Como e porque sou noveleira
José de Alencar (1829-1877), um dos maiores intelectuais e ficcionistas desse
país, em um texto autobiográfico de grande beleza Como e porque sou romancista[i]
narra, entre outras tantas memórias, um episódio de sua infância que retomo
aqui nesse preâmbulo:
Não
havendo visitas de cerimônia sentava-se minha boa mãe e sua irmã D. Florinda
com os amigos que pareciam, ao redor de uma mesa redonda de jacarandá, no
centro da qual havia um candeeiro. Minha mãe e minha tia se ocupavam com
trabalhos de costuras, e as amigas para não ficarem ociosas as ajudavam. Dados
os primeiros momentos à conversação, passava à leitura e era eu chamado ao
lugar de honra. Muitas vezes, confesso, essa honra me arrancava bem a
contragosto de um sono começado ou de um folguedo querido; já naquela idade a
reputação é um fardo e bem pesado. Lia-se até a hora do chá, e tópicos havia
tão interessantes que eu era obrigado à repetição. Compensavam esse excesso, as
pausas para dar lugar às expansões do auditório, o qual se desfazia em
recriminações contra algum mau personagem, ou acompanhava de seus votos e
simpatias o herói perseguido. Uma noite, daquelas em que eu estava mais
possuído do livro, lia com expressão uma das páginas mais comoventes da nossa
biblioteca. As senhoras, de cabeça baixa, levavam o lenço ao rosto, e poucos
momentos depois não puderam conter os soluços que rompiam-lhes o seio. Com a
voz afogada pela comoção e a vista empanada pelas lágrimas, eu também cerrando
ao peito o livro aberto, disparei em pranto e respondia com palavras de consolo
às lamentações de minha mãe e suas amigas. Nesse instante assomava à porta um
parente nosso, o Revd.º Padre Carlos Peixoto de Alencar, já assustado com o
choro que ouvira ao entrar – Vendo-nos a todos naquele estado de aflição, ainda
mais perturbou-se: -Que aconteceu? Alguma desgraça? Perguntou arrebatadamente. As
senhoras, escondendo o rosto no lenço para ocultar do Padre Carlos o pranto e
evitar seus remoques, não proferiram palavra. Tomei eu a mim responder: -Foi o
pai de Amanda que morreu! Disse, mostrando-lhe o livro aberto.
Tal cena, um serão de leitura bem aos moldes burgueses do século
XIX, nos remete diretamente à relação do brasileiro com a telenovela. As
reações da plateia descritas pelo autor de O
Guarani ainda permanecem nas salas de nossas casas e estendem-se pelo dia
seguinte onde baste que dois espectadores se juntem em seu nome, ali ela estará.
É sabido que o gênero advém do folhetim romântico, romance em fatias, dividido
em capítulos e saboreado aos poucos, sorvido em goles diários. Daí tantas
semelhanças de heróis e mocinhas, romances proibidos, vinganças, segredos,
sangue e lágrimas.
Talvez daí também a sua sobrevivência
em tempos de tanta concorrência de outras telas. O drama humano sempre nos
atrairá e conquistará nossa empatia, independentemente da história, sempre torceremos
por uma personagem em detrimento de outra e reclamaremos um final feliz e, se
possível, com casamento, flores e bebês. Para o vilão nada menos que loucura,
morte, humilhação ou cadeia nele!
Para além das emoções catárticas do
serão de Alencar e dos nossos, a literatura propriamente dita (aquela que é meu
amor primeiro) e a teledramaturgia é também um veículo difusor de conhecimento.
A sua mathesis, como registrou Barthes, ou seja a sua força de transmitir
saberes é um dos seus tripés(ao lado da mimesis e semiosis) e concordamos que a novela brasileira tem desempenhado
com força esse papel. Concordamos também que num país de índices mínimos de
leitura de qualquer tipo, a novela tem nos ofertado algumas aulas sobre nossa
história, possibilitado discussões sobre graves problemas e influenciado
comportamentos e mudanças deles.
Se pensarmos em alguns temas como a
escravidão, por exemplo, tivemos aulas inteiras sobre a barbárie que esse fato
representou e continuou representando depois dele. Escrava Isaura(sucesso retumbante em todo mundo), Sinhá Moça, Força de um desejo, Lado a
Lado e Além do Tempo(em exibição)
mostraram para nós uma face maldita e mal dita da nossa nação. Com cenas memoráveis
como os castigos de Isaura ou a
abolição em Sinhá Moça (reescrita
lindamente no seu remake para abarcar discussões contemporâneas). A imigração e
seus desdobramentos nos renderam cenas antológicas em Terra Nostra ou O Rei do gado.
Sobre a ética ou a falta dela rememoro
com prazer O Dono do Mundo (miserável
Dr.Felipe Barreto, como as tias de Alencar, já te xinguei muito) ou a inesquecível
Vale Tudo, que, como sugere o título
escancarou o gênero ao premiar o vilão Marco Aurélio com um final feliz fugindo
num helicóptero e nos dando uma simbólica banana, ou ainda o emblemático herói Sassá Mutema de O Salvador da Pátria. Temas ligados às questões de
saúde estiveram presentes em diversas histórias, Câncer, Leucemia, Transplantes,
Síndrome de Down, Autismo, Esquizofrenia, Deficiência visual entre tantos que,
segundo dados oficiais, fazem o brasileiro correr atrás de informações, exames
e consultas.
Os temas tabus, que são tantos por
aqui, não fugiram das telas. Se tomarmos a questão homo afetiva como modelo
teremos uma travessia dolorosa que foi da morte do casal lésbico na explosão do
Shopping em Torre de Babel pela
rejeição do público, a atores que apanharam na rua por insinuarem um par romântico
(Jeferson e Sandrinho em A próxima vítima)
para uma aceitação, ainda que polêmica, de casais como Félix e Nico em Amor à vida(com direito a beijo
apaixonado) e de famílias como a das brilhantes damas Fernanda Montenegro e
Nathalia Timberg em Babilônia. É como se as tramas fossem formando
paulatinamente uma sociedade para a tolerância e aceitação.
Ainda no quesito comportamento, o
inventário seria infinito, divórcios, adoções, famílias-mosaico, crises de meia
idade, drogas, direitos femininos e feministas, violências diversas, enfim e sem fins,
seria impossível elencar. E meus leitores, se é que alguém me acompanhou até
aqui, devem ter percebido que estou tratando aqui só das novelas verossímeis,
aquelas pautadas no real concreto, porque para ir para os reinos encantados da
fantasia, onde outros tantos valores e saberes também são projetados,
precisaríamos de rios de caracteres e pixels para encantar esse cordel.
Vou ficando por aqui e como os
ouvintes de Alencar, continuo me emocionando com as tramas, da literatura e da
tela, pois a arte nos dá o direito aos sonhos, mas também, uma overdose de
realidade, ainda que ressignificada pelo espelho estilhaçado da ficção, como
nas camisetas panfletárias de Romero Rômulo, o feijão e o sonho...
[i]
Escrito em 1873 e publicado em 1893.