resistiu ao objetivo do blog, recebo com alegria sua leitura refinada.

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  3. Cresci com minha mãe acompanhando tooooodas as novelas, ai de quem fizesse barulho na sala! Kkkk por achar que essa programação roubava o meu tempo de partilha com a minha preciosa, desenvolvi uma certa aversão e não assisto. Porém, a partir do contato com os textos produzidos pela pró Alana começo a ter um tanto de interesse em assistir. Parabéns, pró, pela análise sóbria e envolvente.

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    1. Obrigada, cara leitora, bom saber dessa influência de meus textos em sua postura diante das tramas...Há muita coisa boa nelas!

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  4. Já faz um tempo que não acompanho novela, mas ainda não perdi nenhum capítulo de amor de mãe. Tenho observado, para além das atuações, os cenários, as locações, é tão diferente de todas ostentações que a Globo sempre mostrou no horário nobre. Tomara que eu continue. Por enquanto estou gostando. A sua análise foi ótima.

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    1. Obrigada, cara Leitora. A paisagem fazendo toda a diferença na trama, nos obrigando a ver além.

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  5. Alana, tens sido para nós, teus ávidos leitores, como se fosse uma co-autora dessas obras que a Globo vem nos presenteando nos últimos anos. O que fazes aqui é um letramento sobre a arte de fazer novelas e séries e filmes: enredo, cena, cenário, atuação, direção, locação, guarda-roupa, produção, fotografia, script e personagem. Sim, há também o etcetera e tal que se faz a cola de tudo isso a nos estremecer.
    Dizer, ou melhor, categorizar a locação como protagonista do enredo é de uma sensatez observatória digna de júri de festivais de cinema pelo mundo a fora. Sim, o Rio de Janeiro tão senhor de si e figuraça nas produções globais, nunca antes fora mostrado tão sequelado, tão exposto ao repúdio, medo e soslaio dos telespectadores do horário nobre. Os cenários são tão gente, tão áridos (mesmo a mansão linda e enormemente vazia de Lídia com vistas para um mar que jaz), tão mãos que não mais afagam por não saberem o quão milagroso é o toque no/para outro.
    Sinto e vejo que essa história contada, não por acaso, por uma mulher, uma mãe, traz algo que não via há algum tempo nos folhetins globais: gente com cara, jeito e olhar de gente real: os personagens construídos parecem com as pessoas que alguns atores são na vida real; é como dizer, se é possível tecer sem milindres tal comentário, alguns ator/atriz estão, em muito, representando a si mesmos, na linha tênue entre a vida e a arte. Ouso dizer que Regina Casé - tão necessária à trama e a tantas outras novelas que infelizmente ela não contracenou - nunca foi tão Regina Casé atuando, como nessa história de mães. É tão realista a atuação dela na Lurdes, que estou sempre a marejar os olhos quando ela aparece e rouba a cena. Poderia falar de outros personagens que são seus atores, mas não cabe "bainhas" nesse linho fino escolhido magistralmente por Manuela Dias.
    Volto à cidade, à Cidade Maravilhosa, a quarta protagonista revelada por ti, Alana, e sei que já há muitas coisas a dizer sobre essa personagem, mas prefiro observá-la com cautela, de pouco a pouco, como se turista eu fosse e, devagarinho, vou ao encontro de suas belezas e mazelas como bem cantou Caetano _que menos a conhecerá e mais a amara_. No mais e por enquanto, pois cedo é, e o dia é longo nesse enredo tão gente que faz, aproveito os intervalos e leio um velho livro de poesias encontrado jogado em um canto da casa. Abro as páginas e começo a ler com um _amor de mãe_ os versos do poeta...
    "Vi todas as coisas e maravilhei-me de tudo.
    Mas tudo ou sobrou ou foi pouco, não sei qual, e eu sofri.
    ..."

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    1. Caríssimo leitor, que alegria ler seu comentário, muito além de um comentário, uma ode à arte de ver, de ver e de enxergar além, de ver e fazer sentir o que a trama nos dá sob as camadas dos muitos tecidos da trama. Abraços comungantes, continuaremos sempre em diálogo.

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  6. Equilíbrio nítido entre o texto,a direção de arte,o elenco,o cenário e a trilha sonora,resultando em doses de realismo e narrativa inovadora.Excelente novela!

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