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domingo, 6 de setembro de 2015

O Pequeno Príncipe e os resíduos de utopia


                           O Pequeno Príncipe e os resíduos de utopia

O filme O Pequeno Príncipe, com direção de Mark Osborne, em cartaz nos cinemas desde 20 de agosto é uma adaptação do romance homônimo do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, publicada em 1943 nos Estados Unidos e no ano seguinte na França. Uma das obras mais lidas no mundo com traduções em diversas línguas (mais de 150) e que povoa o imaginário de crianças e adultos de diversas gerações.  Seu autor o classificava como “um  livro urgentíssimo para adultos” e, pelo que vimos na tela, continua urgentíssimo para as crianças e adultos do nosso tempo também.

Partindo do mote de uma menina contemporânea que é estimulada (ou obrigada) pela mãe a seguir um roteiro de incontáveis tarefas, a fim de ingressar numa escola que lhe garantiria um futuro promissor, temos um diálogo interessantíssimo com a falta de fantasia da nossa vida real. A metáfora da infância roubada é concretizada através do quadro de atividades incessantes impostas pela mãe, que acreditava estar encaminhando sua menina para uma vida de garantias. Todavia, essa vida acinzentada da criança será invadida, literalmente, pelo seu vizinho aviador-sonhador que lhe trará o sopro da novidade pelas frestas do muro (a imagem do vento bagunçando o quadro de tarefas é belíssima) apresentando-lhe o livro do Pequeno Príncipe. Esse seu vizinho excêntrico, que mora numa casa que destoa de toda a organização da cidade, será seu primeiro amigo e lhe fará sair do roteiro elaborado para ela e, a partir de então, o seu plano de vida passará a chocar-se com o plano de sua mãe.

A magia do romance passa a habitar o universo da menina, aí adentramos de fato no enredo do romance. Toda a narrativa do livro é recontada através das páginas que o vizinho vai lhe ofertando pouco a pouco, como goles de felicidade clandestina. O carneiro, os reis ditadores dos planetas, os diálogos profundos disfarçados de conversa de criança e é claro, a raposa, em minha opinião cena mais bela do livro e também do filme, uma lição sobre a amizade e poder dos elos afetivos que conquistamos. A famosa frase “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” ganha destaque especial na tela, quando a menina recolhe a raposa de pelúcia da lixeira ou quando tem algumas conversas com o bichinho que passa a ser sua companheira de aventuras.

Ainda vale destacar como um dos pontos altos do filme, o reflexo espelhado dos personagens do livro no nosso tempo real. Quem seriam aqueles reis déspotas, se não nossos homens de poder? Quem seria nosso Pequeno Príncipe, se não um jovem e seus conflitos? É bom lembrar que o contexto de produção do livro coincide com a II Segunda Guerra e que, hoje, elas continuam pequenas e grandes, espaçadas e permanentes.

As adaptações são sempre bem-vindas, renova o interesse, amadurece o diálogo, alarga o olhar, nos leva de volta às fontes. Em tempos de tanta distopia, a fantasia proposta pelo Pequeno Príncipe, seja no livro ou no filme, seja nos anos 40 ou agora,  nos revigora e, ao menos por alguns instantes, nos suspende da brutalidade do real que parece nos golpear cada vez com mais força. Sua mãe também se tornou capaz de admirar as estrelas. Saímos cativados pela arte e cientes que o essencial continua invisível aos olhos... Mas como é bom ver ainda alguns resíduos de utopia refletidos ou impressos nas telas.

domingo, 30 de agosto de 2015

Fim de Babilônia...Outros Édens possíveis...


Fim de Babilônia...Outros Édens possíveis...

O capítulo final de Babilônia foi alvo de muitas críticas por parte de seus telespectadores. De forma geral, não conseguiu transmitir aquela carga emotiva típica dos desfechos da dramaturgia. Não havia muito a se resolver no último dia, além do assassino de Murilo (solução pacífica, Otávio e Oswaldão, pois se o mal foi eliminado pelo próprio mal, nosso senso moral fica apaziguado). Até mesmo o casamento da mocinha Regina (nossa rainha justiceira), cena típica dos finais, não foi tão comovente assim.

Destacou-se também na reta final, uma forte tendência para a verossimilhança. Muitas cenas pareciam ser a continuação do Jornal Nacional, obviamente ressignificadas pela ficção. As falcatruas do prefeito Aderbal (velha parábola do lobo em pele de cordeiro) e seus conchavos com as empreiteiras e depois com o tráfico refletem o nosso cenário factual. Até mesmo a prisão dele e sua fala de mártir injustiçado (“eu voltarei nos braços do povo”) se encontram com outros personagens de nossa história politica. A corrupção, mostrada na trama através de vários prismas, mostra que, como a Hidra de Lerna, quando se corta um tentáculo, outro cresce. O diálogo de Guto na Boate com seu comparsa confirma que esse monstro brasileiro, infelizmente não mitológico, continuaria a ser alimentado por Consuelo (tal e qual a Senhora dos absurdos, personagem de Paulo Gustavo). O discurso de Teresa na assembleia (pareceu-me uma homenagem à juíza Denise Frossard), mais um papel brilhante de Fernanda Montenegro, mostra que alguns Hércules estarão lá tentando deter a fera, resíduos de utopia que sustentam nosso quixotismo.

Quanto ao final de Beatriz e Inês, inspirado nos filmes Thelma e Louise e em um dos Relatos Selvagens produzidos por Almodóvar, julgo pertinente com o desenvolvimento do enredo. A relação patológica entre as duas, numa eterna e cansativa disputa, acabou por matá-las como nas tramas passionais. Como já disse antes, esse eixo central não empolgou seu público e a novela brilhou com mais intensidade nos enredos secundários. A exemplo disso, o belo romance de Rafael e Laís. Nosso Romeu e Julieta revisitado, que à despeito das diferenças incontornáveis entre suas famílias, fizeram do seu amor vida e combate, inclusive contaminando com seus ideais Maria José, que ganhou vez e voz através do simbólico gesto de soltar os seus cabelos, saindo do papel e do figurino que lhes foram impostos. A cena final do jovem casal trilhando por uma estrada irregular foi uma bela metáfora de sua trajetória.

O fantasma da audiência atormentou a trama,  um ponto a ser revisto em época de TV Fechada, Redes Sociais, Netflix e outras telinhas que nos fazem desviar o olhar. Concordo que não foi um novelão daqueles, mas o folhetim venceu com suas belas cenas de amor e suas multifaces: A paternidade chamando Bento para a vida adulta, a regeneração de Wolnei, a dedicação sem reservas de Sérgio e Ivan, a mãe acolhendo Diogo de volta no seu colo, o triângulo insólito-cômico de Walesca (como abandonar Clóvis?), os beijos polêmicos de volta, todos em uma festa, símbolo de congraçamento... Édens outros dentro da Babilônia. E amanhã novas emoções nos aguardam, novo jogo, novas regras...

sábado, 22 de agosto de 2015

Babilônia e a opção pelas sutilezas do afeto...


 
Babilônia e a opção pelas sutilezas do afeto...

                                                                        A Oldack
Essa penúltima semana de Babilônia destacou-se por cenas de imensa afetividade, despertando nossas emoções e possibilidades de catarse provocada pela ficção. Vamos a elas:
Cena 1: Karen fazendo um bolo de chocolate e cobrindo com deliciosa calda para receber Júlia, sua enteada, antes detestada e maltratada por ela e por sua filha. Ela transferia para a criança o ódio pela traição do marido. O pedido de perdão, materializado em forma de bolo, simboliza a união dos irmãos. E essa mãe arrependida tem uma linda conversa com a filha sobre seus erros e, a menina, antes resistente, cede lugar no sofá e em sua vida para a amorosa irmã que sela a nova família com o beijo na antes madrasta má, agora redimida pelo poder do perdão...
Cena 2: Sérgio acompanha Ivan na fisioterapia e para quebrar sua resistência e revolta entra na piscina com ele, como fazemos com as crianças para ensinar-lhes com nossa companhia que transmite segurança e apoio...Cena de extremo amor. Amor em forma de cuidados, amor em forma de insistência, amor em forma de puro amor, quando as adversidades se impõem e só resta mesmo estar ali para o que der e vier...Quando os planos mudam, quando o sexo  esmaece, quando basta estar por perto.. E sai empurrando a cadeira do companheiro sob um lindo por do sol...
 Cena 3: Wolney mais uma vez poderia ter cometido um crime e quando tudo levava a crer na sua culpa pelo sumiço do dinheiro no caixa do restaurante, somos surpreendidos pela sua regeneração, quase heroica...Todas as pistas eram falsas, o pen-drive, o roubo, o tênis novo, esse último, surpresa genial, presente do irmão caçula, que entra iluminando a cena com a sua inocência linda de criança...Vitória da fraternidade e da crença na mudança do ser humano...o lodo não tragou o lírio...
Cena 4: Rafael burla a segurança do hospital para passar a noite ao lado de Lais na UTI, em coma provocado pela leviandade de sua família, e pela manhã ganha a cumplicidade do médico tocado pela devoção do rapaz. Velar o sono profundo de um coma, amor sem reservas...
Cena 5: Sérgio entra transtornado no apartamento para dar a notícia da morte de Carlos Alberto para Fred. O badboy desesperado, dilacerado pela perda, busca o abrigo nos braços do tio que ele passou a desprezar pela sua homofobia doentia...a cena dá indícios que sua redenção também virá, assim como a de Karen e Wolney...
                     Além dessas cenas de extrema sensibilidade, a semana também nos rendeu algumas gargalhadas com a entrevista de Norberto na TV, com a participação especial de Clóvis e Walesca, trio que ao que tudo indica, formará um tórrido triângulo amoroso, pura luxúria e gula. A trama central continua sem frescor, Beatriz, agora é serial killer,  livrando-se de todos que atrapalham seu caminho. Como boa narrativa maniqueísta que é, Inês também merece alguma punição...Sua “sede de justiça” também a arruinou moralmente. Aguardemos a última semana, já com vontade de pular para A regra do jogo e suas chamadas instigantes....é o jogo da ficção que nos chama para mais uma partida...

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Babilônia, cidade perdida e salva...


                            Babilônia, cidade perdida e salva...

Ai! Ai! Tu, grande cidade, Babilônia, tu, poderosa cidade! Pois, em uma só hora, chegou o teu juízo” (Ap 18.10).

Babilônia, novela das 21:00, mas que ainda por costume chamamos das 20:00, vai caminhando para o fim nesse mês de agosto cercada de críticas e da praga da baixa audiência. Sim, a novela é um produto, e como tal, há de agradar o público consumidor. Começou sob o fogo cruzado do ataque religioso-fanático que se chocou com o beijo do primeiro capítulo entre as veteranas Fernanda Montenegro e Nathália Timberg. A cena foi vítima de duplo preconceito, homofobia e gerontofobia, pois nos diversos comentários que ouvimos por aí , a dupla questão sempre vinha à tona: "Duas mulheres e naquela idade"...Contornos foram feitos na trama para tornar o casal mais palatável ao gosto da família brasileira(marca da obra aberta), o que parece ter funcionado. Apagou-se o erotismo e acendeu-se o companheirismo.
Creio que a trama peca no eixo central da eterna disputa entre Beatriz e Inês, as duas protagonistas (Personagens de Dante e Camões) não nos mostraram força suficiente para elegermos nossa preferência nessa luta do mal contra o mal, e as eternas sabotagens e tramoias vão ficando cansativas e repetitivas. E até mesmo os romances das duas são insossos e sem aquela química que costumamos ver entre os personagens principais. Todavia, o que falta de êxito no eixo central, parece surgir nas tramas paralelas. É na lateralidade que nos apoiamos para continuar acompanhando o enredo.

A família do prefeito (Marcos Palmeira, excelente no seu primeiro “vilão”) é o núcleo forte da trama. Serve como vetor para criticar diversos problemas da sociedade brasileira, funcionando muito bem para a ideia de família como célula da sociedade. Ali temos a corrupção, a hipocrisia, o falso moralismo, a religião usada como escudo para justificar injustiças, tudo isso com uma dose de humor que atrai a simpatia do público. Arlete Sales, grande como sempre, representa o estereótipo perfeito da sogra-megera-matriarca-deslumbrada-preconceituosa, que comete atrocidades e se esconde sob o manto do Altíssimo, suas intervenções esdrúxulas roubam a cena. A nora (grata surpresa da baiana Laila Garin) sufocada-reprimida-traída começa a se soltar e ameaçar a estabilidade do lar. E a menina Laís (brilhante revelação Luísa Arraes), confrontando os valores impostos por sua família de porta-retratos, traz ventos novos para o clã.

E essa “família-modelo” surge justamente como antípoda da “família invertida” de Rafael, na qual pulula amor, compreensão e valores morais, a despeito de sua questionada formação. Vale notar também nessas casas o tratamento que é dispensado aos empregados, outra critica bem sintomática da nossa ainda “Casagrandesenzala”.

Além desse núcleo lateral, temos outras histórias que vão brilhando aqui e ali. O romance nascendo entre Ivan e Sérgio com todas as pressões sociais. A força da solidariedade das famílias na periferia, o mau-caratismo simpático de Luís Fernando,  um tipo bem brasileiro(dialética da malandragem em alto grau), a graça dos clowns de Norberto e Clóvis, a força visceral de várias mães em defender suas crias, o preconceito racial e a atuação policial e jurídica.

Como nessa novela não temos uma questão principal entre o bem e o mal para torcemos no fim da trama pelo reestabelecimento da ordem, vamos torcendo para que essas lateralidades continuem a iluminar nossa sede de ficção, como na bela primeira noite/alvorada de amor de Rafael e Laís ou no conto de fadas moderno da nossa Cinderela Regina...Creio que virá nesse último mês cenas que nos aproximarão mais dessa Babilônia, pois quem fez O dono do mundo, Força de um desejo, Celebridade e Paraíso Tropical tem estofo para merecer nossa confiança...


quarta-feira, 29 de julho de 2015

Avenida Brasil, paixão nacional

A novela Avenida Brasil estabeleceu um novo marco na teledramaturgia brasileira. O seu êxito é indiscutível, haja vista tamanha comoção em torno do seu final que, literalmente, parou outra avenida, a Paulista (como na Copa do Mundo) e um sem número de outras avenidas pelo Brasil afora. João Emanuel Carneiro, certamente, foi alçado ao time da primeira divisão dos autores da Globo: Gilberto Braga, Manuel Carlos e Aguinaldo Silva.
O tema da vingança/justiça vem animando a literatura desde seus primórdios e restabelecer a ordem é a matriz de boa parte das narrativas escritas até então. O autor trabalha com um grande tema central e todas as outras histórias se cruzam com o eixo principal, fórmula já apontada em A Favorita. Talentoso e criativo soube beber sem moderação nas fontes literárias, inclusive com citações explícitas, como a lista de livros selecionadas por Nina para tentar abrir os olhos turvos de Tufão: O Primo Basílio e Madame Bovary.
Como bom técnico, soube explorar o time principal sem abrir mão de escalar o secundário. A tríade Adauto/Zezé/Janaína roubaram mesmo várias cenas. Os dois primeiros com um destacado humor e falas hilárias e a terceira com sua comovente missão de salvar o filho das trevas e com sua dose de marxismo às avessas, reproduzindo com sua empregada os desaforos recebidos na mansão. Como também soube abusar da versatilidade dos atores experientes, caso do inesquecível Leleco (Marcos Caruso) que ia da caricatura do velho-garotão ao pai-conselheiro em segundos e a dupla face de Santiago(Juca de Oliveira), um Gepeto, aparentemente adorável, que forjou o seu Pinóquio/Carminha assim como os brinquedos que consertava, meigos por fora e recheados de contrabandos, já que o lixo (ão) deve ficar sempre longe das vistas.

Quanto ao tão esperado final, gol de placa. A redenção de Carminha fugiu do clichê loucura/morte dos vilões e trouxe uma visão fraterna e generosa das fraquezas humanas. A remissão dos pecados é possível, mesmo sem perder sua essência, pois mesmo nos minutos finais ela ainda espicaçou seus comensais. Aliás, a cena da mesa, ceia de comunhão, reavivou os papéis familiares. Carminha teve nova chance de ser filha, mãe e avó, sem tintura nos cabelos, nem fantasia de falsa beata.  E nos 45 do segundo tempo, um jogo divino, reunindo todos os personagens, metáfora magistral da agregação brasileira em torno de suas paixões: Novela, Futebol e Cerveja, outra personagem marcante nessa história...

Fim de Império:O reinado do Comendador...

A consagração de uma personagem de novela pode ser medida quando ocorre com ele um processo metonímico, isto é, ele suplanta o título da trama. Nós não assistíamos à Avenida Brasil ou à Amor à vida, e sim à Carminha ou ao Félix. Tal processo repetiu-se agora com Império, foi e sempre será a novela do Comendador. Esse anti-herói por excelência, cheio de falhas morais, mas dotado de carisma inquestionável ganhou a simpatia dos brasileiros. Como em outras tramas anteriores de sucesso semelhante, fica para a reta final um enigma: Quem é Fabrício Melgaço? Talvez a pergunta correta fosse: Quem são Fabrício Melgaço? Já que se tratou de uma conspiração formada por uma espécie de triunvirato disposto a destronar o rei. O primogênito é sempre o herdeiro preferencial na linha de sucessão do trono, sentindo-se ameaçado em seu direito nato, alimenta o ódio mortal contra o pai, somando-se a isso seu caráter pusilânime, foi facilmente cooptado por Silviano e Maurilio, outro herdeiro revoltado sem trono para herdar. Dentro dessa disputa sucessória, o telespectador curioso teve um ganho cultural, termos incomuns no cotidiano, como regicídio, parricídio, suplício de Tântalo (alusão mitológica) surgiram na última semana para ilustrar a densidade do conflito familiar. É incomum os protagonistas morrerem no final, mas havia indícios de que isso aconteceria, o principal foi a quebra do diamante cor de rosa, o amuleto do rei garantia sua vitalidade e poder, uma vez quebrado tudo em sua volta se desagregou, por isso a pedra voltou para cena final com close em suas partes divididas.

A telenovela há muito deixou de ser apenas um veiculo de entretenimento, entorpecimento ou alienação como alguns preferem, ela também permite reflexões e revisões de padrões, sem perder o prazer delicioso da ficção. O casamento a três de Xana/Nana/Antônio, prefiro chamar de família a quatro, já que o elo era em torno da criança órfã, nos obriga a pensar em outros modelos familiares que podem compor um lar, tema também explorado vastamente pelo clã Bolgari que quebrou muitos tabus e terminou em harmonia total, enlarguecendo ao máximo o que parcamente entendemos como amor. Aliás, amor foi o motivo da redenção moral de vários personagens, dentre eles Magnólia, Robertão, Tuane, Orville e a fantástica Lorraine, que entrou na trama quase invisível e sai como uma gigante.

O recurso intertextual, ou a presença da citação, foi outro ponto muito bem costurado pelo autor, que, aliás, marcou presença no capítulo final, justamente diante de seu espelho quebrado, Teodoro Pereira. Mencionei anteriormente ecos shakespearianos, agora nesse final tivemos no casamento das irmãs a marca bíblica do casamento de Jacó/Raquel/Lia, cantado por Camões num dos seus mais belos sonetos. A música foi condutora de outras homenagens, mais intratextuais que intertextuais, já que a citação vinha de obras do próprio autor ou de outras novelas. Dona de Roupa Nova, trilha sonora de Roque Santeiro, coroou a Rainha Marta (sempre torci por ela, uma deusa nos diálogos e uma titã nos monólogos), a cena do comendador nadando em dinheiro foi ilustrada com a música de Pedra sobre Pedra, cujo título e tema dispensam explicações. No desfecho, a morte do Homem de Preto com Cartola ao fundo (presente também em Cidade de Deus), é uma menção à Pecado Capital, outra trama na qual o protagonista também morreu no final, num ambiente semelhante a uma fábrica abandonada. E há Pecado Capital maior que matar o pai? Embora não esteja entre os pecados que ameaçam a salvação, contraria um dos dez mandamentos! O pai fraquejou em matar o filho, mas o filho foi até o fim e terá que conviver com seu remorso, como sentenciou sua meia-irmã Cristina, e com a ascensão do irmão caçula, o herdeiro mais improvável. O final foi cíclico, voltamos para o começo com um novo rei. E para ficar por aqui creio que continuaremos por muito tempo com o espectro do Comendador...Personagem “Fela “da Puta! E que venha Babilônia...dou um fio do meu bigode que vem aí mais um campeão de audiência...

Império...nem os diamantes são eternos...

A novela Império, de Agnaldo Silva, começou em fogo brando, mas vem ganhando lume novo a cada episódio. O folhetim, como indicado no título, circula em torno da metáfora da monarquia, representada pelo núcleo central da trama: a família do imperador José Alfredo. Há diversos elementos que remetem à realeza: herança, sucessão, amantes, bastardia, títulos, casamentos por conveniência e demais Ligações Perigosas nos bastidores da corte e em torno dela. Cheia de ecos de Rei Lear e Macbeth e demais meandros da cupidez humana.

Boa parte da eficiência da trama está na força do protagonista. Ambíguo como todo bom herói moderno, O Comendador, O homem de preto (reis sempre têm epítetos)vivido por Alexandre Nero, certamente , entrará para a galeria de protagonistas marcantes da nossa teledramaturgia, tais como Felipe Barreto( O Dono do Mundo), Juvenal Antena(Duas Caras), Giovanni Improtta (Senhora do Destino), Antenor Cavalcanti ( Paraíso Tropical), adoráveis canalhas, politicamente incorretos, anti-heróis por excelência que caem no gosto do público e no imaginário do brasileiro.

Dentre tantos temas apresentados na trama, destacam-se alguns, dentre eles a oposição entre ricos de berço e os novos ricos e os labirintos da sexualidade. O casal protagonista explora a questão da tradição, Maria Marta (a brilhante Lilia Cabral), que, embora falida, emprestou seu nome ao marido, milionário emergente, mas sem a classe cruelmente exigida pela alta sociedade. Aliança feita e ambos se beneficiaram dos dotes um do outro até o acordo se quebrar e virarem “inimigos cordiais”.

Essa oposição é também estendida a outras personagens de forma mais pícara, a exemplo do casal Severo e Magnólia (nomes motivadamente irônicos, ele não é nada severo e ela não é flor que se cheire, pais cafetões que se salvam aos olhos do expectador pela saída do humor) que abusam do dito mau gosto da classe emergente, amplamente representado na preparação de suas bodas de prata em contraste  com o refinamento dos cerimonialistas Claudio e Beatriz. A máxima que o dinheiro no Brasil mudou de mão já foi repetida algumas vezes na novela, e até Joãozinho Trinta foi estrategicamente citado na sua famosa frase: “Quem gosta de pobreza é intelectual, pobre gosta é de luxo”. Carnavalização, inversão da ordem, reflexos de um novo país, simbolicamente retratados na tela.

E por falar em Claudio e Beatriz, chegamos aos labirintos da sexualidade. José Maier, galã por excelência do horário nobre, empresta sua alma ao angustiado bissexual de meia idade carregado de conflitos existenciais, mas complexa mesmo é Beatriz. Beira ao inverossímil a sua compreensão generosa das relações extraconjugais do marido ( sempre me pergunto se fosse uma amante e não um amante qual seria sua reação), mas a  arte é para quebrar regras e causar estranhamento mesmo (épater le bourgeois) e ela segue altiva, bela e amada. A reação de seu filho Enrico, é legítima a princípio, mas me parece prolongada demais, desproporcional demais para um pai tão bom, o que fez com que o papel do chef perdesse a mão e o interesse.

Xana Summer (Ailton Graça) é apaixonante, aquelas personagens que se tornam maiores que o seu papel e viram sol, iluminando todo o pequeno núcleo do seu lar e do seu abraço acolhedor (Lorraine é impagável) e, para explorar mais os labirintos do tema, a trama acena com  o possível relacionamento para além da fraternidade com Naná(Viviane Araújo) em nome de um amor maior pelo menino órfão. Já Téo Pereira (Paulo Betti), agora Teodoro, é caricatura pura, mas toda caricatura tem o pé no real, é metonímia de uma imprensa marrom demolidora de reputações e criadora de celebridades, meio por demais conhecido pelo seu criador que também alimenta um blog ácido no mundo real, uma espécie de auto-homenagem crítica de Agnaldo Silva. Em resumo, as personagens envolvidas na temática homo afetiva são prismáticas, vistas sob vários ângulos, trazendo calor para a discussão pelas salas do Brasil à fora e  à dentro, mostrando que teimamos em por em linha reta o que é linha curva.

Há tantas outras personagens e histórias que merecem nota. Silviano (grande Othon Bastos), impecável mordomo inglês, num lar onde o lordship gosta de tomar café em copos de requeijão, certamente deve ter um porquê ainda a ser apresentado, caso contrário seria um desperdício de talento. A substituição de Cora em pleno ápice, excelente no papel de corvo-vampiro, por razões de saúde, risco de toda obra aberta, teve sua verossimilhança ameaçada, mas rapidamente devolvida, afinal aceitamos o pacto do fingimento.

A loucura genial de Salvador (Paulo Vilhena encontrou seu papel).O mundo do camelódromo, com sua força de comércio popular. A escola de samba e seu entorno. Os bastidores da alta gastronomia e do design de joias. Fragmentos de um mesmo Brasil, mosaico cultural e social tão bem retratados na novela brasileira. Brasil, mostra a tua cara e para isso vale tudo nessa Avenida.
 

Enfim, o Império está sob ameaça de ruína, mas a narrativa está salva. Já que nem os diamantes são eternos, acompanhar boas histórias nos torna mais humanos... E, se não eternos, ao menos, mais ternos.