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sábado, 12 de fevereiro de 2022

Além da ilusão: Folhetim em Fogo vivo

 

    Estreou essa semana a novela Além da ilusão, da autoria de Alessandra Poggi, a autora inicia promissoramente sua primeira novela solo (já colaborou em Malhação e integrou equipe de Miguel Falabella em Aquele Beijo, Pé na cova e O sexo e as nega). Nos seus primeiros dias, os arcos dramáticos já estão instalados com maestria e com promessas que nos animam.

    Tendo como cenário Poços de Caldas – MG (mundo urbano) e Campos-RJ (mundo rural), o namoro proibido entre Elisa (Larissa Manoela, está bem, mas me parece um tom ainda de musical)) e Davi (Rafael Vitti, convincente jovem galã) dá o tom no núcleo principal. A filha do severo juiz Matias e um mágico sonhador têm seu romance interditado pelos ditames conservadores da época. Esse veto faz com que a jovem enfrente com valentia seu mundo patriarcal. O amor, representado pela frágil rosa vermelha, é esmagado à força pelo seu pai, interpretado com destreza pelo Antonio Calloni.

    Ambientada nos anos 30 e 40, a novela não se detém apenas à ilusão, como o título sugere, embora a atmosfera feérica reine em muitas cenas de bailes e suspiros e magia. Há como pano de fundo da trama mudanças políticas propostas por Vargas (jornada de trabalho e outros direitos já foram mencionados) e outras questões sociais e econômicas, dentre elas, no mundo rural: A decadência dos engenhos de açúcar com a chegada das usinas.

    A morte do coronel Afonso (Lima Duarte) é o símbolo da decadência do antigo modo de produção do açúcar que não consegue competir com as usinas, ou seja, é o anunciado engenho de Fogo Morto, tão bem marcado na história da nossa literatura pela trilogia de José Lins do Rego (Menino de Engenho, Banguê e, justamente, Fogo Morto). Aliás, todo aquele universo de Campos tem um apelo histórico muito forte e recria passagens de nosso Brasil, como a convivência dos ex escravizados e dos imigrantes italianos trabalhando para o latifúndio da cana, rendeiros, posseiros e meeiros estão todos ali tentando sobreviver em meio à tal decadência e pobreza. Há claramente ainda uma servilidade muito forte e ecos coloniais que gritam em plena República.

    Emergem desse contexto as irmãs Violeta (mãe da protagonista), Mallu Galli e, Heloísa, Paloma Duarte, que estão dando um show como irmãs fortes que se amam e se enfrentam em torno daquele legado decadente. A cena de Heloísa no velório do pai, depois da confissão desse sobre sua filha, foi muito bem conduzida, trazendo ecos de A crônica da casa assassinada de Lúcio Cardoso, romance seminal brasileiro.

     É sabido, que na segunda fase da trama, nossa mocinha valente será Isa, a irmãzinha de Elisa (observem a pertinência do nome, Isa está contida em Elisa) que adulta também será vivida pela mesma atriz, já que Elisa morrerá e seu amado será condenado injustamente através de uma mentira sórdida de seu pai. Com a passagem de anos, os dois se reencontrarão e a rosa esmagada no passado será revivida.

    Vale ainda notar que a trama está muito bem dirigida por Luiz Henrique Rios, com belos cenários, jogos de luz, figurinos, diálogos e uma trilha sonora caprichada (divina  e graciosa)! Bem, o Engenho pode estra de Fogo Morto, mas o Folhetim segue vivíssimo, enquanto houver amores, segredos, lutas de classes, cartas roubadas, gavetas vasculhadas, sangue, honra, humor e a magia da ficção, nós espectadores aqui estamos torcendo por mais um triunfo da ilusão da arte que nos distraí das dores da vida!

 

 


domingo, 14 de novembro de 2021

Um lugar ao sol: Um duplo brinde ao retorno do horário nobre

 

Quem estava saudoso por uma nova trama no horário nobre começou a matar sua sede essa semana. E com aquele gole refrescante que estávamos precisando depois de longa abstinência. A novela Um lugar ao sol, de Lícia Manzo com direção  refinada de Mauricio Farias, chegou dizendo a que veio e a autora ocupa muito bem o seu lugar ao sol na faixa das 21h.

Centrada no tema do duplo, tão caro na nossa tradição literária, temos os gêmeos Christian e Christopher, depois Christian e Renato, vividos por Cauã, que já nos brindou com outros gêmeos em Dois irmãos. Aliás, a nossa teleficção é repleta de exemplos gemelares de sucesso: Quinzinho e João Victor, Rute e Raquel, Tais e Paula, Jorge e Miguel dentre outros. Irmãos fisicamente idênticos, mas sempre marcados pela oposição de perfis psicológicos, advinda da matriz bíblica de Esaú e Jacó. Matriz já evocada na trama através do livro de Machado de Assis, alvo de uma cena entre Cristian agora Renato e seu sogro que contou a história da rivalidade de Pedro e Paulo presente no romance machadiano.

A citação lida pelo sogro (uma menção a Aires talvez) representa o dilema vivido pelo gêmeo sobrevivente: - “Não é a ocasião que faz o ladrão, dizia ele a alguém; o provérbio está errado. A forma exata deve ser esta: A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito". Christian, preterido e abandonado à sorte no berço quando seu irmão foi o escolhido para ser adotado por um casal rico, viveu uma vida de privações num abrigo onde nunca foi escolhido. Aos dezoito anos sai desse lar para ganhar a vida sozinho num mundo hostil. Durante os anos no orfanato, a vida de carências lhe dá outro irmão, Ravi, peça fundamental na costura da trama e única testemunha de sua vida anterior e de sua decisão de assumir o lugar de Renato, o renascido. Coube a ele queimar as provas de seu crime.

Os dois irmãos sofriam de angústias diferentes e ambos foram mostrados em encruzilhadas, em caminhos que se bifurcavam. Agora só há um, Christian ocupando a vida de Renato, que foi batizado na piscina, uma simbólica cena de batismo e transição para a outra vida, portanto renascido novamente. Ele aproveitou a ocasião para furtar a vida do outro e junto com ela tudo que lhe fora negado em oportunidades materiais, mas recebe junto todos seus dramas também. Embora só tenha ficado um, o espectro do outro, do seu duplo, o atormentará e a nós também.

Uma das estratégias narrativas mais interessantes nessa primeira semana foi mostrar as diferenças sociais entre os dois mundos através de vários elementos, seja a festa de aniversário, as roupas de grife, os espaços de luxo/carência, o banho, a mobília, as várias barreiras sociais separadas por muitos vidros (carros, janelas, vidraças), evidenciando o mundo que Christian só podia ver pelas frestas até que muda de lado.

Vale destacar uma cena rápida, mas muito significativa, o diálogo entre o professor (Tonico Pereira) e Christian, lembrando seus sonhos de infância no orfanato e lhe presenteando com Memórias póstumas de Brás Cubas, também do nosso onipresente Machado e lendo a seguinte passagem: “É muito melhor cair das nuvens que de um terceiro andar!”. Uma cena típica do mentor, mestre e discípulo olhando as estrelas, a máquina do mundo,  que estimulou no jovem o desejo de também como Brás poder sair por aí acotovelando a multidão. Todavia, ele não é Brás, nem Renato, e sofrerá com os códigos do seu novo mundo e com o olhar de Ravi pelo retrovisor, brilhante interpretação de Juan Paiva.

Ao se tornar Renato, perde Lara, o oposto de sua esposa Bárbara,  seu passaporte para cruzar a fronteira e pelo que vimos até aqui esse triângulo pode render muito ainda. Lara é o retrato do bem, da coragem, da mulher lutadora, ao contrário de Bárbara, mimada, fútil, preconceituosa, peso que sua opção terá de carregar.

Não podemos esquecer de Marieta Severo, que chegou iluminando tudo, com sua presença leve, sábia e solar para salvar a neta  das dores do luto, a cena delas no banco da praça falando sobre os motivos para a felicidade foi belíssima ( talento de Lícia Manzo, em retratar com lirismo as relações de afeto, como vimos em Sete Vidas e A vida da gente) e já se insinua que ela também tem um enigma a ser revelado... Meu palpite arriscado, tem a ver com o sogro do novo Renato.

Além do já dito, a novela se destaca também nos núcleos paralelos, personagens secundários e no humor ácido. A modelo que teme a velhice, a gordofobia, a sucessão familiar, as traições, as amizades,  a peruagem, os ricos falidos...Tudo indica que vem novelão por aí! Um brinde à nossa sede de ficção que pode ser na flute de Renato ou nos copos de requeijão de Christian.

E com bônus de ouvir o nome de minha cidade todos os dias: ‘Não passa disso, não me engana/ Que eu sou sul-americano de Feira de Santana!

 

 

 

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Segunda Chamada, Segunda Temporada, Segunda Chance: “Eu nunca mais vou te esquecer”

 

A segunda temporada da série Segunda Chamada entrou no ar na Globoplay há poucos dias e já aquece corações e anima reflexões por todo país. Escrita por Carla Faour e Julia Spadaccini, com direção de Joana Jabace, esses novos seis episódios continuam revelando, com tensão dramática e doses de lirismo, o cotidiano de uma escola pública noturna com todas as suas carências e possibilidades.

Dessa vez a escola lida com um problema que tem atingindo o turno da noite em vários cantos do Brasil, o baixo número de matriculas, ou seja, a falta do interesse dos alunos em buscar essa escola por diversas razões pessoais e, sobretudo, sociais. Diante disso, muitos colégios são ameaçados de fechar. A partir desse mote, a Professora Lúcia, magistral Débora Bloch, toma para si a missão de encontrar mais alunos para que a escola não se acabe e que aqueles poucos que estão ali também não desistam.

Movida pela hybris que lhe é característica, ela nuca desiste e não permite ser subjugada pelos limites que lhe impõem, vai buscar em um grupo de moradores em situação de rua seus novos alunos. E, para a surpresa, repulsa e espanto de muitos, ela consegue incluir aquelas pessoas invisíveis na lista da Segunda Chamada, da Segunda Chance, da escola e da vida. Esse grupo, liderado por Hélio (Ângelo Antônio com sua força frágil que já conhecemos e adoramos), o sol daquelas almas, vai protagonizar grandes cenas dessa temporada. Por trás daqueles corpos sujos e rejeitados há uma profusão de histórias de vida que merecem ser ouvidas. Aquelas pessoas sem nome, sem endereço, sem documentos, terão seu espaço na Carolina Maria de Jesus.

Outros conflitos também são encenados nas salas de aula, preconceitos de toda ordem, contra o índio, contra o nordestino, contra o idoso, contra os novos alunos que não têm casa. Percebemos que o grande conteúdo daquela escola não está no Português de Lúcia, na Matemática de Eliete, na História de Sônia ou nas Artes de Marco André, mas nas múltiplas intervenções que os mestres fazem para que a maior lição seja aprendida, a convivência com o outro. A alteridade é o conteúdo primordial que atravessa essa trama.

Não poderia falar em idoso, sem destacar o papel de seu Gersinho, vivido de corpo e alma pelo veterano Moacyr Franco, sempre habituados a vê-lo nos fazer rir, tomamos um susto com a grandeza dessa personagem que sofre do Mal Alzheimer e quer realizar o sonho de terminar seus estudos antes que toda memória se esvaia. E olha, Carla e Júlia, se vocês não o botassem para cantar, eu ia ficar frustrada, que cena fenomenal. A música será usada como recurso mnemônico em um momento crucial, “ eu nunca mais vou te esquecer”...

Como em toda boa trama, há de ter os elementos folhetinescos, amor, morte, sonhos, segredos do passado, drama e afins. Sem dúvidas todos esses desfilaram em nossa tela ou em nossa telinha nos fazendo chorar de riso e de dor. O casal Sônia e Marco André (Hermila Guedes e Silvio Guindane, obrigada!) vai viver seu amor difícil com direito ao céu e o inferno em poucas horas sob a voz de Edith Piaf que já é suficiente para nos comover. Mais não digo...E por falar em música, a trilha sonora é um espetáculo à parte.

Como professora de Literatura preciso elogiar as aulas de Lúcia, a sequência na qual os alunos leem Grande Sertão: Veredas é belíssima. Ela alfabetizando Dona Néia é comovente, enquanto  mostra o A, Ana Maria Braga aparece na tela da pequena TV e é com música que a aluna avança alegremente em sua alfabetização. Aquela mulher que saber ler a vida, lerá também as letras e os livros que ela vende agora lhes pertencerão.  Método Paulo Freire na veia. Além, obviamente, das aulas e dos exercícios de Teatro de Marcos André que faz com que os alunos sejam protagonistas de suas tramas seja qual for o texto.

Ainda é preciso destacar quantas outras discussões contemporâneas e eternas são trazidas para o chão da escola, a pobreza menstrual, o alcoolismo, os subempregos, a moradia, a queima dos livros, a homofobia, a violência contra a mulher sob várias formas (Leandro!!!!), a acessibilidade, o difícil papel de diretor e administrar múltiplos problemas diariamente (Paulo Gorgulho, nota dez com louvor e distinção), o descaso das autoridades com a educação, representado pela brilhante alegoria da rachadura do prédio, não adianta remendos, “é estrutural”, mas mesmo assim como diz Lúcia “Educar não é sobre vencer, é sobre resistir, é sobre acreditar que as coisas podem mudar.” E todos os dias milhares de Lúcias saem de suas casas com o sol brilhando e voltam a noite exaustas, mas cientes de que fizeram algo por alguém... No reino da ficção é possível dizer muitas verdades...E Apesar de vocês, amanhã há de ser outro dia...

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Nos tempos do Imperador, uma dupla saudação! Ave, Pedro! Ave, Ficção!

 

A novela Nos tempos do Imperador de Alessandro Marson e Thereza Falcão é saudada com alegria pelos telespectadores ávidos por uma nova história na nossa televisão. Vale lembrar que desde 2020, com a suspensão das gravações pela pandemia, é a primeira trama completamente inédita, uma vez que Amor de Mãe e Salve-se quem puder retornaram para serem concluídas.

Nós, os noveleiros, não estamos felizes só por uma novidade no ar, só por mais um “Era uma vez” tão esperado, o que já nos contentaria, mas por se tratar de uma trama histórica que retrata um período importantíssimo do nosso país. Nos tempos do Imperador vem somar pontos na nossa tradição de produzir novelas de época de alta qualidade e que marcam nossa teledramaturgia como Escrava Isaura, Direito de Amar, Sinhá Moça, Força de um desejo e Lado a Lado dentre tantas outras.

Como uma espécie de parte II de Novo Mundo, os autores voltam para continuar a sucessão de Dom Pedro I na figura de seu filho Dom Pedro II. Com os pés fincados no real, a novela, obviamente, não se furta do seu papel folhetinesco e de seu compromisso único com a ficção, mas nos oferece uma boa dose de História. Misturando as esferas propostas por Aristóteles (Res Factae e Res Fictae), a narrativa tem tudo para acertar em cheio ao dosar bem esses dois universos.  Se for História demais, tenderá ao documentário, se for ficção demais, trairá o tempo citado no título.

Por falar em título, fica claro que se trata de uma novela de personagem, boa parte circula em torno de Pedro II, vivido pelo grande ator Selton Mello. Todas as outras linhas, de alguma forma, convergem para ele. Sua centralidade é bastante simbólica e construída com os pinceis da ficção que ampliam e retocam sua figura pública já conhecida. Ele é o homem ilustrado que lê Goethe, cita Dante e tem Victor Hugo como seu autor preferido, citações nada ingênuas e que dão a argamassa de seus pensamentos. Ele é o cientista, o colecionador, o fotógrafo, o monarca que aceita ideias diferentes, como consentir que um professor republicano dê aulas para suas filhas, mas não consegue frear tantos problemas. Características que compõem esse homem que não pôde escolher seu destino e há de decidir sobre o destino de um povo.

O que tem me chamado mais atenção até o momento é justamente os dramas íntimos do Imperador e de seus pares, ou seja, o homem e a mulher por baixo da coroa e do cetro, com todas as suas fragilidades, angústias e dúvidas. Sabatella é sempre excelente em portar o elemento trágico em suas atuações. A essa altura, ela já mostrou saber da ameaça que entrou em seu palácio, a Condessa de Barral. Ao que tudo indica Ximenes também protagonizará a trama com suas atitudes de vanguarda e por ser a outra vértice do famoso triângulo amoroso, se é que se pode falar de amor nos casamentos reais. Os olhares desse trio se mostraram eloquentes nessa primeira semana, dizendo muito do que virá.

Para além do Paço, temos uma cidade que pulsa com todas as suas camadas. Golpe de mestre dos autores trazer à luz a Pequena África com tudo que ela representa num país escravocrata, uma espécie de espaço utópico, um pequeno território onde os negros exerciam sua “cidadania” e que é desconhecido da maioria. Ao ser apresentada para Jorge/ Samuel pelo outro rei da trama, o rei negro, ele achou estar no céu. Não sem muita luta e sangue, meu caro jovem, a exemplo dos malês que ele acompanhou.

 E chegamos em Jorge/ Samuel, um outro protagonista, uma espécie de espelhamento do mundo de cima, que viverá as agruras de um amor proibido por sua Pilar, a jovem que quer mudar sua sina ao fugir de um casamento arranjado por seu pai. A menina tem força de heroína, filha do coronel vivido por José Dummont (muito bom vê-lo nessa condição social), metonímia de todo conservadorismo e interesses escusos (Moça só sai de casa ou casada ou morta!). Temos que destacar o núcleo dos coronéis baianos, liderados por Tonico Rocha (Olha o Imperador em outro Império! Dá-lhe Nero! E ainda levou Josué para o Paraguai!), um típico representante das elites do XIX, parece ter saído da lavra machadiana. Ele daria um ótimo primo de Brás Cubas. São muitas personagens e muitos brasis ainda a serem mostrados.

No bom estilo histórias cruzadas, todos esses brasis se misturam em busca de uma ideia de nação que ainda tateia sob as luzes difusas dos lampiões e das chamas das  fazendas do Recôncavo e não sabe o que fazer com tantos problemas internos e externos. E não podemos esquecer daquela herança maldita do tempo de Pedro I, ou de Novo Mundo, Licurgo e Germana, tão grotescos que nos chocam. Alegorias de um espírito atrasado e zombeteiro, espíritos de porco indomáveis. duas outras alminhas fantasmagóricas a nos assombrar, como aquela de Viva o povo brasileiro.

Estou confiante que teremos boas surpresas embaladas por uma trilha sonora sensacional, cenários, figurinos e fotografias de encher os olhos...E antes que venham as réplicas...Nunca foi fácil falar sobre o Brasil e sobre nosso passado tão incômodo e ainda tão presente nos nossos dias...

sábado, 10 de abril de 2021

Amor de MÃE: A ficção atravessada pela inverossimilhança da vida

 

A novela Amor de Mãe, que ontem se findou, será marcada pelo atravessamento surreal da pandemia em nossas vidas e seus desdobramentos na ficção. Iniciada no final de novembro de 2019, foi interrompida em março de 2020, retomada um ano depois para ser concluída da forma mais breve possível em razão das circunstâncias impostas para sua gravação e que consagra Manuela Dias, sua jovem autora, no time de ouro das nossas novelistas na esteira de Janete Clair, Glória Perez e cia.

             A novela é uma obra aberta e vai sendo feita ao sabor de diversas variáveis. Os autores sabem como começam seus primeiros capítulos, mas só têm uma vaga ideia de como terminará. Nessas variáveis entram, por exemplo, a aceitação do público que faz uma subtrama crescer ou minguar, uma personagem secundária se destacar ou as próprias intempéries da vida, como a doença ou morte de um ator, mudar o rumo, mas com a variável pandemia, ninguém, nem na arte, nem na vida, podia prever. E foi esse o desafio que se apresentou e que atravessou a novela das 21h, das 9h que já foi das 8h, a mais vista e desejada da nossa TV. E aguardamos um ano para ter o desfecho do mote principal, o reencontro de Lurdes com Domênico, seu filho vendido aos dois anos de idade. Fato central que fazia com que as outras duas protagonistas, Telma e Vitória, orbitassem ao seu redor até que suas histórias se cruzassem.

A grande cena do encontro de Lurdes com Domênico/Danilo já nasceu antológica, certamente entrará para a galeria da nossa teledramaturgia como uma das mais belas e emocionantes. O momento tão esperado foi marcado por diversos símbolos potentes, desde o altar possível construído por Lurdes para continuar rezando por seus filhos, à revelação da Graça da saída do cativeiro pela Pomba, formando uma trindade nova Mãe, Filho e Espirito Santo.

O encontro na estrada merece nossa atenção especial, a mãe que buscou o filho por 27 anos é que foi encontrada por ele. Sem saber quem estava procurando, o filho achou aquela que já estava velando por ele. A estrada empoeirada, semelhante ao espaço onde toda a busca começou, volta à cena, acrescida de trilhos abandonados, uma metáfora do curso de uma vida que foi interrompido e, no momento magistral do abraço e do reconhecimento através do cheiro na cabeça do filho, a mesma estrada deu ré para recuperar o tempo do amor perdido. Além dos símbolos, a interpretação dos atores foi visceral, Lurdes/Regina Casé tornou-se, nesse momento de desalento que vivemos, uma espécie de mãe arquetípica de todos nós (“Sua mãe está aqui” seu brado retumbante). Já Domênico/Chay Sued honrou toda a espera e a angustiada sequência da procura com a maestria de um grande ator que fala através dos olhares, dos silêncios, dos soluços e do texto forte (Onde estava Deus?) que brotava de sua voz rouca, típica das emoções que nos atravessam a alma. E a música Onde estará o meu amor?,  de Chico Cezar cantada por Maria Bethânia, coroou o momento ( A noite findou e o sol rebrilhou sobre eles).

Daí em diante a alegria dos reencontros com os filhos/irmãos, naquela grande família cheia de problemas, mas unida nas horas boas e ruins. Ao chegar no quintal da casa de sua nova mãe, o filho reencontrado e tentando matar Telma dentro dele, pergunta para Lurdes sobre o ninho do passarinho, outra imagem do aconchego que teria naquela casa e sobre o que fazer com aquele sentimento que lhe esmagava o peito. Dentre uma das falas de Lurdes nesse reencontro ela disse: “O tempo é rei, o tempo cura tudo, não existe família perfeita, existe família unida”. Aliás, as frases sábias de Lurdes mereciam um compêndio, filosofia condensada dessa mãe tão brasileira que nos faz rir e chorar!

Ainda vale destacar outras simbologias interessantes nessa retomada da trama. A psicopatia revelada em Telma foi acompanhada das imagens internas de sua casa, corredores, portas, gavetas, pastas, papeis guardados, que aludem aos seus labirintos internos. Adriana Esteves brilha em qualquer personagem na comédia ou no drama ela reina soberana.

 A morte de Álvaro, o gigante Irandhir Santos, de tão boa atuação que a gente ainda sente empatia por ele, como ele mesmo disse "sem arqui-inimigo não tem herói", também foi rica em imagens. Se arrastou até a cadeira da presidência, marca de sua ambição, e morreu porque foi buscar mais dinheiro que como já fora dito era o móvel de sua vida, poço de seus vícios e no amor por Verena sua única virtude. Ele era a marca da corrupção predadora na trama. Sua construção nos remete à máfia italiana com seus ternos elegantes e gostos refinados, inclusive sua trilha sonora é a ópera Mio Babbino Caro de Puccini. Através dele, tivemos Davi, o quixotesco ativista ambiental, que teve um belo fim, discursando na ONU, gotas de esperança que a ficção nos dá.

Pela própria economia narrativa e penso que pela necessidade de tratar de diversos temas em pouco tempo, houve algumas passagens que julgo desnecessárias, mal resolvidas ou que traíram a verossimilhança buscada.  A luta corporal e o discurso de Vitória com o agressor da esposa no meio do mato, a morte de Lucas, a saída dos pacientes da UTI em aparência tão saudável, a inserção da mãe biológica de Tiago, mas paro aqui, porque os acertos foram bem maiores e não abalaram em nada o brilho do final.

Sem esquecer de personagens que cresceram muito e se modificaram durante a trama como Penha e Leilinha Pé na cova Gratiluz que foram se destacando até formar o casal de contraventoras simpáticas que acabamos perdoando ou Lídia, que encontrou no verdadeiro amor por um homem simples, uma razão para recomeçar sem perder o charme o esnobismo dos herdeiros. Aliás, Magno merecia a menção honrosa Amor de Pai, de filho e de irmão. Sandro, outro exemplo de força interpretativa e caráter ambíguo, oscilando entre seus dois mundos, opta pelo segundo, sem deixar para trás os amigos antigos.

O final... As três protagonistas juntas no leito de morte de Telma, discutindo suas culpas e seus perdões e a consciência da mão do destino que age impiedosamente sobre nós surgiu em diversos diálogos (se Domênico não fosse vendido, não existiria Camila, se Sandro não fosse o primeiro a ser vendido... E  aí por diante na estrada sinuosa da vida). E o perdão de Danilo que foi ministrar a extrema-unção, o perdão para que Telma pudesse partir. Como em sua fala que bom seria se as mães não errassem nunca e fossem perfeitas, mas como isso não é possível, ficamos com Lurdes marcando os copos com esmalte para seus filhos e todos juntos se sacaneando com todo respeito, como ocorre nos encontros das famílias imperfeitas e que se amam...


Teria muito mais a dizer tão grande era o meu desejo de voltar às Entretelas em um ano que só tivemos reprises em meio à barbárie lá fora. Não posso terminar sem falar do discurso esperançoso de Camila, Jéssica Ellen excelente em seu carrossel de emoções e provas, se Lurdes é nossa Mãe arquetípica, ela é a nossa Professora arquetípica. A que luta todos os dias por uma educação melhor e crê no seu poder de transformação mesmo em contextos tão adversos... Sim! A ficção também pode nos ensinar muita coisa e nos salvar por alguns momentos da brutalidade do cotidiano... Pena que foi tão rápido, mas o suficiente para ser inesquecível. E, assim como na novela, terminemos com Guimarães Rosa, pela boca do nosso Riobaldo, porque a vida é travessia e exige da gente coragem:

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.

 

Sigamos segunda-feira com Império. Na falta do novo, redescobriremos a magia do já visto...

 

 

 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Amor e sorte, primeiro episódio: Outro “doce” de mãe!

 

                                                                         Para minha amiga Zélia Martins

 

Umas das palavras de ordem, já gastas pelos seis meses de uso que vem perdurando a pandemia, e que nos condenou, dentre outros sofrimentos, ao isolamento social, é o verbo Reiventar.  Mudanças de hábitos, de regime de trabalho, de consumo, de lazer e de formas de se produzir novos produtos culturais enquanto vemos gráficos e reportagens que nos deixam tensos todos os dias e noites. Assim, a teledramaturgia, pão poético diário da maioria dos brasileiros, também precisou pensar em outras formas para continuar levando os fios da ficção para nossas casas.  

Juntando todos esses elementos, uma forma de contornar essa sombra foi a genial ideia de Jorge Furtado de fazer uma série sobre confinados reais e seus sabores e dissabores, com tramas muito semelhantes ao que muita gente está experimentando. Famílias reais de atores fizeram de suas casas palco para essa novidade deliciosa que nos traz um sopro de alegria, mostrando que a arte é uma danada e que dá seu jeito sempre que possível.

Assim, fomos presenteados ontem, com um episódio belíssimo que retrata as agruras da convivência forçada entre mãe e filha, com naturezas e pontos de vista completamente diferentes sobre a vida, “esquerda carnívora” e “liberalzinha vegetariana”, segundo elas mesmas em meio a uma discussão acalorada sobre matar um frango e demitir funcionários. Briga que nos rendeu uma das aventuras mais cômicas do episódio, a captura da penosa que não se entregou facilmente ao abate, teimosa assim como as duas protagonistas.

É sabido que todas as famílias têm conflitos, mas espera-se de uma mãe de 90 anos e uma única filha de meia idade, executiva bem sucedida, uma relação pacífica ou ao menos cordial, ledo engano. Gilda e Lúcia são boas representantes da bipolarização do nosso país que ficou nas entrelinhas desse programa de estreia. Como também da condição dos nossos aposentados que não podem pagar um plano de saúde e outras despesas e precisam que sua renda seja completada pelos filhos. Questões nem sempre simples ou que também resultam em papéis invertidos, quando a aposentadoria dos velhos é a fonte de sustento. No plano da frente, uma deliciosa comédia familiar, no plano do fundo, um painel do país.

Um dos topos mais presentes na Literatura Ocidental, para utilizar a terminologia de Ernest Curtius no seu clássico Literatura europeia e idade média latina, é o da velhice tranquila e sábia, tema já presente em Sêneca e Cicero, sábios da antiguidade. Dona Gilda contraria toda essa representação. Ativa, impulsiva, hedonista, ranzinza, boemia, dentre outras qualidades ou defeitos a depender da medida, deu muito trabalho para sua filha Lúcia, disciplinada, focada, responsável, séria, saudável (com a ajuda de um ansioliticozinho, é claro), também qualidades ou defeitos a depender da medida. E a convivência das duas isoladas em um sítio onde, de fato, Fernandona e Fernandinha, cada vez mais parecida com a mãe, estavam ilhadas com a família, não foi nada fácil.

Mas, de volta à convivência, vem de volta o amor que as unia, as lembranças, as fotos, os risos, as estrelas, a boa mesa com o frango assado e uma boa taça de vinho (pode ser em copo de requeijão também, o que vale mesmo é a companhia), elementos que aproximam quem se quer bem e aparam arestas das diferenças. E elas já não queriam que aqueles dias acabassem, era preciso prolongar o prazer e a presença de ambas. Gilda toma suas providências cortando, literalmente, a conexão com  o mundo lá fora, outra cena incrível e muito simbólica. E como uma boa obra de arte pode ser vivificante como aquela taça de vinho, ela nos brindou com a esperança da notícia que todos esperam em todos os lares, a vacina chegará, e a receberemos de braços e abraços abertos, mas sem esquecer daqueles que se foram, porque assim é a vida, agridoce como as relações humanas em qualquer tempo... Que venham os casais nessa nova Comédia da Vida Privada... Amor é Sorte!

quinta-feira, 21 de maio de 2020

This is us: Sim, esses somos nós também



Para Denison Monteiro que me indicou e para minhas sobrinhas Maria Victória e Renata que também  se apaixonaram  por essa história




A série This is us, em exibição na Amazon prime, tem todos os ingredientes de uma boa história. História daquelas que te prendem do começo ao fim e deixam ao final de cada episódio o desejo incontrolável de continuar acompanhando a trama. As boas narrativas não são boas só pelo que nos contam, mas, sobretudo, como elas nos contam. O famoso casamento feliz entre forma e conteúdo que nem todos os livros ou filmes alcançam. E essa comunhão entre forma e conteúdo é alcançada com maestria por essa belíssima série dirigida por Dan Fogelman que acompanha o cotidiano de uma família americana por 04 décadas mostrando como o passado interfere no presente. Aí está um dos seus pontos mais altos, a narração simultânea dos dois tempos.
As histórias das famílias com todos os seus momentos de drama e comédia é um pouco a história de todos nós. Umas famílias pendendo mais para a dor outras para o riso, equilibrando o amargo do limão e o doce da limonada como ensina Dr. K.  É claro que todas elas têm boas histórias para contar, segredos a esconder, fatos para lembrar e outros tantos para esquecer nas gavetas, nas cartas, nos retratos esquecidos. Assim são os Pearson, uma família de Pittsburgh, formada pelo casal Jack (Milo Ventimiglia) e Rebecca (Mandy Moore) e pelos trigêmeos Kevin (Justin Hartley), Kate (Chrissy Metze), Randall ( Sterling k. Brown).
O fato desencadeador da trama é o nascimento dos trigêmeos. Nesse dia um dos bebês morre (Kily) e nesse mesmo instante um recém-nascido é abandonado no Corpo de Bombeiros e levado ao hospital. Tal acaso, ou não, determinará a formação daquela família que adota o bebê em substituição ao que morreu (temos vários acasos na série que mudam radicalmente os destinos das personagens). Assim temos os trigêmeos iguais e diferentes, aceitos e rejeitados, some-se o detalhe que será um dos motores da história, que o menino adotado é negro.
É notável o esforço dos pais para criá-los com igual amor e oportunidades e o esforço hercúleo para dar tratamento individualizado a cada um deles, atentos para intervir ao menor problema. O casal Jack e Bec, vivem uma das mais belas histórias de amor que já vi, ambos vem de lares problemáticos e desejam dar aos filhos uma infância perfeita e parecem chegar bem perto disto, não fossem os pontos de vista e percepção de cada um dos filhos sobre os mesmos fatos vivenciados. E chega uma hora em que cada personalidade começa a se mostrar e exigir suas diferenças, como na festa de dez anos deles quando as crianças pedem festas individuais com os temas da sua escolha. E na adolescência então, as diferenças e os conflitos afloram. Teremos o estudioso/inseguro Randall, o galã/fútil Kevin e a carente Kate, sofrendo com a sua luta constante contra a obesidade.
No presente, temos um Randall casado com Beth, outra bela história de amor, pai de duas filhas, um executivo bem sucedido morando numa bela casa, só ele ficou em Pittsburgh. Kevin, um ator frustrado de um seriado de TV em busca de um lugar ao sol no cinema e Katy, como empresária/babá do irmão e lutando com seus fantasmas, mas que encontrará seu grande amor nos braços e nos sorrisos do incrível Toby, outra grande figura. Sabemos que o pai já faleceu há anos, mas só saberemos bem depois como foi a sua morte, não darei spoiler, vale ver  a cena.
Outro fato marcante da trama é a busca de Randall por seu pai biológico e ele o encontra para nossa felicidade.  William será uma das melhores personagens de toda a série. Aquele senhor, poeta, músico, maltrapilho, ex-viciado, em estado terminal, tem tanto a nos ensinar que nos surpreende em cada fala e gesto e você vai se apaixonar por ele também, assim como por seu filho e toda a sua família. Aliás, outro ponto alto da trama é a chance que foi dada para que cada personagem, principal ou secundária, se desenvolva plenamente e tenha seus próprios conflitos a elaborar diante de nossos olhos, tais como Tio Nick, Doutor K, Shauna, Malic e tantos outros.
Não seria capaz de elencar  quais cenas gosto mais, de tantas que chorei muito e de outras que ri demais...Há cenas de rara beleza como naquela em que Kevin larga o seu lançamento para socorrer o irmão em uma crise de pânico, quando Kevin vai ao Vietnã em busca da memória do pai e quando larga tudo para resgatar seu Tio Nick, o Alzheimer de Rebecca, as festas do Dia de Ação de Graças, os telefonemas a três, o casamento e formatura de Kate,  adoção de Deja, outra personagem de muita força.  Kevin que era considerado o mais frívolo dos três vai amadurecendo  e se transformando durante as décadas.
 Os Pearson e todos aqueles que têm a sorte de viver com eles  vão reelaborando seu passado para enfrentar o presente em meio a tantos temas importantes como racismo, música, cinema, guerra, sonhos, adoção, deficiências, drogas, alcoolismo, orientação sexual, amizade e fraternidade e muito, muito amor, pois essa família é  intensa e quente como são as grandes histórias de amor. Esses são eles, esses podemos ser nós também...This is us entra na lista de melhores narrativas da minha vida...E por falar em boas histórias de afetos já viram Modern Love?